quarta-feira, 4 de junho de 2025

SÉRIES, DORAMAS E STREAMING: A MODERNIDADE LÍQUIDA NAS MÍDIAS

 
'Pergunte às Estrelas': dorama sensação da Netflix, em 2025

A Rede Globo já se prepara, após uma transmissão experimental realizada no final de abril deste ano, para o início das atividades da TV 3.0 no Brasil - ou, como será mais conhecida popularmente, a Digital Television+ (DTV+).

Quando a televisão começou no Brasil lá na década de 1950, com as transmissões ao vivo por torres e antenas, e canais ainda em preto-e-branco, ocorreu o que convencionamos chamar a primeira geração desse meio, ou seja, era a TV 1.0. Alguns anos depois, com o advento das transmissões via satélite ou por videoteipe, a cores, e com a melhoria das tecnologias, chegando ao começo do sinal digital e da internet, mais recentemente, vivemos a onda do que havia até agora predominado, a TV 2.0

E então, chega agora a revolução, do novo padrão de uso e transmissões, com a terceira geração, batizada de TV 3.0.

Essa sim, promete entrelaçar ainda mais as mídias da televisão e internet, tornando a experiência de assistir programas de TV ainda mais interativa e com cada vez mais autonomia e controle do espectador - se antes tínhamos a hegemonia dos canais de TV, dominando e ditando costumes e horários da população, com as suas grades de programação, as lutas por índices de audiência e horários supervalorizados de publicidade para anunciantes, hoje tudo isso parece se tornar uma ilusão de memórias distantes, itens tão antiquados quanto relíquias ou antigos quadros e esculturas de museu. 

Para a geração de onde venho, e até para algumas mais recentes, tudo mudou, e muito. E vai mudando mais ainda, em velocidades impressionantes. Se antes nomes como Globo, SBT, Record e Bandeirantes - até então, as quatro maiores e mais influentes concessões públicas de redes de TV do país - ainda tinham uma força expressiva e de maior entrância popular do que a internet, hoje nomes como Netflix, Amazon, HBO Max, Disney Plus, e o mais popular de todos, o YouTube, representam a força dos serviços de streaming que vieram para derrubar e subverter a lógica de costumes de audiência e de mercado, como jamais fora imaginado antes. 

É uma mudança de paradigma parecida com a da época em que a TV desbancou o rádio, como veículo mais popular de comunicação de massa. Agora, chegou a vez da TV sentir a derrocada.

Zygmunt Bauman

E não adianta: por mais que Globo e outros canais façam a migração para uma nova geração de transmissão, o problema está na filosofia de base e de criação da mídia televisiva. Nada voltará a ser como antes. Pois existe uma mudança de pensamento e de dinâmica muito mais profunda do que simplesmente fazer a TV soar mais flexível, ou se parecer mais com a internet. E atende ao conceito de modernidade líquida, já bem estabelecido há alguns anos atrás, no brilhante trabalho do filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

Para Bauman, as mudanças que os avanços tecnológicos e sociais vão trazendo ao indivíduo tornam a fugacidade, a velocidade e a fluidez das situações algo cada vez mais comum, e inerente às sociedades organizadas. Os conceitos tradicionais vão se perdendo, ou ficando vazios de significado, diante da sua recorrente efemeridade em face das mudanças. Pertencimento, propriedade, princípios... tudo isso são sensos e ideias que sofrem uma descaracterização com essa modernidade que é tão fluída quanto a água, escorrendo pela vida das pessoas com relações sociais, econômicas e políticas que se tornam rápidas e frágeis, altamente maleáveis, e adaptadas a um dinamismo incessante. Não há mais preocupação com a tradição, ou a manutenção dos laços.

Não é importante ficar preso a um lugar, ou a alguém, desde que seja para ganhar melhor, ou ter mais prazer em outro relacionamento - para que sofrimento ou sacrifício, esses "palavrões" de hoje em dia? Não é preciso se prender a nenhum lar, cidade ou pátria. Família? Pra que isso? Temos pets, bebês reborn. Nem tampouco é preciso um político se manter filiado a um partido, ou a um posicionamento. Se for para auferir vantagens, por que não mudar? Neste "admirável novo mundo", tudo é substituível, tudo é fugaz.

Isso se reflete não só na falta de relevância que uma programação de TV pode ter para as pessoas, que preferem hoje muito mais fazer seus próprios horários e trocarem um programa ou evento por outro, mas na própria natureza que o uso dos canais de streaming tem: filmes e séries em constantes ciclos de reciclagem, entrando e saindo dos catálogos, sendo assistidos (ou até pausados, acelerados, deixados de lado) ao bel-prazer do espectador - que começa a nem se preocupar mais com a mensagem que determinada obra tem a passar - e uma infinidade de ofertas e de opções onde, em muitos casos, a quantidade supera a qualidade. 

Nesse panorama, obviamente, há um impacto diretamente sofrido na cultura pop de consumo. A contemplação, e o senso crítico e analítico que deveriam ser resultantes das obras artísticas concebidas com a função de fazer pensar o indivíduo comum, simplesmente desaparecem, para dar lugar a conteúdos voláteis e inexpressivos, descaracterizados e sem profundidade ou originalidade, erigidos com o único e promíscuo objetivo de atender a interesses de mercado. E produzidos aos montes, de acordo com essa lógica.

Tudo assim, muito rápido, muito moderno. Na velocidade dos gigabytes por segundo.

A falta de apego a uma apreciação mais cuidadosa e apurada do significado de uma obra, de sua importância enquanto reflexão de mundo, visão autoral ou experiência imersiva, não ocorre somente na área do audiovisual. 

O culto ao disco de vinil (LP) persiste, apesar de tudo

O fenômeno se faz presente também na música: que comparação incrível temos quando nos lembramos de que, há não muito tempo atrás, ainda nas décadas finais do século 20, por volta dos anos 1970, 1980 e 1990, a sensação provocada pela simples aquisição das mídias físicas do LP (disco de vinil), fitas K-7 ou CD, com suas capas elaboradas, informações detalhadas sobre os artistas, as faixas gravadas e suas concepções, era algo genuíno e de uma emoção formidável - coisa muito distante em relação ao processo quase frio e robótico, automático até, de programar playlists sem fim em serviços de streaming hoje em dia, nos Spotify e Deezer da vida, e ir consumindo músicas (ruins) sem nem prestar uma boa atenção, as degustando tanto quanto lanchar correndo um hot dog, ou engolir qualquer fast food durante o intervalo de meia horinha do almoço na firma.

A popular fita K7

Não por acaso mesmo, é que os saudosistas ainda revivem o mercado das mídias físicas de áudio, e por conta disso ainda não deixaram morrer o apreço por comprar discos (de vinil ou digitais), e fitas cassete, fazendo também de sua audição um ritual à moda antiga. Para essas pessoas, é o seu modo de oferecer resistência ao ruidoso "império dos streamings", e sua também propagadora modernidade líquida.

Voltando ao que se assiste nas telinhas e telonas: soa até cômico lembrar que algumas das grandes telenovelas brasileiras - uma autêntica febre nacional, que já embalou a atenção de tantas pessoas em eras passadas - hoje soam datadas, menosprezadas, e esquecidas, em detrimento de mini tramas simples e produzidas a toque de caixa, algumas com até menos de 50 capítulos, mas que, vindas de países asiáticos (predominantemente China e Coreia), passaram a hipnotizar e monopolizar a atenção de milhares de brasileiros: é o fenômeno atual dos chamados doramas (termo oriental utilizado para a expressão "dramas").







De cima para baixo, algumas telenovelas brasileiras históricas: 
Selva de Pedra (1972), Roque Santeiro (1985), e Pantanal (1990)

Gente noveleira de outros tempos se lembra bem de obras marcantes da teledramaturgia brasileira (especialmente da TV Globo), como Roque Santeiro, Selva de Pedra, Pantanal, Éramos Seis, dentre tantas outras, mas que hoje provavelmente perderiam feio para atrações como Adorável Corredora, Rainha das Lágrimas, Amor pelo Amor, ou o mais recente Pergunte às Estrelas, sucesso da Netflix - doramas que bateram recordes de exibição e acessos no Brasil, consumidos vorazmente feito pipoca, comentados e hypados por milhares de fãs nos streamings de vídeo. 

Histórias simples, rasas, com apelos fáceis e certeiros de humor e romantismo em seus roteiros, que exploram fórmulas de storytelling calcadas em enredos básicos e arquetípicos do drama e da comédia. Exemplos: moça sofredora que vence as dificuldades; rapaz pobre que fica rico no final; casais separados por classes sociais diferentes mas que lutam para ficar juntos; famílias em crise por conta de mentiras e heranças, mas com descendentes que se apaixonam e tentam resolver tudo; e etc, etc... 


Tramas seguindo sempre um formato padrão para serem consumidas de forma rápida, sendo que uma série vai terminando, e logo já vai começando outra - muitas vezes, até com os mesmos atores e equipe de produção, simplesmente como numa linha de montagem industrial. Tudo bem automatizado e mecânico mesmo. E plasticamente irrepreensível: os cuidados estéticos de produção e filmagem são incríveis, com atores e atrizes belíssimos, e notável apuro visual, gravação com câmeras de alta performance e fotografia de primeira!

Afinal, estamos no século 21, as telas de HD das TVs e smarts e monitores de alta resolução pedem isso - não dá pra ficar filmando com aquelas câmeras analógicas de video tape, cuja imagem das novelas antigas fica horrível, borrada e esticada depois no Globoplay (ou nas terríveis reexibições do antigo Chaves, de qualidade risível nas telas do SBT). O esmero técnico das séries orientais é feito para seduzir e atrair cada vez mais seguidores - e superar os espetáculos ocidentais do passado, na preferência popular. 

Conforme dito anteriormente, o consumo é rápido, como pipoca. Pra ajudar a descer, vai então um refri, ou uma aguinha. Da modernidade.

Cena do dorama 'Rainha das Lágrimas' (2024)


--- x ---

Quer fazer parte do nosso grupo de WhatsApp, e receber nossas postagens e matérias fresquinhas, assim que saem, para ver direto no seu celular? Vem, acho que você vai gostar! 

Aqui:   https://chat.whatsapp.com/L3RhRnX6AlxFFY9SmzsiwS

sexta-feira, 16 de maio de 2025

PAUL E MARIANNE - E O CRUEL SINAL DOS TEMPOS...

 

Foi no início deste já complicado ano de 2025 que duas situações diversas, mas de certa forma intrinsecamente conectadas, nos deram um panorama geral de como a passagem do tempo é algo complexo e delicado, e capaz de gerar algumas reflexões que deixam a gente meio perplexo, meio entristecido, meio baratinado... Meio diversos estados, dependendo do momento e do grau de humor em que você se encontra.

São duas situações ligadas às duas maiores bandas de todos os tempos, e que volta e meia são prezadas e referenciadas aqui nas postagens do blog, como muitos já podem ter percebido: Beatles e Rolling Stones.

Primeiramente, a passagem de Marianne Faithfull, em 30 de janeiro, uma das mais representativas figuras do agitado movimento Swingin' London dos anos 60. Ao lado da cantora Lulu, ela era uma das vozes femininas símbolos da geração pop inglesa daquela década, dona de uma personalidade forte e marcante, e que para muitos, será para sempre lembrada como "a namoradinha cantora do Mick Jagger", musa e parceira dos Rolling Stones - estourou nas paradas com a regravação de uma baladinha célebre deles, "As Tears Go By", e se tornou uma das primeiras mulheres "empoderadas" da contracultura, capaz de fazer frente ao poderio de figuras como Alain Delon (com quem estrelou filmes na época) e o próprio Jagger, mas nunca abaixando a cabeça - escolhia seus projetos sem admitir interferências dos "caras", não admitia que seu nome fosse grafado menor ou debaixo dos de artistas homens, e adorava arriscar e apostar no insólito, no diferente e no inesperado. Ousada, já com 51 anos, meteu a voz, cara e coragem na música "Memory Remains", do Metallica, pesadão - se fazendo conhecer por uma nova geração que não fazia nem ideia de quem era ela.

A partida de Marianne nos deixa a incômoda sensação de extinção dos talentos autênticos, daqueles que já não se vê mais, construídos e trabalhados com tempo e dedicação, pois a danada já era multimídia antes da existência dessa palavra, e atacava em diversas áreas com muito talento: assim como outros(as) artistas da época, atuava, performava, e cantava com maestria. E que voz! Diferente e robusta, de um tom mais grave e tratada na base dos Scotch e cigarros,  contrastava com a belíssima imagem de loirinha angelical que ela tinha. 

Hoje, peça para algum(a) influencer que já sai espirrando de YouTube pra Big Brother, e de Big Brother pra novela de TV e streaming (ou mais vídeo de YouTube), pra ver se faz com respeito o que ela fazia... Sem chance. 

Não precisam, pois o algoritmo acolhe e promove toda essa gente meio sem jeito pra ter jeito com o que fica pra sempre na alma.

Um monte de "arte" que se diz arte, feita de modo corrido, mal produzido, automático, empurrado, e meio sem coração hoje em dia.

Quase que simultaneamente à morte de Marianne, apenas 5 dias antes, um de seus bons e velhos conhecidos - que já havia frequentado muita badalação com ela e os Stones em tempos áureos - ninguém menos que o ex-beatle Sir Paul McCartney, concedeu uma senhora entrevista à BBC de Londres, que deu o que falar.

Na boa, e com aquele jeito seu de tiozão simpático sempre de olho nas esquinas, Paul chamou a atenção para as propensas mudanças na legislação inglesa relativa a direitos autorais, que passariam a permitir a implementação de diversas tecnologias de IA (inteligência artificial) na produção de músicas, passando a utilizar conteúdos autorais de compositores como "modelos" para a criação de novas músicas, e sem pagar nada aos legítimos autores - e aí a gente esbarra numa questão polêmica, que é a possibilidade dos primeiros casos de plágio musical digital de IA prestes a surgir por aí!

"Quando éramos crianças em Liverpool, encontramos um emprego que amávamos, mas que também nos ajudava a pagar as contas. Por favor, fiquem atentos, não deixem a inteligência artificial roubar os artistas!" - asseverou Paul.

Eis o choque de que falamos no início. 

O mundo vai mudando, e em muitos aspectos, é para melhor, bem melhor. As novas tecnologias que vieram já salvam muito mais vidas, facilitam a comunicação, a economia, os transportes, e uma enormidade de outras situações. Mas elas também podem servir, e muito, às más intenções. Não agem sozinhas - há  impulsos muito humanos (e mesquinhos) por trás delas. E nesses aspectos piores, elas nos afligem, e nos assustam. 

Quando conduzidas irresponsavelmente, e de forma a sufocar, confiscar ou  adulterar as matrizes do pensamento e da criatividade humanas, se tornam uma ameaça nefasta para gente dessa geração de Paul e Marianne. E, por conseguinte, para todos nós - que, afinal, estamos caminhando para ser uma geração como a deles também.




E agora, finalmente... O nosso PODCAST!

Neste mês, finalmente estreia o podcast promovido por nosso blog, em parceria com os Estúdios Merlin: 'Era um Garoto que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones', uma produção em áudio, onde serão abordados os principais fatos, curiosidades, e principalmente as músicas, dessas que são consideradas as duas maiores e mais influentes bandas de rock de todos os tempos, que fizeram história (e ainda fazem!). Sinta um pouquinho da experiência dando play no radinho que segue logo abaixo:

Para contribuir com esse trabalho, solicitamos o valor módico de apenas R$ 10 (dez reais), e com essa ajudinha, além de receber o link para curtir essa experiência cultural e sonora, você ainda vai ganhar, no e-mail ou número indicado, um brinde surpresa que a gente garante: quem é fã, vai com certeza adorar.

Preencha o formulário no link abaixo, e tenha desde já acesso ao podcast 'Era um Garoto que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones'!

Formulário podcast

 



 --- x ---

Quer fazer parte do nosso grupo de WhatsApp, e receber nossas postagens e matérias fresquinhas, assim que saem, para ver direto no seu celular? Vem, acho que você vai gostar! 

Aqui:   https://chat.whatsapp.com/L3RhRnX6AlxFFY9SmzsiwS

sexta-feira, 2 de maio de 2025

RAMBO 2: ANIVERSÁRIO E SIMBOLOGIA NO MUNDO ATUAL

Neste mês de maio de 2025, faz 40 anos que foi lançado um dos maiores sucessos do cinema de ação até hoje: Rambo 2 - A Missão, filme de George Pan Cosmatos, com o astro Sylvester Stallone como protagonista, reprisando papel que já havia desempenhado três anos antes, no filme Rambo - Programado para Matar (First Blood, 1982).

Hoje, como se tornou fato da mitologia pop e muitos já sabem, o romance original que deu origem ao personagem, lançado pelo autor canadense David Morrell, ainda num distante 1972, retratava um barbudo e quase maltrapilho veterano da guerra do Vietnam chegando a uma cidade no interior do Kentucky (EUA), sendo hostilizado pela população e, principalmente, pela polícia do lugarejo. 

First Blood (no Brasil, 'Primeiro Sangue'), romance do escritor canadense David Morrell, que daria origem ao personagem Rambo

Chamado Rambo (o nome John Rambo seria uma invenção do filme, anos depois), ele procura por um bom lugar para descansar e comer, e apesar de carregar as insígnias de um autêntico herói dos campos de batalha, ele é preso e torturado, no que seria considerada uma das mais duras e tocantes críticas à forma como a nação norte-americana passou a tratar aqueles que estavam retornando de um episódio moralmente dúbio e reprovável, a "guerra comprada" de Nixon e seus asseclas políticos, um conflito no qual o Tio Sam se meteu sem precisar, por pura ideologia política, e condenado pela opinião pública, devido aos gastos milionários em uma época de extrema crise social e recessão econômica. Essa reação ao "pária" da guerra, o indivíduo agora considerado vagabundo e desajustado, que não consegue se reintegrar à sociedade normal depois que virou militar bicho do mato, é centralizada na figura do xerife local, Will Teasle. Ele é o antagonista do personagem.

Os personagens de John Rambo (Stallone) e xerife William Teasle (Brian Dennehy), do primeiro filme, First Blood (no Brasil, 'Rambo - Programado para Matar'), de 1982

Humilhado e acuado, Rambo então foge da cadeia e revida, voltando a se tornar justamente o bicho do mato selvagem e agressivo que aprendeu a ser nos campos de batalha, na luta pela sobrevivência nas selvas do Camboja: com armas rudimentares, e truques de tática militar e armadilhas, ele enfrenta sozinho toda a força policial, que passa a caçá-lo com cães, helicópteros, e a ajuda da Guarda Nacional, nas regiões de floresta próximas ao local, até conseguir voltar à cidadezinha e enfrentar o xerife em sua própria delegacia, num final violento e apoteótico, mas que traz ao leitor profundas reflexões sobre os horrores psicológicos infligidos pela guerra, o abuso de poder das autoridades, seus preconceitos, e o caos social que advém de tudo isso.

De modo a evitar os sempre indesejáveis spoilers (caso alguém queira ler o livro), pode-se apenas dizer que o final desse livro e do filme que Stallone estrelou em 1982, baseado nele, são muito diferentes. E que, apesar do diretor do primeiro filme do Rambo, Ted Kotcheff, ter declarado em entrevistas posteriores de que gostaria de ter filmado a história de um modo semelhante ao enredo original do livro, ele acabaria revelando que, por sugestão do próprio Sylvester Stallone, algumas coisas tiveram que ser alteradas. O filme fez relativo sucesso, Stallone havia gostado bastante de interpretar o personagem, e achava que ele tinha potencial e chance para que uma sequência mais ambiciosa fosse produzida, algum tempo depois.

É aqui, então, que chegamos ao impacto que Rambo 2 provocou, nas audiências e na mídia do mundo inteiro, quando chegou aos cinemas, naquele ano de 1985. O sucesso e a polêmica andaram lado a lado, e igualmente, na trajetória dessa obra milionária, que faturou de cara 44 milhões de dólares, se tornando um filme icônico, assistido e comentado por toda parte, e que transformou o personagem em uma das três maiores marcas registradas do ator Sylvester Stallone em sua carreira - as outras duas sendo Rocky, o lutador, e em menor escala, o policial do violento filme Cobra (de 1986).


Vejamos o contexto sócio-político em que os EUA se encontravam, em plena  gestão do presidente republicano Ronald Reagan (1981-1989), na qual era pungente a preocupação com o resgate de fortes símbolos patrióticos, um maior impulso para reerguer a economia e o protagonismo do país, como um forte e ainda combativo paladino contra a ameaça dos países comunistas, no âmbito da Guerra Fria. Era vital restaurar a sua imagem de hegemonia bélica, se opondo ao papel do Kremlin e da União Soviética (que começaria a ruir a partir daquele ano, com a ascensão de Mikhail Gorbachev ao poder). A serviço de Washington, através de seus dólares e contatos congressistas, Hollywood e as grandes produtoras tinham no cinema uma força perfeita de propaganda e expansão desses ideais.

'De Volta para o Inferno' (1983), com Gene Hackman: 
filme que seria a síntese para o segundo episódio da saga Rambo

Comungando com tais princípios, Stallone já estava comprometido a promover um autêntico "resgate" do herói americano imbatível, e incrivelmente se baseando em uma história que havia sido filmada pelo mesmo Ted Kotcheff, diretor do seu primeiro filme como Rambo, Uncommon Valor (no Brasil, De Volta para o Inferno), de 1983, com Gene Hackman no elenco, ele estava disposto a fazer o veterano combatente por quem ele tinha fascínio voltar à ativa, e desta vez, retornando ao Vietnam!

Necessário dizer que, assim como outros artistas daquele período, Stallone estava tão alinhado com as ideias patrióticas em voga, que até mesmo o quarto capítulo de sua famosa saga do lutador de boxe, que sairia ainda no final daquele ano (Rocky IV), aludia à Guerra Fria, e trazia o célebre pugilista enfrentando no ringue ninguém menos que... um russo - Ivan Drago (interpretado por Dolph Lundgren), uma máquina comunista anabolizada para moer na pancada adversários do Ocidente!

Rocky 4

Agora, um relutante (mas ainda cheio de mágoa e ódio) John Rambo, ruminando tudo o que viveu, todo o desprezo da sociedade, e toda a tristeza de memórias das pessoas queridas que perdeu na guerra, deveria aceitar a missão de voltar lá, para resgatar companheiros americanos ainda prisioneiros de guerra em acampamentos vietnamitas militares, sobre os quais havia pistas descobertas por um grupo especial comandado pelo seu amigo veterano, o Coronel Trautman (Richard Crenna).

E, sim, é justamente isso que acontece, para quem ainda não viu o filme até hoje: Rambo volta ao Vietnam, liberta e arrebata os prisioneiros americanos, toca o terror geral, e de certa forma, ganha (sozinho) a guerra que seu país não ganhou -  conforme várias publicações da época citavam. (Aqui preciso dizer: não há spoiler nenhum em falar isso, pois são públicas e notórias as outras continuações que Rambo teve depois, tornando óbvio que o personagem vence no final desse segundo filme).

No panorama das artes cinematográficas, vivíamos um cenário em que viraram tendência e sensação os filmes protagonizados pelos chamados 'brutamontes' da ação, seres invencíveis que distribuíam murros, tiros e bombas a torto e a direito, e que passavam a ter os astros Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger como seus luminares máximos. Eram bastante criticados pela imprensa especializada, devido à propalada "capacidade dramática mínima" de suas atuações, e pela enorme quantidade de violência e situações consideradas canhestras ou inverossímeis, nos filmes. Músculos demais, cérebros de menos, porrada e explosão comendo solta pra tudo quanto é lado, e dá-lhe blockbusters e o dinheiro jorrando nas bilheterias, uma época dourada para as produtoras que não volta mais (hoje se compara, talvez, somente aos filmes de heróis de quadrinhos, Marvel e DC - mas até isso já não é como antes).

Necessidades de "suspensão da realidade" à parte, devo dizer que 'Rambo 2 - A Missão', assistido hoje sem os arroubos de emoção e animosidade política do passado, pode ser tecnicamente considerado uma boa película de ação, com cenas de confronto e tensão excelentemente orquestradas, montagem dinâmica, um roteiro bem conduzido com certa eficácia e agilidade, e saídas argumentativas plausíveis e coerentes, superando com tranquilidade muita coisa ruim que vem sendo produzida em termos de filmes de ação e aventura, recentemente. O discurso de Rambo no final do filme, reclamando das desventuras que teve que passar para resgatar os soldados prisioneiros, e quase tendo a sua missão sabotada, foi considerado piegas por muitos. Hoje, eu diria que foi um esforço admirável de Stallone em dar o sangue para rodar uma tomada de cunho mais dramático e emocional, condizente com o tom da mensagem que o filme pretendia passar. Essa entrega, nos filmes de hoje, a gente não vê.

John Rambo retorna ao Vietnam e toca o terror

O que pode tornar o filme um pouco incômodo, para certas plateias atuais, detentoras de um olhar mais crítico, é o fato de que, apesar de seus agora 40 anos de idade, ainda pode ocorrer uma identificação ideológica com a sua simbologia pregressa, tendo em vista a atual geração do poder norte-americana.

O recorrente desejo de superação (ou recuperação) dos EUA, na figura de seu atual presidente (também republicano) Donald Trump, acirrando uma verdadeira guerra comercial com os países do restante do mundo, para garantir o sucesso de uma política cambial agressiva (e arriscada) de fortalecimento do mercado interno norte-americano, ao mesmo tempo em que toma frente em campos de batalha externos diversos (como a questão da Palestina e da Guerra da Ucrânia), passa a projetar o país novamente como um mártir libertador do Ocidente e do liberalismo moderno, deixando transparecer o receio de se curvar diante de uma "ameaça" de tons vermelhos, a China emergente, potência nascida como um império comunista, que agora tudo domina, tudo vê, e em tudo se expande e se adapta (IA e tecnologias, principalmente). 

Mais uma vez, os EUA se encontram ameaçados. "Oh, quem poderá nos salvar?". Periga não ser o Trump, o Musk, e nem mesmo o Chapolin Colorado.

Em tempos de desespero e ansiedade para retomar a glória e o tempo (dinheiro? bitcoins?) perdido, até que viria a calhar uma espécie de Rambo da geração Z, em uma nova roupagem, alusiva àquela de peitoril malhado, facão e fuzis de outra encarnação, mas que no lugar desses itens, simplesmente lançasse mão de um arsenal vigoroso e absurdo de vírus, fake news, ferramentas de IA e drones, de forma a derrubar e exterminar qualquer sistema de defesa considerado um inimigo da "liberdade".




 --- x ---

Quer fazer parte do nosso grupo de WhatsApp, e receber nossas postagens e matérias fresquinhas, assim que saem, para ver direto no seu celular? Vem, acho que você vai gostar! 

Aqui:   https://chat.whatsapp.com/L3RhRnX6AlxFFY9SmzsiwS

SÉRIES, DORAMAS E STREAMING: A MODERNIDADE LÍQUIDA NAS MÍDIAS

  'Pergunte às Estrelas': dorama sensação da Netflix, em 2025 A Rede Globo já se prepara, após uma transmissão experimental realizad...