sábado, 18 de maio de 2024

10 MOMENTOS 'DESTRUCTION' DO GUNS N' ROSES

 

No momento em que este texto é produzido, o estado do Rio Grande do Sul continua sofrendo os abalos do já histórico desastre natural produzido pelas chuvas intensas que causaram enchentes e transbordamentos, alagando e devastando várias cidades. Neste panorama catastrófico, é sabido que diversas autoridades, artistas e celebridades, inclusive internacionais, tem feito doações, campanhas, e oferecido extensa ajuda para os desabrigados e demais atingidos por tanta calamidade. Nessa galera se inclui a célebre e mundialmente conhecida banda Guns N' Roses

Para quem vê esse pessoal hoje todo tiozão, e posando de filantropo, sem conhecer o passado deles, mal pode imaginar o tanto que eles já representaram um outro papel, para as gerações passadas... Algo que mostra que todo mundo é falível, todos envelhecem e amadurecem, e ninguém está imune à prova do tempo! (E recomendo uma bela olhada na até melancólica série sobre o Bon Jovi que está em cartaz no Star +, 'Thank You, Goodnight', para se ter uma boa ideia disso...).

Eu passei a minha juventude ouvindo (e muito) o Guns. A trupe do famigerado e notório vocalista Axl Rose foi elevada a um status quase mítico, na virada do final dos anos 80 para os anos 90, devido ao fato de que passávamos por um cenário de música pop e rock muito comercial e pasteurizada, com restolho de movimentos como o new wave, rap, e o techno pop, com uma profusão de teclados, ritmos e sonoridades radiofônicas que beiravam o brega, e tornavam praticamente insuportável a vida do ouvinte jovem que, como eu, queria algo mais cru e legítimo. 

Ninguém tinha acesso a grandes fontes de gravações, ou shows. Lembre-se que a internet não existia, ou seria algo próximo, talvez, de algum delírio futurista.

A saída, então, para quem não era metal lover ao extremo, e queria ouvir bandas com um som mais rebuscado, calcado nas velhas bases e tradições do blues pesado e hard rock das décadas anteriores, era procurar por bandas mais nesse estilo, que ou eram muito raras e difíceis de achar, ou estavam mais na seara do que chamamos de glam rock ou, num termo mais pejorativo, "hard rock farofa". Caras como Motley Crue, Great White, Dokken e vários outros - até mesmo o Bon Jovi, durante uma certa época. O som tinha peso e intensidade? Tinha um pouco, mas o visual, com aqueles cabelões, maquiagem excessiva e roupas coloridas, hummm... que cafona. (Devemos nos lembrar que a onda revolucionária do grunge e bandas de Seattle viria bem mais depois)

A formação clássica, da esquerda para a direita: Duff, Axl, Slash, Steven e Izzy

Mas de repente, no meio de toda essa fauna, surge em Los Angeles um grupo que começava a dispensar todos esses adornos, se concentrar mais na selvageria do som, e com muita criatividade, criar novas canções com as raízes focadas naquela velha turma dos 70: Aerosmith, Led Zeppelin, Stooges, AC/DC, ou seja, todos os irmãozinhos da verdadeira alma roqueira, sem firulas e sem frescuras.

Era 1987, e o combo integrado por Axl Rose (vocais), Slash (guitarra solo), Izzy Stradlin (guitarra rítmica), Duff McKagan (baixo), e Steven Adler (bateria) arrebentou nas paradas com o lançamento do petardo Appetite for Destruction, um dos discos de rock mais vendidos da história. Durante cerca de quase uma década, até meados de 1995/96, o Guns N' Roses foi uma das mais poderosas e representativas bandas do mundo, e inspiravam autenticidade, rebeldia e perigo - principalmente pelas atitudes tresloucadas de Axl, que acabou se firmando como seu líder. 

O megaplatinado álbum 'Appetite for Destruction' (1987), nas duas versões que saiu - a da capa censurada, acima, e a outra liberada para vendas em redes de lojas dos EUA, abaixo


A seguir, 10 momentos na carreira do Guns que mostram porque eles um dia já foram bem 'destruction'.


1 - O COMEÇO NAS RUAS

O grupo foi montado a partir dos membros dissidentes de duas outras bandas que tentavam a sorte em Los Angeles, o Hollywood Roses (de onde saíram Axl e Izzy), e o L.A. Guns (que contava com Tracii Guns na guitarra, Ole Beich no baixo, e Robbie Gardner na bateria), em 1985. Resolveram, por sugestão de Axl, batizar o novo grupo com uma junção de nomes das bandas anteriores, assim ficando Guns and Roses (simplificado para Guns N' Roses). Foi no decorrer desse ano que, após algumas poucas apresentações em casas de show pra lá de fuleiras, o pessoal do L.A. Guns foi debandando, e assim, Tracii deu lugar a Slash, Ole Beich saiu para a entrada de Duff, e Robbie logo seria substituído por Steven Adler. No início de 1986, esta primeira formação clássica da banda já estava consolidada, ensaiando e fazendo shows. Mas o que poucos talvez saibam, era a extrema dureza em que os caras viviam, sem um tostão no bolso, e muitas vezes tendo que morar de favores em pensões ou casas de fãs e groupies, pegar dinheiro emprestado de conhecidos para comprar equipamento e instrumentos, sem nenhum previsão de como ou quando pagar, além de até mesmo traficar e  cometer alguns pequenos furtos, quando não era algo muito complicado.

Axl Rose

Izzy mesmo conta, em uma de suas antigas entrevistas, que ele e Axl (amigos de infância) vieram da pequena Lafayette, em Indiana, com uma mão na frente e outra atrás, e durante um bom tempo, fizeram alguns bicos de "entrega" (imagine do que), e moraram de favor com algumas prostitutas caridosas, com quem fizeram amizade... Axl também trabalhou durante algumas semanas em uma locadora de vídeos pornô "barra pesada", de West Hollywood. E pra fechar com chave de ouro: quando da primeira reunião de negociação para assinarem um contrato de gravação, os caras do Guns sugeriram que fosse em um dos restaurantes mais chiques de L.A. Motivo: antes de tudo, tirar a barriga da miséria na conta da gravadora, pois estavam há dois dias sem comer quase nada.

Imagem que capta o grupo em sua fase inicial, num show realizado no final de 1985, com roupas de couro, Axl com cabelo ruivo arrepiado e quepe, e temática punk

 

2 - RAÍZES PUNK

Eis uma das coisas que foram cruciais para destacar e diferenciar o Guns no imenso nicho das bandinhas de hard rock farofa que infestavam L.A., na época: eles tinham uma firme e dedicada predileção por bandas punk. Isso fez com que baseassem toda a sua produção inicial na instrumentação padrão guitarra/baixo/bateria, a despeito de Axl ter tido uma formação clássica de voz e piano quando participava do coral de uma igreja de sua terra natal, Lafayette. É graças a Axl, aliás, que as produções posteriores do grupo vão ficando cada vez mais grandiosas e rebuscadas, em termos musicais, visto que o cara sempre foi fã confesso de Elton John e Freddie Mercury, e isso ficaria nítido a partir do álbum Use Your Illusion, de 1991 em diante. Mas até ali, além das bandas primordiais de hard rock dos anos 70, era muita inspiração em figuras como Sex Pistols, Dead Boys, New York Dolls e Misfits, dentre outros - principalmente por parte de Duff, que tocava antes em bandas punk de Los Angeles, e fez questão de mandar sua versão de "Attitude", no disco de covers do Guns, Spaghetti Incident (1993).  

Izzy e Duff em algum momento de 1985


Welcome to the Jungle (1987)

 

3 - AS MORTES DE OLE BEICH E WEST ARKEEN

As peripécias do Guns com lances arriscados esbarram na tragédia em dois momentos pouco lembrados:  os quase membros do grupo que já morreram. O primeiro foi Ole Beich, o ex-baixista da banda, que reza a lenda, tocou com eles apenas em 2 shows no início de carreira, e era um sujeito dinamarquês loiro e boa pinta, radicado em Los Angeles e que já havia tocado em vários grupos de sua terra natal, sendo que havia decidido tentar a sorte na América. A trajetória de Beich após deixar a vaga que seria ocupada por Duff McKagan é obscura e errática - ainda tentou algumas chances em outras pequenas bandas de L.A. enquanto o Guns batalhava o caminho para a fama, mas acabou se envolvendo muito com drogas e traficantes locais e, em 1988, exatamente no momento em que seu ex-grupo havia subido a jato nas paradas e conquistado o mundo, ele decide retornar para Copenhagen, na Dinamarca. Lá, ele tenta levar uma vida normal e retornar à rotina de acompanhar bandas locais, mas segundo familiares, volta e meia o passado de ter sido quase um gunner e que poderia ser um roqueiro famoso o assombrava, e ele voltava a se drogar. Não se sabe se foi um gatilho ou não, mas um mês depois de uma apresentação do Guns N' Roses na Dinamarca, durante a turnê de 1991, Ole consumiu toda a heroína que podia, encheu a cara de whisky, e relatou a alguns amigos que iria pescar no  bucólico Saint Jorgens Lake, em Copenhagen... de onde nunca mais voltou com vida. A autópsia em seu corpo determinou um afogamento involuntário, acidental, mas a maioria de seus parentes até hoje sustenta que ele estava depressivo, e que tudo se tratou de um suicídio.

Ole Beich



West Arkeen era músico, guitarrista e compositor prolífico, que já havia ajudado e tocado com o Guns em várias jams da banda em seu início, mas nunca quis fazer parte do grupo. Discreto, preferia ajudar nas composições e fazer parte dos bastidores. Enganchou uma forte amizade e parceria com Axl e Izzy assim que eles chegaram a Los Angeles, e graças a ele, clássicos do grupo como "Its So Easy", "Yesterdays" e "Bad Obsession" foram criados. Arkeen era um junkie inveterado, e apesar de várias tentativas de reabilitação, acabou sendo encontrado morto em seu apartamento em 30 de maio de 1997, vítima de uma overdose.

West Arkeen

 

4 - MONSTERS OF ROCK, EM CASTLE DONINGTON (1988)

Conforme dito anteriormente, em 1988 os Guns N' Roses ostentavam visivelmente o título de "a maior banda do mundo", eram a sensação do momento após o lançamento dos discos Appetite for Destruction e GN'R Lies, e parecia não haver nada que os derrubasse ou fizesse parar, um próximo álbum era aguardadíssimo, e todos queriam ter mais daquela combinação pegajosa de rock pesado com uma vozinha aguda e rasgante super reconhecível (de Axl), a dupla de guitarras azeitadas e acachapantes de Slash e Izzy, o baixo forte e preciso de Duff, e a bateria estrondosa de Steven Adler. Turbinados pelas incessantes exibições dos clipes de "Welcome to the Jungle" e "Sweet Child O'Mine" na MTV, não havia lugar no globo onde não fosse desejada uma apresentação do grupo, por mais polêmicos, brigões e mal encarados que fossem (principalmente com a imprensa, que A-M-A-V-A malhar eles). Mas logo, os longos atrasos, além de atitudes e discursos inflamados de Axl on stage, pelos mais diversos motivos, fariam aflorar tumultos gigantescos em algumas apresentações da banda ao redor do mundo. E um dos episódios fatídicos ocorreria no dia 28 de agosto daquele ano, quando eles foram se apresentar no tradicionalmente célebre Festival Monsters of Rock da Inglaterra, em Castle Donnington - que tinha medalhões como Iron Maiden, Kiss e Megadeth entre os headliners. A capacidade de público foi excedida, Axl dava alfinetadas ao vivo na organização do evento, e após um quebra-pau no meio da plateia ter início durante a apresentação flamejante do Guns, dois jovens morreram e um terceiro ficou seriamente ferido. 

 

5 - "MR. BROWNSTONE" NO L.A. COLISEUM (1989)

18 de outubro de 1989 foi o dia em que os Guns N' Roses quase implodiram na frente de uma plateia de milhares de pessoas, ao se apresentarem fazendo a abertura de um show dos Rolling Stones, no L.A. Coliseum. Os pupilos preparando o terreno para os mestres, naquilo que era tido como uma das mais perfeitas celebrações do rock na época: durante o set dos Stones, alguns dos gunners chegavam a fazer participação especial, como em um famoso momento em que Axl e Izzy acompanham Mick Jagger no palco durante uma belíssima execução de "Salt of the Earth". Mas no show daquela noite, em específico, a barra pesou durante a apresentação do Guns mesmo: em um determinado momento, Axl se dirige à plateia nos seguintes termos: "Creio que este é o nosso último show. Infelizmente, alguns caras por aí já estão dançando há muito tempo com Mr. Brownstone ('Sr. Heroína'), e não devem ir muito longe, e isso não me agrada", e logo em seguida emendam justamente com uma execução encapetada da icônica "Mr. Brownstone", que contém justamente essa linha sobre a dança na letra do refrão. O fato é que Slash, Duff e especialmente Steven Adler estavam tão afundados no vício por heroína, faltando a ensaios e compromissos e tão chapados em certos dias, que esta foi a maneira de Axl dar um recado, em público, de que estaria caindo fora da jogada caso seus colegas não dessem um jeito na vida. Logo após isso, Slash procurou ajuda e se recuperou. Duff também. Mas Steven, infelizmente, não. Logo seria "convidado" a se retirar da banda. Seu substituto seria o ex-batera do The Cult, Matt Sorum.

 


6 - A INSPIRAÇÃO DE "COMA" E "ESTRANGED" (1991)

O episódio ocorrido no L.A. Coliseum poderia expressar uma ideia de que Axl era o certinho do grupo ao dar puxão de orelha nos seus colegas sobre as drogas, o que não é verdade. Ele apenas se colocava na posição de líder e assumia mais certas responsabilidades, mas também tinha lá seus problemas pessoais, emocionais (que não eram poucos), e afundava bastante o pé na jaca, algumas vezes. Duas das mais famosas músicas lançadas no épico e megalomaníaco projeto Use Your Illusion - dois álbuns duplos em LP, ou dois CDs completos de material inédito, mostrando uma nova faceta do grupo, em 1991 - são baseadas em problemas complexos do vocalista da banda com relacionamentos e substâncias químicas. Enquanto "Coma" era uma longa viagem de 10 minutos sobre uma overdose sofrida por Axl alguns anos antes (mas que também citava uma outra, sofrida por Slash), "Estranged" buscava reminiscências nas recentes terapias que Axl fazia para tentar se livrar dos vícios, bem como no iminente fracasso do seu casamento com a modelo Erin Everly. 

Coma

 

7 - TUMULTOS NA 'USE YOUR ILLUSION' TOUR

Não foram poucas as ocorrências policiais durante uma das mais longas turnês do rock de que se tem notícia, a "Use Your Illusion Tour", que durou de 1991 a 1993, varrendo todo o planeta, e que tinha que ser à altura de um álbum tão extenso e grandioso (quanto pretensioso, para alguns). Com esse trabalho, visivelmente capitaneado por Axl, a intenção parecia ser deixar um pouco de lado o som mais punk e agressivo que o Guns fazia anteriormente, e tentar colocar a banda ao lado de mega agremiações no panteão do rock, como Led Zeppelin e, especialmente, Queen. Muitas canções longas, com instrumentais mais variados, mudanças rítmicas, e Axl tocando um monte de piano - um dos hits do disco, "November Rain", seria inimaginável na carreira da banda alguns anos antes, apesar de já existirem demos com a composição da música desde a época de Appetite for Destruction, como mostra a reedição deluxe desse disco com gravações inéditas. Mas o problema era o stress acumulado nessa exaustiva tour, que talvez tenha durado mais do que o devido, e levou o grupo a uma estafa tão grande, que eles praticamente acabaram e ficaram separados uns bons anos, antes de voltarem com a formação original mais recentemente. 

O ritmo psicótico dessa turnê acabou com o sistema nervoso de Izzy Stradlin, um cara mais calmo e pacato, que já andava cansado de todo o megaestrelato e barulho em torno do Guns - nem a longa amizade de infância e as súplicas de Axl foram suficientes para mantê-lo no grupo, e ele foi a dissidência seguinte, sendo substituído pelo guitarrista Gilby Clarke. Alguns exemplos de discórdia braba durante a "Use Your Illusion Tour": em um show na Filadélfia, em junho de 1991, Axl desafia um fã na plateia que havia começado uma briga com o fotógrafo oficial da banda, Robert John, e quase pula no cara; em outro show, em Riverport, no mesmo ano, ele chega a pular no meio da multidão para ir atrás de um outro fã que estava tirando fotos não autorizadas do show, mas não consegue pegar o cara, então xinga os seguranças contratados, e abandona o show; e em Buenos Aires, na Argentina, em 1992, ele dá início a mais um de seus discursos inflamados no palco, ordenando que algumas pessoas da plateia parem de atirar copos e outros objetos neles, e ameaça parar o show, novamente causando um tumulto na plateia que, por pouco, também não causa mortes e ferimentos. 

Gilby Clarke e Slash

 

8 - A "CADEIRA VOADORA" DE AXL EM SP (1992)

É óbvio que, por mais que o cara sempre declarasse amar o Brasil, e que tem um super afeto pelo país (ele chega a dizer que tem uma 'mãe brasileira', a empresária Beta Lebeis, sua assessora há muitos anos), Axl também tinha que ter seus momentos de "rompante" em nossa terrinha. E isso ocorreu também durante uma das passagens do grupo por aqui na "Use Your Illusion Tour": em 11 de dezembro de 1992, na segunda vinda da banda (a primeira havia sido no ano anterior, para o Rock in Rio 2), o grupo estava hospedado no hoje extinto Maksoud Plaza, de São Paulo, quando, por volta das 2h da madrugada, a assessoria do cantor solicitou que o esquadrão de jornalistas e papparazzi que ainda estavam plantados no saguão do hotel aguardando para efetuar alguns "flashes" se retirassem, pois ele gostaria de descer para uma partidinha de sinuca. Pedido não atendido - sobretudo pelo próprio hotel, que tinha o costume de permitir o livre acesso de jornalistas a qualquer momento, nessas ocasiões - e Axl não titubeou: pegou uma cadeira de metal e, direto do segundo andar onde se encontrava, arremessou na galera que estava lá embaixo. Imagina o Deus nos acuda. Correram na delegacia, deram queixa do cara (atendida pelo delegado de plantão, Naled Saaf Neto), o empresário da banda foi chamado para depor, e Axl corria o risco de pegar cana de 3 meses a 1 ano de detenção assim que retornasse ao país, por ameaça à vida e integridade física dos nobres representantes da imprensa! Depois de umas conversinhas e pedido de desculpas oficial encaminhado, foi tudo resolvido e pronto, deu pizza - aliás, pizza não, macarrão! Pois foi divulgado que logo após o incidente, Axl teve fome e ainda saiu para dar um rolé e comer macarronada com sua namorada na época, esticando a noite na capital paulista. 

Axl dando asas à cadeira, em SP 

 

9 - OS BASTIDORES TENSOS DE "SYMPATHY FOR THE DEVIL" (1994)

É hoje sabido que a última gravação oficial com o que ainda restava da formação clássica dos Guns N' Roses, antes de separarem e por um longo hiato de mais de vinte anos, foi uma regravação do clássico dos Rolling Stones, "Sympathy for the Devil", em 1994, que faria parte da trilha sonora do filme do mesmo ano com Tom Cruise e Brad Pitt, Entrevista com o Vampiro. A banda, naqueles dias, era composta por Axl, Slash, Duff, Matt Sorum, e o guitarrista Paul Tobias, amigo de Axl, que já havia então entrado no lugar de Gilby Clarke, despedido após um desentendimento com Axl. Acontece que Gilby havia estreitado laços com Slash durante a turnê de Use Your Illusion, ficando amigos, e Slash não ia muito com a cara de Paul Tobias. Além de tudo, já estava também meio de saco cheio com o próprio Axl, que a essa altura, era só mandos e desmandos sobre o que o Guns deveria fazer... A gota d' água foi justamente sobre o modo que o solo de guitarra para "Sympathy" deveria ser gravado: Axl não estava nos estúdios, e deixara recomendações expressas com a produção de que Slash deveria tentar tocar "reproduzindo ao máximo" o estilo original do solo de Keith Richards, dos Stones, na guitarra. Slash, obviamente, leu o recadinho, virou a cara, mandou um belo f***, e registrou o solo do jeito que ele bem entendia. Qual não foi a sua surpresa quando, algumas semanas depois, ao receber a sua cópia do single para ouvir, Slash percebeu que Axl simplesmente havia sorrateiramente limado a sua gravação do solo, e colocado no lugar um outro, gravado por Paul Tobias, do jeito que ele queria. É isso aí, era o fim do Guns original. E Axl, agora sozinho e carregando legalmente o nome 'Guns N' Roses', tentaria arregimentar um sem-fim de músicos, e seguir adiante com sua louca cavalgada rumo a algo chamado Chinese Democracy... 

Chinese Democracy

 

10 -  A EPOPEIA SINISTRA DE 'CHINESE DEMOCRACY'

Os 12 anos que separam a concepção desse disco (em 1996), de seu efetivo lançamento (2008) já constituem uma dos mais famigerados e bizarros conjuntos de lendas e histórias peculiares na história da música. O "eternamente adiado" álbum do Guns N' Roses é, na verdade, muito mais um projeto solo e pessoal de Axl Rose, como muitos consideram (eu incluso). Existem bons momentos, como em "Madagascar", "Catcher in the Rye", e mesmo na faixa-título. Mas são tantas camadas de guitarras e teclados, tanta batida eletrônica embolada e misturada junto num bolo de instrumentos diversos, que tenta emular algo próximo do que passou a ser conhecido como "nu metal", que a coisa toda ficou meio descaracterizada, não tem realmente muito a ver com o som original dos Guns N' Roses. Foram tantos gastos, entra-e-sai de músicos contratados, mixagens e remixagens, e substituições de takes, que Chinese se tornou, com facilidade, uma das maiores piadas do mundo do rock durante um bom tempo. A data de lançamento foi anunciada e alterada praticamente umas 7 vezes. De guitarrista doidão e obcecado com galinhas, que cobria sua cabeça com um baldinho da rede Kentucky Fried Chicken e montava galinheiros no estúdio (o bisonho Buckethead), a confusões de Axl com a lei nas poucas vezes em que saía de seu longo período de reclusão (prisão por insulto a funcionários num aeroporto em Phoenix, Arizona, em 1998, e multas e apreensão de veículos por excesso de velocidade e som alto), uma série considerável de fatos turbulentos decorou a trajetória da obra até o seu lançamento. Com a sua nova "formação", o grupo de Axl realizou alguns acidentados shows e  mini-turnês (incluindo uma memorável participação no Rock in Rio 3 aqui no Brasil, em 2001), mas nada que chegasse aos pés da banda original, em sua fase áurea. Para ver novamente o Guns com Axl e aquele guitar man de cartola e cigarrinho no canto da boca, no palco, seria só de 2016 em diante, após a bandeira da paz levantada entre Axl e seu velho parceiro Slash...


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sexta-feira, 26 de abril de 2024

VERA CRUZ: O PROTÓTIPO DO REALISMO NO WESTERN

 

Em 1954, um faroeste com os galãs Gary Cooper e Burt Lancaster seria lançado sob a direção do grande Robert Aldrich, causando estardalhaço e certa polêmica na mídia da época... O porquê? Ao se aprofundar na cobiça e mesquinharia de suas personagens, talvez ele fosse realista demais para muitos aceitarem.

Vera Cruz passou a ser considerado, dessa forma, o precursor de um filão que seria uma das últimas grandes reinvenções do gênero western, alguns anos depois: o western spaghetti (ou 'bangue-bangue à italiana'), os filmes de cowboy produzidos na Itália, por Sergio Leone, Sergio Corbucci e comparsas, visto que neles, a crueza e a malandragem das figuras típicas do cenário épico do Oeste americano eram desvendadas de forma explícita e descarada, sem firulas.

O imaginário dos anos 1950, no panorama cinematográfico ianque, ainda estava acostumado com os tipos altruístas de John Wayne, Henry Fonda e James Stewart, nos diversos faroestes de John Ford e Howard Hawks. Não havia muito lugar, na cabeça das pessoas, para canalhas gananciosos como protagonistas de um gênero pródigo em heróis icônicos, como os mocinhos Tom Mix, Roy Rogers ou o verídico Wyatt Earp.

No enredo do filme, o ex-soldado sulista Ben Trane (Gary Cooper) conhece por acaso o bandidão Joe Erin (Burt Lancaster, impagável) durante um negócio de compra de cavalos, e acabam se envolvendo em um movimento de mexicanos rebeldes que tramam para derrubar o imperador mexicano Maximiliano. No entanto, ao tomarem contato com as forças imperiais, encontram uma oportunidade ímpar de transportar ouro para as mesmas (bem como de afaná-lo), e mudam de lado como quem troca de camisa, se envolvendo com uma condessa pra lá de suspeita que também tem interesse no carregamento, e toda a sorte de perigos e aventuras nessa empreitada. Ambos são ases no gatilho, e uma insólita "amizade" entre eles nasce, motivada por essa ambição pelo ouro - só que mais para frente, as coisas se complicarão. O diretor Robert Aldrich sabe trabalhar muito bem todas essas ambiguidades no relacionamento das personagens, e diversas nuanças vão se revelando ao longo da trama. Filmaço (disponível na Prime Video, aproveite enquanto ainda está).

Como se percebe por esse plot, o vai e vem de situações por conta de pegar o ouro e passar os outros para trás é tão intenso, que realmente é o tipo de situação que veríamos em um sem-fim de filmes de faroeste italiano que só seriam produzidos uma década depois. 

O pistoleiro almofadinha de Lancaster marcaria época, relegando o ator a uma má fama de "cafajeste" da qual ele conseguiria se livrar só muitos papéis depois, graças à sua genial caracterização como um vilão cativante, que sorri o tempo todo, e não mede esforços para obter êxito. Para a lendária crítica de cinema Pauline Kael, o seu Joe Erin é um dos maiores sociopatas da história do cinema americano de ação, de todos os tempos.

E aqui vai uma baita curiosidade: você vai encontrar novinhos, como comparsas do bando de Erin, os célebres George Kennedy (Aeroporto, Corra que a Polícia Vem Aí), Ernest Borgnine (Meu Ódio Será Sua Herança), e ainda, pasmem, um Charles Bronson quase moleque - e o melhor de tudo, já treinando soprar na harmônica muitos anos antes de interpretar seu personagem do mítico Era Uma Vez no Oeste (1968), de Sergio Leone. É um elenco estelar, portanto.

Aldrich era diretor dos bons, cravou a ferro e fogo sua marca de autenticidade na história do cinema americano como um dos primeiros caras mais "autorais" em suas obras, fazendo preponderar em todas as suas tramas características como o egoísmo, a maldade e os instintos vis do ser humano, mas também a sua redenção através dos sacrifícios e da empatia, e consequentemente se tornaria um dos inspiradores da nouvelle vague francesa, e de todo o movimento de renovação do cinema norte-americano, a New Hollywood, das décadas de 60 e 70. Gostava de imprimir o realismo com cores fortes em seus filmes.

Em 1967, Aldrich teria mais um grande êxito em sua carreira, ao reunir um grupo de bandidos irrecuperáveis para uma missão suicida contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial: Os Doze Condenados. Clássico absoluto. Mas essa já é uma outra história, que fica para uma outra hora.



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quinta-feira, 25 de abril de 2024

LONG LIVE IGGY POP

Sabe quem nasceu no dia 21 de abril - passou agora, esses dias atrás - e quase ninguém se lembrou?

"Já sei, Tiradentes!"... Não, criança. Esse não vale. Estamos falando aqui de rock.

E de rock pesado e sujo, cara. Daquele que você enlameia os dedos nas feridas d'alma, rosna pulando e uiva alto com ou sem luar. Som massacrante e incandescente, que jorra das caixas até arrepiar o bigode, como dizia um conhecido meu. Estamos falando de um cara que ensinou os primeiros punks a serem... punks.

Estamos falando de James Newell Osterberg. Aliás, estamos falando do velho Iguana. Estamos falando de Iggy PopO cara é uma lenda, e quem assiste ele ainda se arrastando e balbuciando pelos palcos de hoje, realmente custa a acreditar. "Ah, mas ele está muito f... e acabado, olha o corpo caquético e envergado dele, o Mick Jagger rebola e canta ao mesmo tempo, e dá de dez a zero nele", dirão alguns. Criança, mas você simplesmente não entende que a ficha corrida de Mr. Jagger não chega nem a um fiapinho do que seria a ficha de Mr. Iggy? E que tudo que ele fez, aprontou, ingeriu e cheirou, rivalize e talvez até ultrapasse o que o coleguinha Keith Richards (também rolling stone) já fez? Sinceramente, criança, você não conhece o que é rock and roll.

The Stooges, em 1969

Iggy, do alto de seus agora 77 anos, é uma instituição (ainda) viva da era mítica do rock, que moldou toda a música e a performance que gerações e gerações, incluindo a atual, seguem e ainda curtem até hoje. Se existe algum tipo de rock com originalidade, certo senso de perigo, e emoção, até hoje, isso é devido a caras como Iggy, que não tiveram medo de ousar. E criar, inovar. 

Quando a lendária banda que revelou ele ao mundo, os Stooges, surgiu, lá pelos idos de 1967, a música já estava descendo a ribanceira por um caminho vertiginoso de se achar muito séria, de virar arte mais "cabeça" e refinada, e aqueles quatro carinhas de Michigan simplesmente ergueram uma crença de que "o menos é mais", seguiram as lições básicas dos blues e das mais rudes bandinhas de garagem da época, afundando suas almas de garotos desprezados nos instrumentos baratos e nos 3 acordes básicos, ungido de experimentalismo torpe e barulheira, com muita distorção, crueza e autenticidade. Iggy (vocais), Ron Asheton (guitarra), Scott Asheton (bateria), e Dave  Alexander (baixo), lá estavam eles.

I Wanna Be Your Dog (1969)

O primeiro registro do grupo em LP, o auto-intitulado The Stooges, sai em 1969, e traz petardos inesquecíveis para todos os irmãos da alta sonoridade: "No Fun", "I Wanna Be Your Dog", "Not Right" e "1969", hoje clássicos que mostraram como o rock podia voltar a ser básico, primitivo e empolgante, sem muita firula e com muitos golpes certeiros de guitarras lancinantes e encharcadas de fuzz e wah-wah, pancadas violentas de baixo e bateria e, claro, a voz rasgada e insolente de um jovem e rebelde Iggy (na época, ainda proclamado Iggy Stooge). 

A produção era de ninguém mais, ninguém menos que John Cale, arauto doidão do grupo de vanguarda Velvet Underground, ao lado de Lou Reed, e que ficaria inicialmente fascinado pela atitude despojada e totalmente mambembe dos jovens Stooges em relação a estúdios e gravações. Detalhe: eles queriam ligar tudo no último volume e gravar como se estivessem se apresentando mesmo, tudo ao vivão. É óbvio que o choque inicial com a realidade das produções de discos foi impactante para Iggy e seus asseclas.

No Fun (1969)

"O negócio era abaixar o volume e ficar testando microfones, captação... Tudo baixinho. E volta e ouve para ver se ficou bom, e repete isso e aquilo, e repete mais uma vez. Ficamos entediados, toda a espontaneidade da coisa tinha ido embora", relata Iggy. Se já assim, o primeiro disco era uma pauleira, imagina o que viria pela frente, quando eles conseguiram, no LP seguinte, produzir realmente algo mais próximo do que seria um som ao vivo deles!

Lançado em 1970, Funhouse traz um som ainda mais sujo e distorcido, Nos hinos transgressores de "Loose", "TV Eye", "Dirt" e a faixa-título, além de ser resultado de uma maior coesão entre o grupo, pelo fato deles terem se entregado à vida na banda em tempo integral, vivendo juntos em uma casa alugada pela gravadora Elektra, no estilo "república", bem comuna mesmo. E aí já dá pra imaginar bem todo o tipo de loucuras que rolavam por lá, sendo que "funhouse" (casa de diversões) era o próprio apelido que haviam dado ao lugar... 

T.V. Eye (1970)


Dirt (1970)

Se você considerar que, apesar de todo o estilo revolucionário dos Stooges, os discos deles falhavam miseravelmente em vender e fazer sucesso, e que isso logo seria a porta de saída deles da Elektra Records, bem como os exageros químicos e comportamentais dos quatro, mas principalmente de Iggy, então não haveria mais nenhum futuro, todos seriam relegados ao eterno esquecimento, e ficariam como mais uma daquelas bandinhas dos anos 60 que simplesmente sumiram. Certo?

Iggy e seu 'salvador' David Bowie: amizade histórica e redentora - Iggy serviu até de inspiração no nome para Bowie criar o seu personagem rock mais famoso, Ziggy Stardust

Não. Apesar de episódios grotescos de autoflagelação no palco, viagens e peripécias mil regadas a ácido e álcool, e a quase internação em manicômios para ser tratado, Iggy é tal qual uma fênix que ressurge das cinzas, pelas mãos de um inacreditavelmente fã do outro lado do Atlântico que vira astro - o inglês David Bowie, que o reergue, ajuda em sua desintoxicação, e lhe arranja novos contratos - e sob a luz de uma nova vivência, Iggy se reinventa nos anos 70: primeiro, com uma versão reformada dos Stooges (que lança o seminal álbum Raw Power, de 1973), e depois, como artista solo, performático como poucos, e padrinho de toda a geração de punks que brotariam da Inglaterra até os EUA, da metade em diante daquela década.

Long live Iggy!

The Passenger, um dos maiores sucessos da carreira solo de Iggy, em 1977



Iggy Pop nos dias atuais

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quarta-feira, 10 de abril de 2024

'THE SOFT PARADE': O PONTO DE VIRADA NA CARREIRA DOS DOORS

 

Na noite de 15 de dezembro de 1968, músicos de orquestra se organizavam e afinavam seus instrumentos, no palco montado do The Smothers Brothers Comedy Hour, um dos mais populares shows de auditório da TV americana, já em sua terceira temporada, transmitido pela CBS. Além dos quadros cômicos apresentados pelos célebres irmãos Tom e Dick Smothers, a atração sempre trazia números musicais com grandes artistas e seus sucessos nas paradas.

Jim Morrison

Ali, naquele momento, um dos mais mais cultuados e bem sucedidos grupos de rock californianos do mundo iriam colocar à prova do público o seu mais recente single, que seria lançado precedendo o próximo disco, a sair no ano seguinte. Ali, naquele palco, a banda The Doors, do lendário vocalista e poeta Jim Morrison, iria executar uma versão ao vivo de "Touch Me".

Para os fãs mais "hardcore" do grupo, habituados à sonoridade por vezes sombria, ora barroca, ora bluesy e psicodélica de álbuns anteriores, como o primeiro autointitulado, o segundo (Strange Days), ambos de 1967, e Waiting for the Sun, que havia saído naquele 1968, algo parecia soar estranho. "Touch Me" evocava os sons de big bands, um clima meio colorido e garboso que cheirava a Las Vegas, além da performance desvairada de um Morrison quase excessivo em certo romantismo démodé, emulando Sinatra e outros crooners de um estilo pomposo e contraposto ao de um cantor de rock visceral. Do som mais vigoroso, viajante e experimental dos outros membros do grupo: Ray Manzarek (tecladista), Robby Krieger (guitarrista) e John Densmore (baterista), debaixo das camadas sinfônicas de cordas e metais, também não se ouvia muita coisa.

The Doors mandando ver

Durante a apresentação, é possível ver Robbie rindo da sensação estranha que era eles, aqueles antes "quatro solitários cavaleiros do apocalipse de rock ácido", estarem agora tocando até com orquestra e solos de saxofone do jazzy Ronnie Ross, e pode ser notado que ele apresenta um olho roxo - que não era, ao contrário do que muitos brincavam, travessura de um Morrison bêbado e enlouquecido por conta das diferenças no som, mas sim resultado de um briga de bar, no dia anterior. Morrison, ao contrário do tristemente retratado sujeito escroto da cinebiografia The Doors (1991), de Oliver Stone, era até bastante tímido e reservado quando sóbrio, e admirava muito Robbie, confiando no direcionamento musical dele, tanto quanto de Ray Manzarek. Foram de Robbie, aliás, várias composições e as ideias para as novas músicas do grupo no disco que viria a ser lançado: The Soft Parade (1969).

Robbie e o olho roxo

Para aquela parcela de fãs que estranhou tudo, os Doors haviam mudado, e não para melhor. Uma boa parte do público, e da crítica especializada, passou a acusar a banda de ter seguido por um caminho de "pasteurização" de sua música, introduzindo muitos elementos estranhos que a descaracterizavam, chegando a dizer que o grupo estava "amenizando" e ficando mais comercial, se tornando "vendidos". Nada mais ridículo, se pensarmos que aqueles eram os momentos finais dos anos sessenta, época em que mais se ousou e se experimentou em termos de sonoridades e gravações diferentes e desafiadoras - mas, afinal, mesmo as épocas mais arrojadas tem também as suas mentes mais tapadas. 

Chegando às lojas em 18 de julho de 1969, o disco é uma coleção de nove faixas que firmavam os Doors rumo a direções mais ecléticas, porém que, ao mesmo tempo, reforçava simbologias menos sutis e mais obscuras do imaginário da banda e, consequentemente, das composições cada vez mais profundas de Jim Morrison. Assim como nos discos anteriores, o álbum terminava com uma peça mais longa e repleta de viradas e mudanças de andamento, que sinalizava reflexões severas sobre o zeitgeist e os confins da alma humana - se em outros momentos, "The End" havia sido a regressão psicótica ao edipianismo xamânico, e "When the Music is Over" era um brado feroz ao momento em que o 'id' desperta ante as neuroses de uma sociedade doente, tínhamos agora um registro irônico e apoteótico sobre "o desfile lento" (the soft parade), o carnavalesco cenário de cores, atores e dissabores que os Doors vivenciavam em sua trajetória, tecendo críticas ao próprio mundo artístico e às hipocrisias e obsessões de Los Angeles, sua fauna e flora de pseudo-divindades nulas e efêmeras. Nem mesmo a claustrofóbica sensação de fanatismo religioso do espírito ianque se safava na sorumbática introdução recitada por Morrison.

When I was back there in seminary school
There was a person there who put forth the proposition
That you can petition the Lord with prayer
Petition the Lord with prayer
Petition the Lord with prayer
You cannot petition the Lord with prayer!

(Quando eu estava no seminário
Havia uma pessoa que colocou a seguinte proposição
De que você pode suplicar ao Senhor com oração
Suplicar ao Senhor com oração
Suplicar ao Senhor com oração
Você não pode suplicar ao Senhor com oração!)

Em canções como "Shaman's Blues" e "Wild Child", há os blues de bar, encharcados do clima jazzístico psicodélico e as habituais nuanças místicas do grupo, construindo paisagens que acolchoassem a voz cada vez mais etílica de Morrison, e estão com certeza entre os momentos clássicos da banda, ao passo que "Runnin' Blue" é uma simpática composição de Krieger (onde ele também canta), que envereda pelo caminho do country em seu atípico e inesperado refrão, e "Easy Ride" joga os Doors num trajeto de boogie e soul como nunca antes executado pela banda - é diferente, por isso o susto dos ouvintes! 

A épica "Tell All the People" e a belíssima e lírica balada "Wishful Sinful", com suas passagens orquestrais dissonantes, já haviam saído anteriormente ao LP como singles, da mesma forma que "Touch Me", e de certa forma, esses lançamentos prenunciavam o que realmente estava acontecendo com os Doors, e as causas de todas as mudanças: o extremo nível interno de estafa do grupo. Era muita correria para compor e organizar novo material entre um show e outro, a pressão da gravadora e do produtor Paul Rothchild (cada vez mais exigente no estúdio), e toda a ovação de fãs e da mídia, com espetáculos cada vez mais lotados.

A turnê que se seguiu ao lançamento do disco anterior, o Waiting for the Sun, foi uma das mais longas e caóticas da história da banda, com Jim Morrison simplesmente "pirando o cabeção", e digressões na Europa que entraram para a história, pelo nível de loucura e substâncias estupefacientes envolvidas. Durante um show em 15 de setembro de 1968, em Amsterdam, na Holanda, onde estavam se apresentando em uma gig conjunta com o grupo Jefferson Airplane, Morrison acabou tomando todas e consumindo um bloco inteiro de haxixe, o que fez o cantor perder totalmente os sentidos e ser hospitalizado. 

Durante show no Roundhouse, de Londres, em 1968

Ray Manzarek conta, em sua biografia, que foi nessa época que Morrison começou a pensar seriamente em desistir da carreira de músico e se dedicar em tempo integral à escrita e à poesia, mas foi convencido por ele, os outros músicos e o empresário da banda a prosseguir durante mais um tempo, ainda que já demonstrasse sinais de estresse e instabilidade emocional, situação agravada por uma ingestão cada vez maior de bebidas alcoólicas (que, com o tempo, se tornariam o principal vício do cantor). Intimamente, Morrison contestava cada vez mais a própria imagem sexy e de culto criada ao redor de si mesmo, e aos poucos, operaria uma mudança em seu próprio visual para reforçar isso, abandonando o visual de roupas de couro e as performances lascivas, deixando crescer a barba, engordando um pouco, e usando roupas comuns e desleixadas, quase como as de um universitário.

Toda essa pressão irá culminar com o fatídico "Incidente de Miami", o mítico show de 1º de março de 1969 na cidade, em que o vocalista dos Doors, ainda mais ébrio do que o habitual, levou ao extremo a ideia de desafiar a plateia sobre a visão que tinham dele como ídolo, e se exibiu (ou sugeriu exibições) de suas partes íntimas, ocasionando um tumulto sem precedentes, a destruição do local do show pelos fãs, e sendo processado por atentado ao pudor, à moral e os bons costumes, pela justiça dos EUA. Dali em diante, o que se viu foi o primeiro grande cancelamento de artistas na história da música pop, mesmo antes das redes sociais terem sido criadas e esse termo ter se popularizado tanto. Os Doors foram simplesmente banidos de todas as rádios comerciais americanas, e de quase todos os festivais, concertos e eventos dos quais iriam participar. Se tornaram praticamente marginais.

Depois disso, a história é bem sabida: a banda aos poucos recuperaria sua notoriedade e teria ainda uma rápida sobrevida, com o lançamento dos excelentes álbuns Morrison Hotel (1970), e L.A. Woman (1971), onde retornariam ao rock básico e com doses maciças de blues, que agradariam em cheio público e crítica e ainda terminariam por angariar novos fãs, mas logo após a gravação desse último disco, Morrison toma definitivamente a decisão de deixar o grupo durante uns tempos, e parte em um exílio artístico e amoroso para Paris, na França, com sua companheira Pamela Courson. De onde jamais voltaria.



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quinta-feira, 4 de abril de 2024

A MÃO DIREITA E A MÃO ESQUERDA DO DIABO

 

A reconstrução de algo passa por sua desconstrução. E, nos agora distantes anos 1970, um gênero clássico de cinema que parecia agonizar e passar por seus últimos suspiros - o western, bom e velho filme de cowboy - via continuar emergindo a sua vertente lúgubre, zombeteira, e extremamente realista, que buscava pintar de extremos vermelho sangue e cinismo as paisagens áridas das terras americanas sem lei. Eram os faroestes produzidos na Itália, os famigerados e pródigos western spaghetti, ou bangue-bangues à italiana, como também passaram a ser conhecidos no Brasil.

Eles reinventaram o gênero? Ou foram, afinal, o prego final na tampa do caixão?

Conclusões por conta de cada um... Apenas penso que o western, na verdade, nunca morreu, apenas foi se reciclando e modernizando com os tempos. E os spaghetti foram simplesmente um desses ciclos.

Muito se especula sobre a origem do termo, sendo mais acertado afirmar que é não só uma referência pejorativa ao lugar onde produtores, diretores, atores e atrizes se faziam passar por "ianques" dos tempos de outrora, como também que o termo spaghetti se referia às enormes doses de violência nas tramas dos filmes, com o sangue cenográfico utilizado lembrando, justamente, os molhos de tomate que um bom espaguete deve ter.

Foi nesse momento histórico que uma nova ramificação, mais suave e de forte apelo popular, nasceu como subgênero, explorando uma modalidade mais cômica: eram os "faroestes espaguete de humor", perpetrados pela dupla Terence Hill e Bud Spencer.

Nascidos Mario Giuseppe Girotti (Terence), e Carlo Pedersoli (Bud), os dois atores vinham de diferentes métiers, sendo que Terence já havia participado em pontas de diversas produções clássicas do cinema europeu, como O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, alguns épicos de gladiadores, e a série de faroestes alemães Winnetou (1964), enquanto Bud era oriundo do cenário desportivo romano, tendo sido campeão de natação e pólo aquático, mas já tinha uma quedinha pela sétima arte desde novo.

Ao se embrenharem pelo mundo dos produtores de westerns spaghetti, logo os dois se encontrariam em três pérolas marcantes do movimento, lançadas em 1967, 1968 e 1969, respectivamente: Deus Perdoa... Eu NãoOs Quatro da Ave Maria, e A Colina dos Homens Maus (também conhecido como 'Boot Hill'), que constituíam uma trilogia sob a direção de Giuseppe Colizzi. Esses filmes foram grandes êxitos de bilheteria, porém mais do que isso, motivaram não só em Colizzi como em outras pessoas da equipe, bem como no público em geral, a nítida impressão e os comentários de que rolava uma "química" legal entre aquela dupla. Eles davam liga atuando. O engraçado é que, nas tramas daquelas produções, ocorria quase que uma inversão dos tipos de papéis que eles desempenhariam posteriormente: ou seja, ali, Terence Hill ainda representava o pistoleiro mais sério e taciturno, quase a la Clint Eastwood, enquanto Bud Spencer se saía como um tipo mais cômico e bonachão, desastrado e cheio de tiradas.

É em 1970 então que, sob a direção de Enzo Barboni (sob o pseudônimo E.B. Clucher), tem início uma das mais icônicas séries de filmes da história do faroeste italiano: Trinity é o Meu Nome nos apresenta os personagens Trinity (Terence Hill), o relaxado pistoleiro e caçador de recompensas conhecido como "a mão direita do diabo", por ser um dos gatilhos mais rápidos do oeste, apesar de sua imensa preguiça; e o seu meio irmão Bambino (Bud Spencer), este sendo "a mão esquerda do diabo" (por atirar bem com a canhota), e que além de ser um brucutu com um talento todo especial para pancadarias truculentas, é um (quase) ex-ladrão de gado que acabou pegando o cargo de xerife (com segundas intenções, claro) de uma cidadezinha do oeste, onde recaem sobre um grupo de pobres e indefesos mórmons as ameaças não só da gangue de um ricaço, que querem tomar suas terras, como também de um caricato grupo de bandidos mexicanos. Aqui sim, Hill passaria a representar o cara engraçadinho e malandro, bem relaxado, e Spencer seria o seu contraponto, mais seco, mal humorado e durão, o que acabou caindo como uma luva levando em conta até os tipos físicos deles.

O roteiro, na verdade, é o de menos - acaba sendo apenas um fiapo, que serve mesmo para introduzir o imenso carisma dos personagens de Trinity e Bambino, que moldam um novo jeito de fazer bangue-bangue, e que mistura não só a galhardia da arte circense e mambembe, como também a verve humorística dos grandes momentos da comédia italiana, com suas caras e bocas, maus entendidos e verborragia. Não é a toa que Hill e Spencer fariam uma memorável participação especial no programa de TV dos nossos também circenses e baderneiros 'Os Trapalhões', já na década de 1980, durante uma visita ao Brasil.

Lutas coreografadas com muito estilo pastelão e sonoplastia exagerada de socos, murros e pontapés, além de efeitos de câmera acelerada nas inacreditáveis cenas em que Trinity saca e gira o revólver não só do seu coldre como dos adversários, e muita cara feia e nervosa do Bambino, sem paciência de estar sempre caindo nos engodos do seu mano mala, trapaceiro, e louco por um rabo de saia: a dupla Hill-Spencer estabeleceu neste filme a quintessência de um estilo de western cômico e ingênuo que criaria várias imitações inferiores (alguém aí já ouviu falar da também dupla Paul Smith e Michael Coby, da série 'Carambola'?), e marcaria toda uma geração que cresceria acompanhando a dupla ao longo de vários filmes que repetiriam essa fórmula, mas não só como Trinity e faroeste, mas também ambientados nos tempos modernos, e nos formatos de aventura, policial e comédia. 




Logo acima: a célebre cena do "devorador de feijão", com Terence Hill, no Trinity original (1970). Abaixo, a dupla de imitadores da dupla Hill-Spencer que tentou fazer sucesso como eles nos faroestes, mas sem o mesmo êxito: Paul Smith e Michael Coby, em 'Carambola' (1974).

Na verdade, como sequência direta e legítima desse Trinity só haveria mais um filme, realizado no ano seguinte, o igualmente bem sucedido Trinity Ainda é o Meu Nome (1971), e que contava praticamente com a mesma equipe, dessa vez nos apresentando a família louca e desajustada dos dois irmãos, e os envolvendo em uma nova trama de defesa de religiosos ameaçados pela bandidagem (dessa vez, um grupo de monges). São películas que deixaram boas lembranças em muita gente, não só de uma geração que curtia os bangue-bangues nas matinês dos cinemas de sábado e domingo, como também de toda uma molecada que cresceu (e nessa, eu me incluo) vibrando com os tiros, acrobacias e piadinhas de Terence Hill, e os sopapos vigorosos de Bud Spencer, nas telinhas das sessões da tarde e de faroeste na TV.

Bons tempos. Mas hoje, Hill já é um senhor praticamente aposentado de todas as atividades artísticas, vivendo tranquilamente em Veneza, enquanto Spencer faleceu em 2016, após complicações decorrentes de uma queda que sofrera anos antes, em sua casa. 

Para finalizar, não poderíamos deixar de falar da belíssima trilha sonora desse filme, que também ecoa em cada um dos fãs aquele sentimento bacana e nostálgico dos assobios e melodias dos grandes clássicos de western "com sabor de pizza", como dizia um amigo meu. A canção tema original do filme, "Trinity (Titoli di Testa)" se tornaria icônica, também, por fazer parte da cena final de Django Livre, faroeste do genial Quentin Tarantino, sempre rendendo consistentes homenagens ao gênero em suas obras, e foi composta por Franco Micalizzi e gravada pelo grupo I Cantori Moderni di Alessandroni, que contava com o cantor Annibale como solista, tendo sido um dos maiores sucessos daquele ano na Itália.

Fica ela a seguir, para relembrarmos.



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10 MOMENTOS 'DESTRUCTION' DO GUNS N' ROSES

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