quinta-feira, 20 de março de 2025

VENHA PARA O MUNDO DA MAGIA... DO URIAH HEEP!

 

Houve um período, na década de 80 e meados dos anos 90, do século 20, em que para os jovens, era a coisa mais 'in' estar inserido em um grupo de jogadores de role playing game - o popular RPG. A famosa série da Netflix Stranger Things, em sua icônica quarta temporada (de 2022), retratou essa febre adolescente na figura da galerinha liderada pelo metaleiro Eddie (papel de Joseph Quinn), um mestre do jogo, em meio a tabuleiros que sempre vinham cheios de cenários e peças, com bonecos e cartas caracterizando os personagens, suas peculiaridades e poderes, que deveriam ser encenados durante as partidas - epopeias que, às vezes, poderiam se estender por dias, meses, até anos.

Rolou o RPG com a galerinha de Stranger Things (2022)

Com o passar dos anos, os RPG se popularizaram cada vez mais, se transmutaram, e até se modernizaram, como os modernos e inúmeros jogos de estratégia online que estão em voga, mas ainda existem muitos grupos de adoradores old school, da velha guarda, que estão por aí, jogando pessoal e presencialmente, da mesma forma tradicional, que polemizava bastante na mídia da época: para pais mais conservadores, era um perigo ver os filhos se infiltrando em personas de guerreiros bárbaros ou magos, perfis violentos e agressivos que poderiam levá-los a atos criminosos; para os mais liberais, era interessante perceber como seus filhos poderiam desenvolver dons para a arte e a interpretação dramática, e até outros tipos de atividades mais formais que dependiam da criatividade e da tomada de decisões estratégicas, no acirrado mercado de trabalho.

A Caverna do Dragão

Seja como for, o RPG é tendência que marcou época, e continua influenciando muitos adeptos. E o seu masterpiece, o jogo que eternizou tudo isso, foi o mítico Dungeons & Dragons, originalmente lançado nos EUA em 1974. Só para se ter uma ideia, esse jogo virou até desenho animado: nada mais, nada menos que o popular A Caverna do Dragão (título no Brasil), outra febre sem precedentes para toda uma geração.

E mediante todo o seu contexto de castelos, espadas e feitiçaria, não era raro ver a molecada jogando Dungeons & Dragons, com a sua trilha sonora mais apropriada tocando ao fundo: os discos Demons and Wizards (1972) e Magician's Birthday (1973), do grupo britânico de hard rock progressivo Uriah Heep

Uriah Heep

Par de álbuns esses, aliás, que tiveram as suas capas criadas pelo lendário ilustrador Roger Dean - o fera por trás das icônicas capas dos discos do grupo progressivo Yes, naquele mesmo período.

Confesso que nunca fui muito envolvido com RPG, mas gostava de ouvir o som do Uriah, e sua abordagem altamente mística de todo aquele universo. Retirado de um personagem do clássico da literatura David Copperfield (1850), de Charles Dickens, o nome do grupo sempre motivou debates cá entre os brasileiros, devido à sua pronúncia correta - que, vinda do inglês, é "iuraia rip".




A banda surgiu em todo aquele boom de grupos 'protometal' do final dos anos 60 na Inglaterra, seguindo as pegadas da trindade básica do rock pauleira (Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath). O Uriah, entretanto, nunca escondeu uma forte tendência para os sons mais neo-clássicos, misturando muito peso com passagens virtuosas de cunho erudito, e o entrelaçamento bem concatenado entre teclados e guitarras, bem ao estilo do Deep Purple - lançaram álbuns iniciais que elevaram bastante o nome do grupo em toda a Europa, como o primeiro Very 'Eavy Very 'Umble (1970), e os petardos seguintes, Salisbury e Look at Yourself, de 1971, apostando em suítes e longas passagens climáticas e melódicas.

Assim como diversos combos da época, tiveram numerosas trocas de formação, mas em seu line-up mais clássico, contavam com o "garganta de ouro" David Byron (vocais), Mick Box (guitarra), Lee Kerslake (bateria), Gary Thain (baixo) e o multi-instrumentista - tecladista, guitarrista, co-vocalista e compositor da maioria das músicas - Ken Hensley, praticamente o líder da banda, e que se manteve em todas as formações.

Easy Livin' (1972)

Em 'Demons and Wizards', até hoje considerado a obra-prima do Uriah, os vocais principais que se sobressaem na épica "The Wizard" são de Hensley, dando largada num álbum espetacular que vai adentrando cada vez mais no território de  temas sobre magia e dragões, mas que servem também como metáforas da loucura na sociedade moderna - seguem a batida acelerada de "Easy Livin'", um dos maiores hits do grupo, e pedradas como "Circle of Hands", "Traveller in Time" e "Rainbow Demon", onde guitarras envenenadas e encharcadas de wah-wah, em muitos momentos, duelam vigorosamente com teclados inebriantes, ante a cozinha ensandecida da batera e baixo, todos fazendo cama para a voz operística de David Byron - injustamente, um dos mais subestimados e esquecidos vocalistas do rock pesado de todos os tempos. Com um alcance elevadíssimo, e dono de uma extensão vocal vigorosa, raramente vista nos grupos daqueles tempos, Byron mostra nesse disco porque não ficava devendo nada para outros virtuosos do gogó como Ian Gillan e Robert Plant (do Purple e Zeppelin, respectivamente).

Echoes in  the Dark (1973)

O álbum seguinte, 'The Magician's Birthday', é considerado por alguns levemente inferior se comparado a 'Demons...", mas eu discordo: na minha opinião, apenas possui uma tonalidade mais melancólica e contemplativa, mas nem por isso menos envolvente, entregando intensidade com peso e melodias atmosféricas também, em sons como "Sunrise", "Echoes in the Dark" e na faixa-título que encerra o disco, viagem das mais poderosas, convocando o ouvinte a 10 minutos e tal de uma jornada acachapante aos confins medievais do mundo onírico.

Depois dessas duas pérolas do hard rock setentista, o Uriah seguiria com regularidade fazendo bons discos, alguns mais e outros menos criativos, até que sentiria a perda de certo grau de sua popularidade com o advento do movimento punk no final dos anos 70, o que ocasionaria a decadência de muitos dos dinossauros do rock do período (em que o Uriah se incluía), e a lamentável despedida do vocalista Byron, que deixou o grupo para seguir uma errática carreira solo marcada pelo ostracismo e o agravamento do alcoolismo que o acometera. Ele faleceria em 1985, devido a complicações de uma cirrose. E o Uriah acabou sendo relegado a uma estante de "segunda classe" das grandes bandas pesadas dos anos setenta - algo injusto também, dada a alta categoria de sua obra e de seus músicos.

David Byron

O Uriah Heep, após diversas trocas de membros, mas se mantém até hoje, é uma das mais longevas bandas do gênero, e sua agenda de shows é sempre grandiosa e constante, saciando a vontade de fãs daquele bom e velho hard rock "mágico" e progressivo, em ver a performance dos veteranos. Apesar da idade, não gostam de falar em aposentadoria, e prometem uma próxima turnê para este ano de 2025, que deve passar pelo Brasil, onde já tocaram anteriormente. 

Que as bruxas e magos do rock saiam de suas torres!





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domingo, 16 de março de 2025

UMA NOVA VERSÃO PARA AS CHACINAS DE CHARLES MANSON

 

Já é consenso há muito tempo que as horríveis chacinas provocadas pelo maníaco Charles Manson (falecido aos 83 anos, em 2017), em Los Angeles (EUA), no ano de 1969, constituem um dos mais tristemente célebres e sombrios acontecimentos da cultura pop, na era contemporânea.

Charles Manson

Para quem ainda não se recorda (ou não tem conhecimento), Manson era desde tenra idade um delinquente e ex-presidiário, com aspirações a se tornar compositor e cantor de sucesso no advento da geração flower power dos anos 60, mas mediante suas tentativas fracassadas, acabaria se convertendo em uma espécie de guru hippie, que formaria um culto muito sinistro com um grupo apelidado de 'A Família', repleto de jovens perdidos e desajustados, a maioria fugidos de casa, e regado a muito sexo e drogas - um verdadeiro séquito de adoradores do papo delirante de Manson, repleto de simbologias absurdas que misturavam passagens da Bíblia, teorias próprias sobre guerras raciais e fim do mundo, e até mesmo interpretações distorcidas de letras das músicas dos Beatles.

Membros da 'Família Manson'

Em certo momento, se apoderaram de um local inóspito nas redondezas de Los Angeles, que fora usado anos antes para filmagens de faroestes - o Spahn Ranch - e lá formaram sua base local, onde Manson doutrinava garotas e rapazes com suas pregações absurdas e orgias lisérgicas. Caso tudo continuasse apenas dessa forma, assim como ocorreu com várias outras seitas e grupos místicos e existenciais formados nos loucos tempos ripongas, tudo bem. Mas a personalidade destrutiva, manipuladora, e repleta de ódio de Manson, logo fez as coisas descambarem para uma das mais assustadoras tragédias de que se tem notícia.

Sharon Tate

No dia 9 de agosto, alguns membros da 'Família', a mando de Manson, invadiram uma casa localizada nas encostas de Cielo Drive, nas imediações de Hollywood, então pertencente ao célebre cineasta Roman Polanski e sua esposa: uma atriz em ascensão, considerada uma das mulheres mais bonitas do mundo na época, Sharon Tate, e que estava grávida de oito meses. Ali, estavam Tate e alguns amigos, que se tornaram as primeiras vítimas dos bárbaros atos de violência dos seguidores de Manson... Mortes cometidas com requintes de crueldade e indícios ritualísticos, com dezenas de facadas e uso de cordas para enforcamento, num banho de sangue macabro, que terminaria com o sangue de Tate (após implorar para que não fosse morta) sendo utilizado pelos assassinos para escrever palavras nas paredes da casa. 

Roman Polanski e Sharon Tate

No dia seguinte, 10 de agosto, mais chacina: os seguidores de Manson invadiram também a mansão do casal Leno e Rosemary LaBianca, prósperos comerciantes locais de Los Angeles, e repetiram a dose com os dois, utilizando o mesmo modus operandi na execução das vítimas, e também espargindo o sangue das mesmas com mensagens bizarras nas paredes. 

Manson durante as sessões de julgamento: a certa altura, desenharia a faca uma cruz, depois convertida em suástica, em sua própria testa

Descoberta a autoria dos crimes, e efetuadas as devidas prisões - incluindo a de Charles Manson - após um longo período de investigações da polícia de Los Angeles (que demorou bastante para ligar os fatos), a amarga sensação que os crimes da família Manson deixaram em toda a sociedade da época foi a de que, repentinamente, todos os ideais de "paz e amor" da geração hippie tinham sido desmascarados e exterminados, mostrando que, mesmo aqueles jovens que alardeavam uma nova filosofia de vida, mais comunitária e menos agressiva e capitalista, poderiam ser verdadeiros lobos em pele de cordeiro. "O sonho acabou", como disse John Lennon.

Um Roman Polanski desolado vê a inscrição "pig", escrita a sangue, na porta da casa

Durante muito tempo, as motivações para tanta selvageria seriam objeto de intensa especulação por parte da grande mídia. O que, afinal, teria levado Manson a induzir moços e moças aparentemente tão pacatos a cometer tais homicídios? E o que chamava mais a atenção: como que ele fez isso através das mãos deles, ordenando tudo, e sem ele mesmo ter tocado um dedo fisicamente sequer em todo esse massacre? 

As teorias mais bem aceitas até hoje partiam das argumentações do promotor do caso, Vincent Bugliosi, que ficou famoso na época por conseguir a condenação de Manson à prisão perpétua, e lançou um livro sobre o caso que se tornaria um best-seller: Helter Skelter, de 1974, onde ele sustentava que, na mente alucinada de Manson, ele próprio se via como uma espécie de segundo messias, e que após um conflito racial de escalas sem precedentes, entre negros e brancos, todos morreriam, e ele e seus seguidores se tornariam os representantes de uma nova sociedade, uma nova ordem mundial. 

Os assassinatos, então, teriam sido estimulados por Manson em seus adeptos, e cometidos de forma a que a polícia acreditasse que fossem obra dos negros, desencadeando a guerra entre os Panteras Negras e as autoridades a partir de Los Angeles, e dali, em todos os Estados Unidos - daí as inscrições nas paredes, se referindo a pigs ("porcos", que era o jeito como os tiras eram chamados nos guetos e no submundo) e death to pigs ("morte aos porcos"). Todas essas expressões, assim como helter skelter (gíria para "montanha russa"), também escrita a sangue nas paredes das casas, faziam referência direta a nomes de músicas dos Beatles com os mesmos nomes, encontradas no famoso White Album (de 1968), reafirmando a obsessão torpe de Manson pelo grupo - assim como trechos da Bíblia, ele interpretava muitas das músicas dos garotos de Liverpool como se fossem profecias ocultas.

Mas... Com o excelente documentário lançado neste mês pela Netflix, Caos: Os Assassinatos de Manson (Chaos: The Manson Murders, 2025), dirigido por Errol Morris, e utilizando como base o livro 'CHAOS: Charles Manson, the CIA, and the Secret Story of the Sixties' (de Tom O'Neill e Dan Piepenbring), uma nova versão para as chacinas de Charles Manson começa a ser discutida, e toma forma.

Diversas informações antes despercebidas (talvez propositalmente) pelo inquérito original mostram que, antes de tudo, havia uma contenda sobre uma malsucedida venda de drogas, realizada por um dos membros da Família, Bobby Beausoleil, figurinha famigerada como 'pusher' (fornecedor) no meio musical e marginal daquele período - havia tentado a sorte como guitarrista na banda Love (de Arthur Lee), não deu certo, e assim como Manson, se tornara um loser que descambou para o submundo hippie. Essa transação desastrosa de Bobby, que teria vendido ácido adulterado e de má qualidade para uma gangue barra pesada, ocasionou uma briga de traficantes - na qual Manson precisou intervir, para impedir que futuras investigações policiais chegassem até as suas atividades com a Família. Beausoleil seria preso após ser pego dormindo no carro de um dos envolvidos na venda da droga - que ele matou a facadas, na mesma noite. 

Bobby Beausoleil

Isso ocorreu em 6 de agosto de 1969. Apenas 3 dias depois, os assassinatos determinados por Manson começariam a acontecer. Para o autor do livro, Tom O'Neill, entrevistado no documentário, fica muito evidente a intenção de Manson de tentar desviar a atenção da polícia para outras ocorrências e, também, para fazer as autoridades acreditarem que as chacinas seriam cometidas pelos traficantes negros locais, que estavam em sua cola por causa do negócio com drogas ruins - não como uma forma de criar uma contenda racial, mas sim, pelo receio de que Bobby Beausoleil começasse a "abrir a boca" na prisão, entregando Manson e todo mundo da Família que estava na jogada.

E de onde viria o descomunal poder de persuasão de Manson sobre todos aqueles jovens?

Dr. Jolly West

Aí é que as novas teorias se tornam cada vez mais interessantes: praticamente ninguém sabia, mas em uma das diversas clínicas para drogados e delinquentes custeadas pelo governo dos EUA na época, no famoso bairro hippie de Haight-Ashbury (San Francisco), atuou um certo Jolly West - não por acaso, um dos mais renomados psiquiatras que participara do projeto MK Ultra, da CIA: o polêmico e até hoje acobertado programa de controle mental de cidadãos, através do uso de substâncias químicas e processos hipnóticos indutores de gatilhos. Durante as suas passagens por essa clínica, Manson - já reincidente por vários crimes, e sempre enviado como forma de reabilitação social - era estranhamente liberado após poucos dias, com o aval dos médicos responsáveis regularmente constando em sua ficha...

Haight-Ashbury, nos anos 60...

Teria Charles Manson sido, secretamente, mais um dos experimentos de manobra mental da CIA? Teriam as sementes da ira e do extermínio sido plantadas em sua psique, como uma forma da CIA cumprir uma agenda de desmistificação e criminalização da juventude contracultural e libertária, em toda a sociedade da época??? O filme traz referências diretas aos Experimentos CHAOS, da CIA, e COINTELPRO, do FBI, nesse sentido.

"Caos: Os Assassinatos de Manson" é um ótimo programa para quem curte obras true crime, e resolve tudo em apenas uma hora e meia. Não é série dividida em episódios, é conciso, direto no ponto e instigante, como toda obra assim deveria ser. 

E para quem souber enxergar e entender todos os sinais, vai deixar o ponto de interrogação necessário, na cabeça de muita gente: até onde o poder institucionalizado pode ir, para conduzir ou desviar os rumos e destinos de toda uma geração, e de toda uma sociedade?




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terça-feira, 4 de março de 2025

HACKMAN, CHALAMET... E ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OSCAR E O CINEMA ATUAL

 

Fãs da sétima arte no mundo todo ainda se recuperam da perplexidade e do susto mediante a morte - infelizmente ocorrida em ainda misteriosas circunstâncias - do grande ator Gene Hackman, uma das últimas lendas de uma época brilhante do cinema norte-americano. 

Encontrado morto junto com a sua esposa e um dos cães do casal, na residência deles em Santa Fé, Novo México, onde o ator estava em vida reclusa e longe dos holofotes, desde a sua aposentadoria em 2004, Hackman era uma daquelas celebridades que detestava falar sobre a sua vida pessoal, concentrando todas as suas falas e esforços tão somente no seu ofício, que ele tanto amava: atuar. Apesar disso, não se furtava de, em algumas entrevistas, relembrar com galhardia o início de carreira ao lado de outra fera, também aposentado, Jack Nicholson, com quem estudou na escola de artes, e contava que ambos gostavam de estar lá mais para ter uma chance de cenas em que beijariam as mocinhas aspirantes a atriz, do que para qualquer outra coisa. 

Hackman, em French Connection (1971)

Ainda assim, as atuações pungentes e realistas de Hackman, contidas em certos momentos, e carregadas de maneirismos e arroubos de dramaticidade em outros, elevaram tal métier a um outro status, principalmente na época dos filmes da Nova Hollywood, em que seu trabalho junto a diretores fantásticos e revolucionários, como Coppola, William Friedkin e Arthur Penn, fez a grande diferença. Vindo de uma infância trágica - o pai abandonou o lar ao ir comprar cigarros, literalmente, e a mãe era uma alcoólatra irremediável, falecida em um incêndio provocado por ela mesma - Hackman apostou todas as suas fichas na carreira de ator, e nos entregou performances clássicas e icônicas, que jamais serão esquecidas: o sarcástico policial Jimmy Popeye, de Operação França (The French Connection, 1971, seu primeiro Oscar), o tímido e tenso detetive particular Harry Caul, de A Conversação (The Conversation, 1974), a versão mais narcisista e genialmente megalomaníaca do vilão Lex Luthor, no clássico Superman - o filme, de 1978, e alguns anos depois, o maligno xerife Bill Dagget, no papel que lhe renderia seu segundo Oscar, em Os Imperdoáveis (The Unforgiven, 1992).

In memorian

Amigos e colegas de trabalho, através das palavras emocionadas de Morgan Freeman no palco, prestaram a ele uma homenagem merecida nessa última noite de cerimônia do Oscar, de 2 de março de 2025. Noite essa, aliás, repleta de outras grandes emoções, e que já entrou na história especialmente para nós, brasileiros.

A Complete Unknown

Mas, antes de chegarmos a esse assunto, não há como deixar de falar da Academia e de suas já muito comentadas e longevas manias, de fazer surpresas e não esconder suas tendências e critérios vergonhosos. Assisti dias antes a notável cinebiografia do início de carreira do icônico cantor e compositor Bob Dylan, Um Completo Desconhecido (A Complete Unknown, 2024), do diretor James Mangold, com um absurdamente ótimo Timothée Chalamet no papel principal. 

É um filme delicioso e obrigatório para qualquer fã de Dylan, com uma excelente reconstituição de época, uma Monica Barbaro linda e convincente como Joan Baez, Edward Norton recuperando sua força dramática no papel de Pete Seeger, mas acima de tudo isso, uma performance poderosa de Chalamet como o protagonista! O rapaz se dedicou, por 5 anos, num esforço notável para personificar todos os trejeitos de Dylan em seu modo de falar, andar, cantar e tocar. Um trabalho fantástico, que mereceu a indicação ao prêmio - mas não o mesmo, pois no final das contas, quem ganhou o Oscar de melhor ator foi Adrien Brody, por sua atuação no drama sobre refugiados O Brutalista

Brody ganhando o Oscar de melhor ator

Como bem disse Giancarlo Galdino, do site cultural A Bula (leia aqui), de cara foi uma das maiores injustiças já cometidas pela Academia, visto que Chalamet se empenhou, tem uma atuação caprichada e primorosa no filme, e Brody tem aquela pecha de "queridinho coitado" da Academia para filmes de época, basta se sair um pouquinho melhor em algum papel melancólico de filme lacrimoso, que já ganha a estatueta, reincidente que é: repetiu o feito de 2002, quando levou a estatueta por sua atuação em O Pianista, um filme perceptivelmente melhor do que esse recente que estrelou. E que agora tem um sério agravante, para o qual a Academia vergonhosamente passou pano: as falas de algumas personagens de O Brutalista foram "remixadas/melhoradas" com uso de IA (inteligência artificial), incluindo a voz do próprio Brody, para acentuar os sotaques estrangeiros. Shame on you, Academia! Então quer dizer que você tapa os olhos para essa influência odiável, que foi a causa de uma das maiores greves de profissionais da indústria do cinema em 2022/23, ainda baba ovo e premia esse filme e esse ator, e esnoba um Chalamet jovem, que está dando o sangue para ser reconhecido, e se recusando a usar qualquer ajudinha de sistema de computador? Repito: shame on you, Academia do Oscar, que vergonha.

Mikey Madison em Anora (2024)

Injustiças à parte, isso e mais algumas coisas espelham bem o panorama atual de cafajestice que a produção cinematográfica atual vive. Apesar do mais do que merecido Oscar de melhor filme internacional que o Brasil finalmente conseguiu lograr, com Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, a despeito da derrota de melhor atriz de Fernanda Torres para Mikey Madison, do ultra-prestigiado (e talvez, superestimado) Anora, de Sean Baker, existem algumas coisas tristes e ainda incômodas a se considerar sobre o cinema nacional, principalmente.

Obviamente que foi uma noite maravilhosa e de vitória para o Brasil, ainda que Fernandinha não tenha conseguido o Oscar de melhor atriz pra vingar a derrota da mãe dela também, há 26 anos atrás, que concorria por A Central do Brasil, também de Walter Salles, mas que perdeu injustamente na época para a americana Gwynet Palthrow, do filme Shakespeare Apaixonadodona de uma atuação tão empolgante quanto o recital de um sonâmbulo entupido de Rivotril para um bando de formigas no quintal da casa. 

Ou seja, vencemos finalmente um Oscar de muito prestígio para o país? Sim, conseguimos. Mas o Oscar continua sendo bem bairrista em algumas categorias, como essas de atuação. E a produção cinematográfica nacional continua burra, caótica e descontrolada, como bem explica o crítico Jurandir Gouveia, em sua fantástica análise sobre os deslizes e devaneios financeiros do Ministério da Cultura e sua subsidiária Ancine, nessa terra brazuca de Meu Deus, que tem muito, mas muito mais potencial mesmo (como bem atesta a vitória de Ainda...) para fazer e lançar coisa boa e com chances de lucrar ainda mais nos cinemas daqui, concorrer e ganhar prêmios e reconhecimento lá fora, mas fica presa a nichos culturais reducionistas e ideológicos, e não procura fiscalizar e estimular melhor outras linhas e vertentes criativas, que diversificariam (e muito) o cinema nacional, enriquecendo a nossa produção. 

Se você é uma pessoa que gosta de verdade de cinema, e gostaria de ver o nosso cenário mudar realmente depois desse êxito carnavalesco no Oscar 2025 (esse é o momento de fazer valer essa chance), tire um tempinho de sua vida para ver o que o Jurandir fala aqui nesse vídeo do seu canal: https://www.youtube.com/watch?v=iMWzKVrMYjc .

E depois volte aqui para comentar comigo se ele não está certo.




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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

O GRAFITE FÍSICO DE GIGANTES

 

Nesse 24 de fevereiro de 2025, faz 50 anos que o Led Zeppelin lançou aquele que é considerado uma de suas obras-primas, e um dos melhores álbuns de rock de todos os tempos: o colossal Physical Grafitti.

Um cinquentenário denota uma passagem de tempo tão avassaladora, em dias atuais, que é absurdo comparar como a indústria da música mudou tanto, de 1975 para cá.

Naquela época, ainda imperava o disco de vinil, como produto fonográfico primordial, e fonte de material para o que seria veiculado nas rádios (outro símbolo do tempo) e nas apresentações ao vivo dos artistas. LP, como gente da minha geração chamava na época, era um troço caro. Era preciso separar caraminguás suados ou estar em data merecedora de presente, para poder levar aquele pedaço de sonho artístico para a sua casa, e para o seu aparelho de som com toca-discos (a "vitrola"). Se comprar um disco só já demandava grana, imagina um álbum-duplo, o preço que era. Música de tudo quanto é tipo e disponível full-time, só em formato virtual e por streaming, tão fácil como temos hoje na internet? - nossa, se você tivesse uma visão profética e dissesse que isso um dia aconteceria, seria chamado de doido.

A capa de Physical Grafitti

O grupo composto pelos hoje lendários Jimmy Page (o líder e guitarrista), Robert Plant (vocalista), John Bonham (baterista) e John Paul Jones (baixista e tecladista) passava, nessa ocasião, a entrar para o seleto time de roqueiros que haviam atingido um certo nível na carreira que representava o status-of-the-art de sua produção, com bala na agulha para se aventurar a gravar e lançar um álbum duplo, que era um projeto com 2 discos de uma vez só, uma megaprodução contendo muito material original e diversificado para mostrar, um feito antes relegado a medalhões como The Beatles, Bob Dylan, Jimi Hendrix e Rolling Stones. Agora, o Led Zep tinha um álbum-duplo para chamar de seu.

Esquerda para a direita: John Paul Jones, Jimmy Page, Robert Plant e John 'Bonzo' Bonham

Assim como em outras vezes, a banda se reuniu em 1974 na inóspita região campestre de Hampshire, na velha mansão Headley Grange, onde já haviam produzido a maior parte das canções do seu disco de 1970, o Led Zeppelin III. Para essa nova empreitada, traziam composições novas, mas também muita coisa que havia sido deixada de fora de trabalhos anteriores, como as pesadas e exuberantes "Houses of the Holy" e "The Rover" (que deveriam ter entrado no disco anterior do grupo) e temas mais ecléticos, como "Down by the Riverside" e "Bron-Yr-Aur" (que deveria ter saído também no terceiro disco, Led Zeppelin 3).




Fazendo parte do material mais novo, estavam a frenética "Trampled Underfoot", com destaque para os entrelaçamentos da guitarra de Page e os teclados de J.P. Jones, o soturno e intenso blues "In My Time of Dying", repleto de viradas e mudanças de tempo e até hoje a mais longa faixa já gravada pela banda, e aquela que rivaliza com o clássico "Stairway to Heaven" como a mais perfeita música já gravada pelo Led Zep, na opinião deles mesmos: a épica e apoteótica "Kashmir", um assalto sensorial e atmosférico inédito na abordagem do grupo, pauleira e ao mesmo tempo inebriada de melodias indianas e místicas. Essa inovadora obra-prima já valeria, por si só, o álbum inteiro. 

Porém há mais: a melancólica "Ten Years Gone", repleta de nuanças e camadas sonoras que vão se sobrepondo umas às outras, de forma surpreendente para o desavisado ouvinte, a viajante e progressiva "In the Light", e o ataque frontal de hard rock puro em "Sick Again". 

Kashmir

Para a também aclamada e criativa capa do álbum (e isso era um conceito artístico que foi se perdendo com a difusão do CD e da música digital, posteriormente), um trabalho do fotógrafo Peter Corriston, com recortes nas imagens das janelas do prédio, que revelavam nomes, expressões e figuras icônicas e marcantes do mundo pop e da história mundial: o astronauta Neil Artmstrong, a Cleópatra de Elizabeth Taylor, Lee Harvey Oswald (o suposto assassino de John Kennedy), o gorila King Kong, a Virgem Maria, e tantos outros... O prédio decadente retratado era o antigo e tétrico St. Mark's Place, do bairro East Village, de New York - que se tornaria famoso também por ser o cenário do clip de "Waiting on a Friend" (1981), dos Rolling Stones, e por lembrar muito o Edifício Dakota, lar de John Lennon na mesma cidade, e na frente do qual ele foi alvejado,  A inspiração inicial foi a capa de um outro disco, Compartments (1972), do violonista latino Jose Feliciano. 

Ten Years Gone

Physical também tinha a primazia de ser o primeiro trabalho do grupo lançado sob o seu selo próprio, a Swang Song - uma mania de muitos artistas daqueles tempos, que tentavam com isso (muitas vezes, frustradamente) obter maior controle sobre a sua produção fonográfica sem as interferências dos selos de grandes gravadoras, possuindo um negócio próprio e mais lucrativo - como os Beatles, com a Apple Music, e os Rolling Stones, com a Rolling Stones Records. Como empresários, no entanto, a maioria desses pop stars acabava invariavelmente se revelando excelentes músicos.

O lançamento do álbum deu partida ao que seria uma das mais ousadas e lucrativas turnês do grupo, com datas em vários lugares da Europa e EUA - e até mesmo o Brasil iria rolar na época, pasmem, tentando entrar na era dos megashows internacionais após o sucesso de Alice Cooper por aqui em 1974, sendo que ocorreram tentativas de negociação de promotores locais com a banda, através do seu rotundo e agressivo empresário Peter Grant e do guitarrista Jimmy Page (que chegaram a vir no Brasil!), mas no final das contas não deu certo trazer eles: a exigência de custos e gastos com o transporte de equipamento e o staff da banda foi considerada excessiva pelos ainda inseguros empresários brasileiros, diante da recente ruína do "milagre econômico" do governo militar, e o medo de prejuízos milionários. 

Plant e Page, com o megaempresário Peter Grant vindo logo atrás

O próprio Peter Grant batia o pé e não admitia concessões, conforme noticiado na revista Pop daquele ano, famosa entre os jovens brazucas, e que havia espalhado a notícia de um possível show: "Se viermos, simplesmente fazemos questão de trazer o mesmo show que fazemos em qualquer parte do mundo... O mesmo som, com a mesma potência, os mesmos canhões de luz a laser, a mesma produção de palco. O Led Zeppelin honra os seus fãs e quer oferecer simplesmente o melhor a eles. Não faz parte de nosso jogo enganar a garotada e tomar o seu dinheiro." 

Uau.

O Led Zeppelin havia provado que atingira o seu máximo, em termos de criatividade, de recordes de vendas de discos e shows, de popularidade, e no quesito gravações: Physical Grafitti passava a ser considerado um clássico instantâneo a partir do seu lançamento. Era o atestado de superioridade e potência de um grupo que construiu sua fama de modo totalmente diferente do que existia antes para os grupos de rock: sem pagamentos de jabá para rádios e nem babação de ovo para programas de televisão, sem dar moral para os ataques gratuitos da imprensa sempre ranzinza, e galgando seus degraus de popularidade no boca-a-boca dos fãs, lançando seus discos sem nenhum compacto ou música de trabalho calculada para fazer sucesso comercial. Tudo era na base do "grave e caia na estrada pro show", simples assim, "o artista tem que ir aonde o povo está", e do jeito que eles bem entendiam, sem ficar tentando adular ninguém, nenhum veículo da mídia.

Sucesso puro e autêntico, como não se vê mais no meio, há muito e muito tempo.

Como sugere o título de uma excelente biografia escrita sobre eles pelo jornalista Mick Wall, uma das melhores da banda, eles eram "gigantes que caminhavam sobre a Terra".

E neste exato momento do aniversário de um de seus trabalhos mais famosos, o grupo passa também por um novo revival midiático, com o lançamento da primeira cinebiografia oficial, que já é sucesso nos cinemas com tecnologia IMAX no mundo inteiro, e deve estrear no Brasil no próximo dia 27 de fevereiro: Becoming Led Zeppelin, um filme que não deve tratar do período de Physical, em que eles já reinavam, mas que trará entrevistas exclusivas e inéditas de todos os membros da banda (incluindo o falecido batera, John Bonham), e uma análise, ricamente ilustrada visual e sonoramente, do início do grupo e a escalada deles rumo à fama (período entre 1968 e 1971).

Physical Grafitti, por sua vez, foi o seu auge e momento absoluto. Depois disso, viria a fase do sinuoso e trágico declínio. Nunca mais as coisas foram as mesmas para o Led Zeppelin.




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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

ERA UMA VEZ... UM CLÁSSICO

 

"Sujeitos como nós tem algo por dentro, Jill
Algo que tem a ver com a morte."
(Cheyenne - personagem de Jason Robards, em 'Era Uma Vez no Oeste')


Um dos causos que o veterano e lendário ator norte-americano Henry Fonda (1905-1982) mais gostava de contar, em suas entrevistas ao longo dos anos 1970, era sobre como havia sido fascinante trabalhar com o diretor italiano Sergio Leone, de forma a desconstruir a sua imagem de "bom mocinho" dos faroestes e filmes mais antigos de sua carreira, encarnando pela primeira vez um vilão cruel e psicótico, e pregando a maior 'trolagem' nas plateias desavisadas. 

Ele relatou essa história em sua famosa entrevista no programa de TV Dick Cavett Show, em 1972, e também para uma equipe de jornalistas, em 1975, de um documentário que estava sendo rodado: "Existia aquela cena em que chegamos, eu sou um matador com um bando de capangas, acabamos de alvejar uma família feliz, o pai e seus três filhos, em uma fazenda remota, somos filmados por trás e chegamos caminhando lentamente perto das vítimas, e Leone faz a câmera vir se aproximando, por trás de mim e se movendo ao meu lado, até se virar e focalizar o meu rosto, de forma que todos no cinema deveriam tomar um susto e gritar: - Meu Deus... É O HENRY FONDA!" .

Ele contava isso e dava uma bela gargalhada logo em seguida.

Desde filmes antológicos do cinema, como Vinhas da Ira (1940) e Paixão dos Fortes (1946), Fonda tinha sido o nice guy, o cara legal, o mocinho que sempre aparecia com bravura e altruísmo para salvar a parada. Mas a sua assombrosa atuação como o facínora Frank, em Era uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West, ou C'Era Una Volta il West, título original italiano, 1968), acabou com isso de uma vez por todas. 

Para o pessoal da geração mais nova que ainda não viu, ou para quem mais queira conhecer, uma boa notícia é que, depois de uma temporada fora, o filme está de volta ao catálogo da Netflix.

O spaghetti western que seria considerado a obra-prima de Leone também se tornaria revolucionário e inovador em diversos outros quesitos, que lhe regalaram o status de filme cult, logo convertido em um clássico contemporâneo. Ele desconstruía as bases da narrativa comuns ao cinema de faroeste, até então, e parecia criar uma espécie de 'novo espetáculo', silencioso e soturno, mas onde fortes músicas e imagens ecoavam em um ritmo próprio, lento e sinuoso, com uma estrutura estética na qual bandidos e mocinhos jamais antes haviam sido apresentados ao público, não daquela forma. 

Depois do sucesso avassalador da sua "trilogia dos dólares", em parceria com o ator Clint Eastwood (matéria especial aqui), o diretor Sergio Leone era aclamado como um dos mais criativos e bem-sucedidos artesãos da Sétima Arte na Europa, e o mercado norte-americano passou a disputar o seu passe para uma próxima produção. Mediante uma oferta polpuda da produtora United Artists (famosa pelos filmes do James Bond 007), Leone acabou recusando para aceitar os 3 milhões de dólares propostos pela Paramount Pictures, que eram um pouco menos do que a UA oferecia, mas em troca, lhe dava o que ele mais prezava: liberdade criativa, de roteiro e de contratação da equipe e elenco que ele bem entendesse para o seu próximo filme, cujas filmagens deveriam começar por volta de março de 1968.

Henry Fonda, como Frank

Leone preparou correndo um script de 400 páginas com a ajuda de Sergio Donatti, baseado em uma história original desenvolvida por ele mesmo juntamente com seus colegas Dario Argento e Bernardo Bertolucci (futuros nomes de peso no cinema italiano), e do qual, surpreendentemente, apenas 14 páginas continham diálogos, sendo o restante descrições detalhadas de cenas, frases de efeito, ambiências e situações, que já davam uma noção do quão épica aquela narrativa pretendia ser: uma história de vingança de um "estranho sem nome" (mais um) contra um desafeto do passado, que cruza o caminho de uma viúva que herda uma grande propriedade no deserto, por onde irá passar uma nova ferrovia, motivo de cobiça e disputa entre poderosos. 

Harmonica (Charles Bronson) dá uma bela encarada em Jill (Claudia Cardinale)

Contada assim, parece ser uma história por demais mundana, simplória até. Mas aí reside a genialidade e o arrojo de Leone, ao criar camadas cinematográficas visuais e sonoras que preenchem o roteiro, e de uma beleza plástica tão impactante, que o espectador imerge em um velho mundo de foras-da-lei em decadência, dando lugar à nascente civilização americana, de uma forma praticamente impossível de não se emocionar.

Claudia Cardinale, como Jill McBain

Para o papel do pistoleiro procurando vingança, o lacônico personagem simplesmente denominado Harmônica (por estar sempre com uma na boca, soprando notas ameaçadoras), Leone tentou mais uma vez recorrer a Eastwood - entretanto, este já estava dando largada ao seu megaestrelato em Hollywood, finalmente despontando no cinema americano, e friamente lhe respondeu: "No more Italian westerns, Sergio" (Chega de faroestes italianos, Sergio). A escolha que provaria ser a mais acertada recairia, então, sobre outro ator que havia sido um eterno coadjuvante no cinema americano, mas que recentemente havia roubado o destaque em um filme francês chamado 'Adeus, Amigo', onde contracenara com Alain Delon: ninguém menos que Charles Bronson. Para o papel do assustador bandidão Frank, finalmente fora contratado o já citado Henry Fonda - um ídolo, que era sonho de consumo de Leone para seus faroestes desde que ele iniciara a carreira de cineasta, e para o qual os 250.000 dólares de seu cachê podiam agora ser pagos pela Paramount. Para o papel de Cheyenne, líder de uma gangue que é confundido com Frank e que acaba servindo como um coadjuvante de peso e alívio cômico da trama, outro grande ator americano da época foi recrutado: Jason Robards. E para o papel da viúva Jill, importantíssimo para a trama, fora chamada uma atriz que, na época, só perdia para Sophia Loren como símbolo da beleza europeia: a estonteante Claudia Cardinale

Cheyenne (Jason Robards) observa  Harmonica (Bronson) tocando o seu instrumento

Havia ainda um pequeno núcleo de personagens ligados ao bando de pistoleiros de Frank, que recebia ordens e grana do personagem Morton, interpretado pelo célebre ator italiano Gabrielle Ferzetti: uma figura de relevo, que servia para representar o progresso das estradas de ferro, com seus empresários endinheirados chegando e modernizando tudo, transformando ranchos e vilarejos em cidades, e dando fim à era mítica dos cowboys.

Harmonica, Frank, Jill e Cheyenne: em suma, esse era o quarteto cujas vidas se cruzavam tragicamente, e que conduzia a narrativa que estampava a morte e o confronto iminente a cada ampla tomada, cada longa e silenciosa sequência onde os tradicionais close ups dos personagens eram explorados, revelando, com semblantes e expressões tocantes, tudo aquilo que os esparsos diálogos estavam fadados a não entregar. Mas a música, em vários desses extensos e contemplativos takes, também aparecia - e era, mais uma vez, do habitual colaborador de Leone, o maestro (mestre) Ennio Morricone.

Assim como nos faroestes anteriores de Leone, a música de Morricone era uma personagem a parte, por si só. Mas aqui ele se superou: os 3 temas musicais predominantes de 'Era Uma Vez' - um centrado no confronto entre Harmonica e Frank, outro baseado no personagem Cheyenne, e o principal, dedicado à personagem Jill, belíssimo e muito famoso - eram poderosos, e constituem algumas das composições mais lindas, trágicas e melancólicas já criadas para um filme de western. Como bem pontuou um crítico da época: "o filme de Leone é uma ópera da morte, do fim de uma era, em que seus personagens vão caminhando rumo à inevitabilidade de seus destinos, com uma triste beleza de suas visões sobre aquilo que não conseguem mudar".

O tema principal de Jill, em 'Era Uma Vez no Oeste' (Ennio Morricone & orquestra, 1968)

Curiosamente, quando foi lançado, em dezembro de 1968, e ao contrário do que se pensa hoje, 'Era Uma Vez...' não foi um grande sucesso - apenas na Itália e na França, onde foi imediatamente considerado um clássico pelo público e crítica especializada, e teve uma bilheteria monstruosa. Nos EUA, país onde Leone achava que o filme iria arrasar, acabou com um faturamento tímido de apenas 1 milhão e meio de dólares - fracasso, se formos considerar que os custos finais com a produção do filme acabaram chegando na casa dos 5 milhões. Isso acabou fazendo com que a Paramount desrespeitasse o conceito original de Leone, e o filme tivesse cortes, devido à sua longa duração original (170 min.), sendo adulterado e modificado para futuros relançamentos e tentativas de êxito em outros mercados. 

Tudo isso causou uma amargura tão forte em Leone, que esse filme brilhante infelizmente se tornou, ao mesmo tempo, um das mais perfeitas e mais frustrantes obras para o seu criador, o condenando a um limbo de reclusão, do qual ele sairia e voltaria a se dedicar a novos projetos apenas uns bons anos depois. O seu último grande ato, que é considerado uma espécie de "resposta" dele a Hollywood depois de suas decepções, é um épico de gangsters de 1984, 'Era Uma Vez na América', com Robert DeNiro e James Woods, e seria finalizado por ele poucos dias antes de sua morte. 

E em toda essa trama incrivelmente poética sobre o fim dos homens com revolveres ("uma raça antiga", como diz o personagem de Bronson, a certa altura), com seus personagens ameaçadores e heroicos, acabamos concluindo, após o inevitável duelo fatídico e as cenas de adeus pungentes e inevitáveis em seu desfecho, que a verdadeira personagem principal era, de fato, a viúva Jill - e aqui vai todo o mérito para os inesquecíveis e comoventes olhares lânguidos da musa Claudia Cardinale, em suas cenas finais. 

Cabe lembrar que não era exatamente novidade deslocar o protagonismo de um western para a figura feminina: apesar de sua fama de inovador, Leone sabia muito bem surrupiar e esconder suas inspirações, e bebia de muitas fontes de faroestes clássicos do passado, como Johnny Guitar (1954) e O Proscrito (1943): histórias que de certa forma moldaram a personagem de Jill, onde mulheres fortes também conduziam a narrativa e mostravam que, se aquele mundo de homens brutos e perigosos se movia, entre dólares, mortes e desejos, era instintivamente por causa delas, e para elas. 

Que bela homenagem às mulheres que Leone prestaria, afinal.




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