terça-feira, 26 de dezembro de 2023

RETRATOS FANTASMAS: DECLARAÇÃO DE AMOR AO CINEMA, A RECIFE... À MEMÓRIA

É com pesar que ficamos sabendo que o documentário Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, o nosso mais forte candidato a representar o cinema brasileiro na cerimônia do Oscar 2024, foi desconsiderado na escolha do júri da Academia para a disputa. Mas lembrando que resolveram premiar a insipidez de uma Gwyneth Paltrow ao invés da sensibilidade de Fernanda Montenegro em 1999, com a condecoração de melhor atriz daquele ano, não é nada de se estranhar, os absurdos desse mundo corporativo que prioriza o lobby ao invés da arte. E o Brasilzão vai ficando pra trás mais uma vez.

Faça então a sua parte, e prestigie essa belíssima obra no streaming mesmo - Netflix, enquanto está disponível. É uma tocante e pungente declaração de amor ao cinema, a Recife (cidade do diretor), e à memória, de forma poucas vezes vista anteriormente. 

A linha narrativa é dividida em três partes distintas: a primeira, dedicada à casa e bairro onde Kleber viveu a maior parte de sua vida; a segunda, dedicada ao decadente centro comercial de Recife e suas antigas salas de cinema; e a última, perfazendo um fecho que cruza o caráter religioso desses recintos e das igrejas, num preciosíssimo exercício de reflexão sincretista e nostálgica, que nos remete a tempos de outrora, de nossas próprias raízes, infâncias e puberdades.

É impressionante como Kleber consegue conjugar uma obra concisa com imagens, cenas de arquivo (referências diretas a seus curtas, e outros filmes seus, como "O Som ao Redor" e "Aquarius", tomam conta da tela), e uma própria auto-análise de sua carreira como ser humano e cineasta, emoldurando no caminho um painel repleto de referências sociais da vida em Recife, de seus lugares como eram e como ficaram, e da própria passagem do tempo - cruel, impassível e indolente, como ele só. Termina que "Retratos" se torna uma obra muito pessoal, e muito histórica ao mesmo tempo, no que se constitui em linguagem artística e simbiótica das mais curiosas. É o documentário 'por excelência', mas executado com nuanças de subjetividade notável.

Para aqueles mais sensíveis, testemunhar a impiedosa passagem que o tempo impõe às pessoas e aos lugares pode ter força emocional irresistível. O filme tem esse tino de causar na gente sentimentos de tempos idos (eu mesmo me lembrei demais dos antigos cinemas que eu frequentava, e tudo que vivia na época), e por mais que isso seja inevitável, pois o cinema tem tendência ao melodrama (como o próprio diretor comenta, a certa altura), ele consegue se equilibrar numa linha tênue entre a análise e a reverência, citando símbolos icônicos como os extintos Trianon, Art Plaza e Cine Veneza, gigantes de um passado glorioso e tão caro a Kleber e a outros cinéfilos da velha Recife.

Momento especialmente comovente: o saudoso Sr. Alexandre, operador de projetor que relata como seria o seu último dia de trabalho no cinema que vai fechar em 1992 (vai encerrar a última sessão com "chave de lágrimas"). Pela mente da gente passam pessoas, amigos, e momentos, que na hora causam um aperto no coração com essas palavras do seu Alexandre, elemento tão importante, e tão desconhecido, que com certeza causou muitas emoções e reflexões nas vidas de tanta gente que nem fazia ideia de quem ele era, com os filmes que ele projetava com carinho e devoção, em uma sala quente e pequena, sem ar condicionado, onde tinha que se deitar no chão sem camisa, para se refrescar um pouco. 

Seu Alexandre - o heroico projetor de cinema retratado no documentário

A cada momento, o diretor consegue nos fazer crer que o mundo mágico do cinema é, sim, um passaporte para a eternidade, e que seus 'personagens' - sejam eles um cachorro do vizinho de sua casa que latia sem parar, ou velhas salas de cinema sucateadas e abandonadas - sobrevivem agora em uma outra dimensão, do outro lado da tela, onde voltam por vezes para nos assombrar (ou maravilhar), fantasmas do passado que são.

Também testemunhamos os paradoxos históricos, o cinema chique inaugurado com os louvores da ditadura militar e elite social da época, numa festejada sessão do filme "Aeroporto", de 1970, e as suas imagens de hoje, desmazelado e modificado, condenado a se tornar um mini-shopping, "organismo estranho" que se instalou naquele templo de glórias antigas, como bactéria a invadir e contaminar o hospedeiro com a chaga dos tempos modernos e da devastação imobiliária monetizadora. É o célebre Cine Veneza, que em período áureo, transformou o musical "Hair" (de Milos Forman, 1979) em fenômeno recifense, assistido por mais de 200.000 espectadores, apesar das cenas de nudez e repressão da censura federal de 18 anos de idade, nos estertores do regime dos milicos.

Hair (1979)

O documentário termina com a já antológica 'sequência do motorista de Uber' - que carrega diversos simbolismos, na verdade. Seria a invisibilidade um poder inerente ao tempo, que faz desaparecerem nossas realidades, nossas referências, mas que obras majestosas como esse próprio "Retratos" tratam de repor, e fazerem aparecer novamente? Se tornam invisíveis como os próprios fantasmas das fotos e retratos - que desaparecem, e reaparecem, para depois desaparecer novamente. São como as memórias, fantasmagóricas e assombrosas - conforme sugerem as diversas passagens musicais, e até místicas e climáticas, que pontuam os lugares e paisagens recifenses, elevados à condição do protagonismo. 

De repente, simplesmente percebemos esse "poder" da invisibilidade como uma alegoria, e elegia honrosa, do próprio ofício cinematográfico. De cineastas caprichosos como esse Kleber Mendonça, que faz aparecer e desaparecer, e que ao fazer isso, mais uma vez nos mostra como cinema é arte técnica mas emotiva, a ciência e a mente trabalhando em prol da alma e do coração.

Tudo isso faz de "Retratos Fantasmas" uma homenagem muito bonita e agridoce à sétima arte, e um autêntico 'must see'. Você tem que ver, simplesmente isso.


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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

UMMAGUMMA: MARCO DEFINITIVO DE TRANSIÇÃO DO PINK FLOYD

 

Mediante os festejos realizados neste 2023 que se encerra acerca do cinquentenário daquela que é considerada a obra-prima do Pink Floyd, o multiplatinado disco The Dark Side of the Moon, de 1973, me lembrei imediatamente de um outro trabalho deles sem o qual não teriam, de forma alguma, chegado àquele grau de perfeição que atingiriam anos depois. 

Ummagumma (1969) foi o álbum do Pink Floyd que fez minha cabeça na adolescência, e não saía da minha vitrola. Eu ouvia muito, em vinil mesmo. Dark Side veio depois, bem depois. Junto de outro clássico do mesmo ano, o 'In the Court of the Crimson King', do King Crimsom, foi o disco que me mostrou todas as nuanças e possibilidades do rock progressivo, foi o que me fez começar a apreciar o gênero. Ummagumma é o marco definitivo de transição do Pink Floyd, é o álbum de "desmame" deles em relação ao seu membro fundador e líder original Syd Barrett (guitarra e vocais), desgarrado devido aos excessos lisérgicos. É, também, o trabalho que os torna luminares de um novo gênero, que vai permear toda a primeira metade da década de 70 que se aproxima, reajustando o foco do grupo na direção de novos sons e possibilidades.

Syd Barrett

A despeito de alguns detratores, que o consideram um projeto meio perdido, confuso, e 'experimental' demais em alguns momentos - o próprio guitarrista e vocalista David Gilmour confessa que a banda estava indecisa sobre que rumos e estilos seguiriam na época, após a saída do enlouquecido Barrett, que ele substituiu - o álbum foi ganhando valor com o passar do tempo, a ponto de se tornar cult entre os mais diversos fãs da banda, e críticos em geral.

Com a saída do membro fundador Syd Barrett, em 1968, o Pink Floyd se estabiliza em sua formação clássica: da esquerda para a direita, Nick Mason (bateria), David Gilmour (guitarra, vocais - sentado), Roger Waters (baixo, vocais - em pé), e Richard Wright (teclados, vocais)


A seguir, alguns fatos marcantes sobre o disco:

- Ummagumma é o primeiro álbum duplo da banda. Em seu formato original, era composto por um LP ao vivo, e um gravado em estúdio. No disco ao vivo, constam registros de canções de discos anteriores da banda, em performances retiradas de shows no Mother's Club, de Birmingham, e no Colégio Comercial de Manchester, entre abril e maio de 1969. A faixa de abertura, "Astronomy Domine", vem do primeiro disco da banda, e é recriada numa versão mais pesada, uma verdadeira pancada sonora que inicia maravilhosamente o disco, onde a guitarra de Gilmour e os teclados de Wright expandem sensorialmente com notas estratosféricas o ouvinte mais desavisado, recriando uma verdadeira viagem espacial. "Careful with That Axe Eugene" é egressa de um compacto lançado em 1968, com "Point Me at the Sky" no lado A, e seria retrabalhada em uma outra versão para inclusão na trilha sonora do célebre filme Zabriskie Point, do cineasta Michelangelo Antonioni - aqui, ela também aparece bem pesada e melhorada, com destaque para o baixo potente e o trinado sinistro de Roger Waters. Em prolongadas performances, "Set the Controls to the Heart of the Sun", também comandada por Waters, vem do segundo disco da banda, bem como "A Saucerful of Secrets", em que Gilmour improvisa e substitui com sua voz o coro original da música em estúdio, o que geraria então uma boa impressão aos fãs de sua excelente extensão vocal.

Astronomy Domine

- Apesar de contar com as primeiras execuções mais longas e de caráter improvisado do grupo, o que muita gente não imagina é que Ummagumma demonstra simplesmente uma evolução natural desse perfil performático e progressivo do Pink Floyd, visto que mesmo na fase com Syd Barrett, a despeito das faixas psicodélicas curtas e bem trabalhadas das gravações nos discos, ao vivo o grupo chegava a jams com suas músicas que excediam as durações padrão do pop - vide uma versão da instrumental "Intersetellar Overdrive" e lançada em compilações e discos piratas, tocada no Bag O' Nails Club de Londres em 1967, com nada menos que 17 minutos de loucuras com Barrett na guitarra!

- O segundo disco, que contém as faixas gravadas em estúdio, é feito de composições individuais de cada membro, com contribuições esparsas dos outros nas gravações. Se destacam "Sysyphus", de Wright, bastante soturna e climática, com toda a sua atmosfera de piano e teclados assombrosos, a folk e campestre "Grantchester Meadows", de Waters, e o primeiro grande momento de David Gilmour como compositor, com "The Narrow Way".

The Narrow Way

- O nome do disco provém de uma pequena brincadeira entre a banda e seu roadie Ian Moore, para uma gíria comumente utilizada na região de Cambridge para "sexo". Ele costumava dizer para os caras do grupo, ao final de cada dia: "Agora tenho que ir para casa encontrar minha mulher para um ummagumma."

- Por falar em roadies, a contracapa do disco se tornou histórica por demonstrar, em uma foto, o poderio do equipamento carregado pelo grupo em suas turnês, em um caminhão ladeado pelos assistentes Alan Styles e Peter Watts. Na época, o Pink Floyd era considerado uma das bandas que tocavam mais alto no mundo pop, graças a sua sofisticada aparelhagem.


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sábado, 16 de dezembro de 2023

SMARTPHONES RUMO AO FIM

 

É uma questão de tempo. 

Para muita gente envolvida com projetos promissores na tecnologia, como o pessoal da Apple, nos EUA, o próximo ciclo de troca de mídias, de uso preponderante pela humanidade, já está próximo de acontecer. Nesse caso, o smartphone. O nosso popular celular já está com os dias contados.

Evoluções são mudanças naturais, e por mais estranho que pareça a humanidade começar a abandonar os smartphones, isso deve ocorrer de forma gradual, e com o aumento cada vez maior de um hábito substitutivo. A música foi mudando de invólucro, dos antigos discos de vinil passou para o CD, que então passou para o MP3, e que agora já se tornou streaming. A máquina de escrever deixou de existir com o advento dos processadores de texto e computadores. A antiga televisão de tubo catódico acabou cedendo lugar às telas planas de LCD, e depois LED, e agora smart TV (e até mesmo os próprios smartphones). E por aí vai.

Antigamente era assim


Atualmente é assim

Era 2021 ainda quando, durante uma palestra na Futurecom Digital Week de São Paulo, a CEO do Future Today Institute e professora da Escola de Negócios Stern, da Universidade de New York, Amy Webb, cravou o fim da era dos smartphones.

Amy Webb

"Os smartphones são, na verdade, uma tecnologia em extinção. Acho que eles desaparecerão nos próximos dez anos. Amanhã não. Não daqui a três anos, mas no futuro. Hoje, você pode fazer todas as funcionalidades com mais computação em apenas um dispositivo, mas isso está começando a mudar novamente."

Em sua fala, Amy discorre sobre o conceito de "Você das Coisas" (You of Things), que é a mais recente tendência pela qual os rumos da tecnologia deverão seguir.

Ou seja, ao invés de um dispositivo só concentrar uma série de itens e serviços da nuvem (comunicação, jogos, música, filmes, trabalho, estudos etc.), o que teremos serão todas essas experiências espalhadas em objetos comuns, que usamos no dia a dia, e que nos trarão tudo isso de uma forma ainda mais eficiente e integrada.

Já está prestes a acontecer.

Para os próximos três anos, estão programados os lançamentos de gadgets tais como: pulseiras e anéis que detectarão níveis de estresse, temperatura corporal e oxigênio no sangue; fones de ouvido inteligentes, que buscarão streaming de áudio e podcasts, de acordo com o gosto do ouvinte; e até mesmo colchões robóticos, que detectarão melhor temperatura e condições de posicionamento do corpo, para oferecer melhores condições de sono.

Mas talvez o que esteja mais na vanguarda para causar o declínio dos smartphones sejam os dispositivos que oferecerão realidade aumentada: os óculos XR e 3D, que possibilitarão uma série de integrações com aplicativos a que estamos acostumados, hoje, no celular. Imagine controlar, com um simples olhar ou comando de voz, a exibição de um filme da Netflix. Ou fazer aquela videochamada, com uma resolução de som e imagem tão perfeitas, que é como se você estivesse presencialmente ali, junto com aquelas pessoas? A experiência imersiva dos dispositivos é relatada como sendo uma coisa fantástica - de repente, você é transposto para uma realidade totalmente diferente, em um mundo virtual vivo, pulsante e cheio de opções, apenas usando esses óculos.

Apple Vision Pro

Absurdo? Não. Está mais perto de acontecer do que você pensa.

Impossível, porque tudo isso sairá muito caro? Bem, no início é bastante caro. Mas depois que a tecnologia se instaura e se banaliza no mercado... Muita gente aqui ainda deve se lembrar dos preços daqueles "tijolões" com antena da Motorola, no começo da era dos celulares, né?

O Apple Vision Pro é um projeto de óculos inteligentes, pioneiro da indústria da maçã, e caso eles consigam em breve resolver problemas de funcionamento do mesmo, atrelados a como dar a sua 'recarga' na bateria, poderemos ver a própria empresa que iniciou uma nova era digital, com a revolução de Steve Jobs e os iPhones, simplesmente desbancando essa tecnologia, para o advento de outra.

Modelo de satélite CubeSat

Alguém pode também perguntar: ok, mas tudo isso vai precisar da nuvem, como teremos sinal de internet suficiente para tanta coisa? A resposta já começou a ser dada pelo cara dos 'X': Elon Musk e o seu pioneiro projeto de lançamento de satélites para prover o sinal da web, ao longo de todos os territórios do globo terrestre, apontam a direção para uma quebra do paradigma das atuais redes de distribuição das operadoras, que tem tudo para se tornarem arcaicas num futuro próximo. Eis a "internet do espaço", que em breve, com o uso de minúsculos satélites modelo CubeSat, e interconexão através de extensas redes mesh, conseguirão expandir a conectividade de forma praticamente ilimitada no mundo todo, como jamais visto anteriormente.

É o futuro. E está aí, já na nossa cara (de óculos, literalmente). Acontecendo.


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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A FALTA QUE KUBRICK FAZ

 


Não são uma, nem duas, e nem três pessoas que tem falado sobre como a mais recente cinebiografia sobre Napoleão Bonaparte, Napoleon (2023), de Ridley Scott, está repleta de furos históricos mas, talvez o pior ponto, é que seja igualmente isenta de um estudo psicológico mais profundo sobre a intrincada personalidade de seu mítico protagonista. Apesar de Ridley ser o responsável por obras lendárias como Alien (1979), Blade Runner (1982) e Gladiador (2000), o que se observou aqui foi o pretenso intuito do criador de realizar um culto ao "cinema espetáculo", com grandiosidade de cenários e figurino, mas se esquecendo do viés mais intimista e emocional do roteiro, resvalando em superficialidade no estudo de personagens. O fetiche pelo blockbuster.

Napoleão (2023), de Ridley Scott

A visão de um cineasta é a cara do filme que ele realiza. Isso fica cada vez mais evidente a partir dos ditames da New Hollywood dos anos 60 e 70, movimento que estabeleceu o padrão do filme autoral como uma otimização da expressão artística na sétima arte lá fora. No Brasil, já vivíamos essa realidade desde outras eras, em muito graças aos esquemas marginais de financiamento, derivados da cultura mambembe e a falta de grana (poder) dos produtores, que acabava deixando o próprio diretor correndo atrás de tudo e ficando com a liberalidade de uma maior fatia de expressão artística - exemplos como as obras de Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 Graus, Vidas Secas), e dos icônicos Glauber Rocha e José Mojica Marins, o 'Zé do Caixão', nos anos 60, não me deixam mentir.

A partir dos sixties, gente como Martin Scorcese, William Friedkin, Francis Ford Coppola, Arthur Penn, Dennis Hopper, Terrence Malick, e muitos outros, passa a idealizar o cinema de autor como uma premissa básica para a consecução de tramas robustas e criativas, que buscavam não só o refinamento e a inovação estética da cinematografia, como também, o aprofundamento das características psicológicas das personagens.

Isso em território americano. Mas, e na Inglaterra?

Stanley Kubrick

Desde a década de 1950, um promissor especialista em fotografia já vinha se especializando como assistente, e foi galgando os degraus até conseguir o seu primeiro grande êxito com o filme Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957), que tinha o astro americano Kirk Douglas. Se tratava de Stanley Kubrick.

Em 1960, Kubrick teria mais um grande êxito resultante da parceria com Douglas, o épico de gladiadores Spartacus, que já prenunciava que ali estava surgindo um grande diretor de cinema. Mas foi com dois filmes que despertariam polêmica e curiosidade, tocando em temas tabus, que ele se firmaria e passaria a ser celebrado, dos dois lados do Atlântico: Lolita (1962), e Dr. Fantástico (1964). O primeiro era a adaptação do romance de Vladimir Nabokov, que abordava a relação de um professor de meia idade com uma ninfeta de apenas 14 anos, numa obra precursora das discussões acerca da pedofilia. E o segundo era uma comédia escrachada de humor negro, capitaneada pelo incrível comediante inglês Peter Sellers em seu elenco, tratando das agruras de um inevitável conflito nuclear bem no clímax da Guerra Fria, entre EUA e União Soviética. 

Peter Sellers, no clássico 'Dr. Fantástico' (1964)

É interessante notar como que ao longo desses filmes (ambos em preto-e-branco), Kubrick foi desenvolvendo seu estilo, e aprimorando ângulos de câmera, closes, cenários e distanciamentos, bem como um talento praticamente perfeito em conseguir focar e explorar as nuanças mais escuras da alma humana e suas obsessões. Kubrick acabaria se tornando o cineasta com maior envergadura para explorar personagens desajustados, psicóticos, bipolares e com desvios de comportamento, do cinema contemporâneo. Perfeccionista, chegava também a filmar mais de 40 ou 50 takes de uma simples cena, apenas para conseguir apurar o modo como ele a idealizava em sua mente. Colaborou no desenvolvimento de novos tipos de lentes, e câmeras, e explorou à exaustão os cenários e paisagens, os convertendo em personagens quase que autônomos. Algumas das cenas de seus filmes se parecem com quadros pintados.

2001: Uma Odisseia no Espaço

Em 1968, chega a consagração definitiva, com o clássico da ficção científica 2001: Uma Odisseia no Espaço. Nunca antes, o espaço sideral havia sido tratado de forma tão séria, realista e imersiva, como nessa obra-prima. Inspirado no conto 'The Sentinel', do renomado autor Arthur C. Clarke, o filme consagra definitivamente Kubrick, lhe dando carta branca para, a partir de então, tocar apenas projetos nos quais ele acreditava, e exercer total domínio e controle criativo e artístico. Vieram outros grandes filmes, numa trinca marcante: o famigerado Laranja Mecânica (1972, onde a polêmica da vez se dava por conta da crítica à violência das autoridades e da sociedade, frente à violência juvenil), Barry Lyndon (1975), e O Iluminado (1980). Todos adaptações de grandes obras literárias - Kubrick tinha compulsão por livros. 

Mas justamente nesse pedaço da história, o período entre o final dos anos 60 até meados de 1975, é que chegamos ao ponto que volta ao começo de nosso texto: devido a entraves políticos e financeiros dos grandes estúdios, a frustração que Kubrick sofria por nunca ter conseguido realizar aquele que seria, em sua própria concepção, o maior filme de sua carreira, e talvez de todos os tempos... a sua versão da história de Napoleão

Livro especula sobre como teria sido versão de Kubrick para seu filme sobre Napoleão

A corrente de especulações sobre o que seria "o melhor filme jamais realizado" é extensa, e diversos críticos de cinema e historiadores se debruçam sobre toda a absurda quantidade de material, incluindo livros, relatos de época e biografias, que Kubrick teria reunido durante todo um período, para conseguir colocar em prática o seu sonho de narrar a saga do imperador francês. Rascunhos do roteiro em que Kubrick trabalhara, bem como fotos, imagens e esboços, seriam revelados dez anos depois de sua morte, em 2009, no livro 'Stanley's Kubrick Napoleon: The Greatest Movie Never Made'. Ali, percebemos que uma grande parte do material acabaria sendo utilizada como fonte de pesquisa e produção para o filme Barry Lyndon, de 1975, cuja trama se passa um pouco antes das guerras napoleônicas.

De qualquer forma, é realmente de se lamentar. A visão de Kubrick, com certeza, seria brilhante, e resultaria num filme bem melhor do que o de Ridley Scott, acredito. Teria um tom mais épico, e com maior profundidade de estudo de personagens.

Basta pegarmos um outro filme dele que explora bastante o ambiente bélico, e que, apesar de considerado menor em sua filmografia, hoje pode ser visto e revisto como uma modesta obra-prima que perscruta magnificamente as neuroses do comportamento humano, diante do caos da guerra: Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987).

Nascido para Matar (1987)

Nesse clássico mais recente de Kubrick (o penúltimo que ele realizou), temos a ação nitidamente dividida em duas partes, como capítulos distintos de um livro. Na primeira, nos deparamos com a formatação e desumanização dos recrutas americanos em um campo de treinamento, que serão mandados para o Vietnam. Ali, comem o pão que o diabo amassou com o rabo, na forma da cruel catequização imposta pelo Sargento Hartman (magistral atuação do falecido Lee Ermey), e presenciam a sua perseguição ao frágil recruta Gomer Pyle (desempenhado por um excelente e jovem Vincent D'Onofrio - o atual Wilson Fisk da série Demolidor). Pyle é o 'outsider', a peça que não se encaixa no plano de padronização de corpos e mentes que o programa dos marines (fuzileiros) quer executar, uma lavagem cerebral para transformar rapazes americanos em máquinas matadoras de comunistas. Ele é um agente estranho no corpo militar perfeito e uniforme. Uma bactéria que precisa ser erradicada - ou absorvida. Agressão, humilhação, e  punição de seus atos. Ele vai pirar. Kubrick vai mostrar esse processo gradualmente, com cenas simbólicas e geniais que culminarão em uma tragédia no campus, que vai marcar o final do treinamento. 

O enlouquecido recruta Pyle (Vincent D'Onofrio)

Corte. Segunda parte. Nossos prezados fuzileiros do treinamento já estão no vietcongue, em Da Nang. Joker (Matthew Modine) é o que mais se aproxima de um protagonista, pelo menos para nós, é o narrador da história. De certa forma, é também um desajustado, usa broche do ying-yang, símbolo hippie da paz e amor, em plena terra de guerra. É um debochado, mas se infiltrou ali cumprindo o papel de jornalista do exército, passatempo enquanto não consegue o passaporte da dispensa para sair do inferno. Mas a guerra é brutal, não perdoa. Após um ataque surpresa em sua base, acaba tendo que ir com sua tropa a campo - e ali, vemos um dos mais deliciosos e intensos exercícios de cinematografia de Kubrick, dirigindo com maestria os horrores da batalha a ser encarada. Não há música, não há sentimentalismos, nem muita conversa. Há tiros, gritos, explosões. Kubrick enxuga e joga fora todos os excessos de outros filmes sobre o Vietnam já feitos até então, e nos entrega um espetáculo de dor, selvageria e amadurecimento dos jovens soldados, que terão a mais pura sorte se sobreviverem a tudo aquilo. O foco está na ação, mas também está sempre naqueles olhares assustados e no desespero, a cada tiro letal de sniper, em um vilarejo sob escombros.

Tudo filmado com realismo, eloquência... e teor psicológico, como deve ser. Como deveria ser com Napoleão.

Na guerra, nunca há heróis.


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terça-feira, 12 de dezembro de 2023

JÁ OUVIU? RÁDIO HIPPIE MUNDIAL

 

Para quem é fã de boa música das décadas de 1960, 70 e 80, e mais alternativa, com sons não tão comerciais como em outras rádios, assim como eu, uma excelente pedida que eu recomendo bastante é ouvir online a Rádio Hippie Mundial, de São Paulo. "The radio that plays what others don't play". Muito blues, folk, jazz e progressivo, além do bom e velho rock mais tradicional.

De cara, propaganda nenhuma. Nos intervalos entre as músicas, apenas pequenos anúncios das bandas e músicas apresentadas em alguns idiomas além do português, pré-gravados. Muita gente pode não gostar do formato "secretária eletrônica", típico de muitas dessas rádios online, mas em contraste com outras onde rola tanta conversa e publicidade, que sobra pouquíssimo para a música de verdade, eu até prefiro assim. 

Procurei informações mais apuradas sobre a equipe responsável pela programação da estação na web, mas não encontrei. O que acho importante mesmo é frisar que, além de estar disponível nas principais plataformas digitais para transmissão e streaming (como o popular 'Radios Online', para smartphones), foi através da Rádio Hippie Mundial que tomei contato (ou aprofundei meus conhecimentos) com bandas que dificilmente eu encontraria ouvindo outras rádios. Eis aqui algumas delas:

Thunder and Roses: pedrada hard rock norte-americana do final dos anos 60, foram um power trio que surgiu na Philadelphia, e em seu breve período de existência gravaram um álbum que não deixava nada a dever para monstros da alta sonoridade da época, como Jimi Hendrix e Led Zeppelin. 'King of the Black Sunrise' (1969) é uma obra-prima soterrada pelo tempo e ostracismo.

Thunder and Roses


Thunder and Roses - 'Moon Child'


Bodkin: bebendo naquela fonte boa do início dos anos setenta, que mesclava rock pesado e progressivo, com raivosos duelos entre teclados Hammond e guitarras Gibson, esse grupo escocês de pouquíssimas chances comerciais não reverberou muito além das terras europeias, na época de sua existência. Mas deixou um belo e autointitulado registro, em 1972. 

Bodkin - 'Plastic Man'


The Unspoken Word: o "palavra não falada" talvez tenha sido um dos grupos que melhor condensou aquela sonoridade folk pastoral e entremeada de elementos da psicodelia e do blues, que tanto marcou o final dos anos sessenta. Egressos de Long Island (EUA), tinham um excelente casal de vocalistas, formado por Dede Puma e pela primorosa Zenya Stashuk (também guitarrista), sendo acompanhados por Greg Buis (baixo), Les Singer (bateria) e Angus Macmaster (teclados). Apesar do pouco reconhecimento, deixaram 2 belos álbuns: 'Tuesday April 19th' (1968) e 'Unspoken Word' (1970).

The Unspoken Word - 'Around and Around'

  

Clear Light: talvez a mais conhecida de todas as bandas comentadas aqui, o Clear Light teve um moderado sucesso nacional com o seu único álbum, de estreia, autointitulado e lançado em 1967 pela Elektra Records, além de terem sido colegas próximos do mais prestigiado grupo lançado pela gravadora, os Doors, de Jim Morrison. O seu produtor também era o mesmo dos Doors, Paul Rothchild. Mas durante a gravação do disco, ele teve alguns problemas com o Clear Light, achando seus músicos muito primários e indisciplinados. Na verdade, eles tinham um approach mais 'punk' e uma atitude mais desleixada em relação ao show business, que fez com que eles desmanchassem o grupo ainda quando estavam começando a produzir seu segundo álbum, nunca terminado. Mas mesmo em sua curta trajetória, produziram belíssimas pérolas do pop rock psicodélico, como "Mr. Blue" e "Black Roses", um single de relativo sucesso nas paradas da época. Curiosidade: pela sua formação, passaram inicialmente o renomado cantor folk Barry McGuire (que ficou bastante famoso depois em carreira solo), e em sua fase final, o ator/cantor Cliff DeYoung.

Clear Light


Clear Light - 'Black Roses'


Blue Effect: fenômeno do rock psicodélico/progressivo da Tchecoslováquia, esse grupo de grande longevidade tinha fortes influências do jazz rock, e só veio a encerrar atividades em 2016, com a morte de seu líder e guitarrista principal, Radim Hladik. Apesar da longa carreira e uma respeitável discografia, nunca tiveram grande sucesso fora das fronteiras europeias. 'Kingdom of Life', lançado em 1972, é seu álbum de maior êxito comercial.

Blue Effect - 'Sun Is So Bright'


Kahvas Jute: esse combo originado na Austrália nos anos finais da década de sessenta teria, em suas fileiras, o baixista Bob Daisley (depois famoso por seus trabalhos com Ozzy Osbourne e Black Sabbath), e ex-roadies do Led Zeppelin, como o guitarrista Dennis Wilson. Faziam um som de respeito, elaborado a partir das melhores fórmulas do blues pesado, e dosado com influências de folk. Rezando na mesma cartilha de bandas históricas como Cream e Mountain, o Kahvas Jute infelizmente também durou só um disco, o clássico 'Wide Open', de 1971.




Kahvas Jute - 'I Can't Stop'


November: se você der uma busca pela obra desse lendário grupo sueco na web, você vai encontrar 3 discos dos anos setenta que são petardos poderosos, e pode achar até difícil pronunciar os nomes das músicas (eu incluso), visto que, a partir de um certo momento, o trio resolveu parar de usar o inglês, e compor e cantar somente em sua língua pátria. Mas deixando isso de lado, acredite: é um dos mais perfeitos e bem tocados exemplares do que chamamos de clássico hard rock setentista. Existiram no período de 1969 a 1972.

November


November - 'Tillbaks Till Stockholm'


Fanny Adams: outro grupo australiano fantástico, que também sofreu da maldição de um disco só. O Fanny Adams prometia muito, pois contava  em suas fileiras com excelentes músicos da cena rock australiana e inglesa dos início dos anos setenta, que já haviam trabalhado com bandas como Bee Gees e The Aztecs. Mas, apesar do primor que é o seu único disco, de 1971, com um rock pesado e denso no talo, a coisa não foi pra frente.

Fanny Adams


Fanny Adams - 'Ain't No Loving Left'

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

OS 40 ANOS DE 'O RETORNO DE JEDI' (e o caos na Força depois disso...)

 

Ainda me lembro de uma manhã ensolarada, no pátio do prédio de condomínio aonde morávamos, em São Vicente-SP, em que o papo de toda a garotada era sobre aquela disputa de quem tinha ido assistir primeiro os dois principais filmes infanto-juvenis daquele ano de 1983, os campeões de bilheteria entre a molecada na faixa etária em que estávamos, entre os 8 - 12 anos de idade: Superman 3 e O Retorno de Jedi.

E apesar de ter saído um pouco depois, mais para o final do ano (especificamente, no mês de outubro de 83), já dava para sentirmos no ar que o hype estava maior em torno daquele último exemplar de Star Wars, que fechava então a mitológica saga dos personagens de George Lucas no cinema. Enquanto o super-herói da DC Comics, desempenhado por Christopher Reeve, sofria críticas pelo tom mais "diferentão" e paródico de seu terceiro filme, 'Return of the Jedi' era aguardado com grande apreensão por todos os fãs, devido aos acontecimentos trágicos do filme que o antecedia, e que causara enorme balbúrdia e comoção, O Império Contra-Ataca (1981), onde Darth Vader revelava ser o pai de Luke Skywalker e o derrotava num duelo de sabres de luz, e o carismático Han Solo terminava subjugado pelo Império e congelado numa cápsula de carbonita. Até hoje, ficou representando o mais clássico modelo de filme sombrio onde tudo dá errado para os heróis, de forma a suscitar (e excitar) a audiência para uma continuação onde tudo possa se resolver - modelo seguido à risca e com perfeição anos depois pela Marvel, nos seus filmes dos Vingadores: 'Guerra Infinita' e 'Ultimato' (2018 e 2019, respectivamente).

Cartaz original do filme nos cinemas

Naqueles saudosos tempos, mais calmos e mais simples, sem tantos spoilers, sem redes sociais e informações que revelavam praticamente todo o teor das obras artísticas - sim, ir ao cinema ver um filme era ainda uma autêntica aventura, não se sabia o que poderia se encontrar - não havia muita noção de que esse filme pertencia a uma trilogia que se encaixava em algo bem maior projetado pela mente de seu criador George Lucas, e ainda chamávamos todos aqueles filmes de "Guerra nas Estrelas", ou "filme pertencente à série Guerra nas Estrelas", era tudo mais provinciano e abrasileirado mesmo. 

Mas a verdade é que, a despeito de Retorno de Jedi amarrar sim, e muito bem, as pontas deixadas soltas 'para o lado negro da Força', do filme anterior, muita gente não escapou de sair um pouquinho decepcionada dos cinemas quando finalmente o assistiu. Mesmo que Superman 3 tenha sido mais alvo de críticas por parte de público e imprensa, do que a última aventura de Leia, Luke e cia.

Ewoks: o lado "fofo" da Força

O problema era o tom um tanto quanto "fofo" e mais infantil de uma boa parte da trama passada na lua de Endor, onde o Império tinha uma base de controle escondida para o comando da sua nova e letal Estrela da Morte, e que era habitado por uma população nativa de "Ewoks": ursinhos de pelúcia selvagens e emissores de grunhidos que interagiam em pé de igualdade com os nossos rebeldes protagonistas da trama, passando a ajudá-los e tomando um enorme tempo de tela. Não que fosse de todo ruim - mas talvez se a solução do roteiro original fosse adotada, de colocar os wookies (irmãos de raça do Chewbacca) no lugar, poderia ter agradado mais certa parte do público.

Era, no entanto, a conclusão mítica de uma das maiores séries da sétima arte, e nos lembremos de que não havia tantos filmes feitos em sequências daquela forma, até então. A simbologia toda por trás do uso da Força estava lá, os ensinamentos de Mestre Yoda e de Obi Wan Kenobi, bem como vilões lendários como Jabba, o imperador Palpatine, o mercenário Boba Fett (em sua primeira aparição!) e, óbvio, o grande, o maior de todos, o temido e abominável Darth Vader. O tom épico de seu duelo final com Luke Skywalker, sob uma trilha sonora orquestral e grandiloquente, já entrou há muito para a galeria das grandes cenas do cinema. E o desfecho a seguir reafirmava tudo aquilo que as profecias jedi já anunciavam - de que o verdadeiro responsável por restabelecer o equilíbrio da Força, no universo, era Vader. Ou Anakin Skywalker, como preferir.

Vader versus Luke: o duelo final de sabres de luz, entre pai e filho

Império vencido, festa dos rebeldes, espíritos iluminados dos jedi que se tornaram um com a Força, mediante os olhares de Luke feliz mas, ao mesmo tempo, reflexivo no final da película. E acabava, bem ali, a era clássica de Star Wars. Aquela primeira, canônica, irretocável e mágica, de 3 filmes originalmente concebidos, e pronto, eis aí. Ponto final.

Mas calma. Não. Agora é que a bagunça ia começar.

A trilogia original, tal qual foi imaginada e lançada, era um ciclo conciso que se fechava em si, dando toda a noção da mitologia daquele universo de personagens, e dosando com perfeição aventura, drama, suspense, fantasia, e até elementos de humor. Assim que foi concluída, estabeleceu um parâmetro de exploração comercial típica dos blockbusters, com um sem-número de subprodutos e itens de consumo, mas sem novas tramas oficiais, e assim teria continuado... não fosse a própria sanha do seu criador, George Lucas, e logo mais adiante da Disney, para expandir à exaustão esse universo.

Han Solo (Harrison Ford), no 'Guerra nas Estrelas' original

Rebuscando rascunhos e ideias há muito engavetadas, Lucas e sua equipe deram o pontapé à trilogia que antecederia todos os acontecimentos do Guerra nas Estrelas original, de 1977, e que iniciava já como "Episódio 4" - ou seja, havia o esboço de uma trilogia anterior, que contava como surgiram o Império do mal, a Aliança Rebelde, e principalmente, o icônico Darth Vader. Obviamente, que o foco todo dessa nova etapa de filmes era a transmutação do jovem Anakin Skywalker, de padawan (aprendiz de guerreiro jedi) a mestre sith, migrando do lado bom para o lado negro da Força. Com resultados irregulares, ligados a elenco, alguns novos personagens insólitos (como o bizarro Jar Jar Binks) e furos na trama em relação à trilogia original, os novos filmes feitos a partir de 1999 foram bastante criticados pelos fãs na época, e apenas mais recentemente passaram por um revisão de conceitos que lhes reservou um bom lugar na mitologia da saga.  Entre mortos e feridos, salvaram-se quase todos, com o pobre Anakin enfim sendo "cibernetizado" na figura do tétrico e gutural Darth Vader na conclusão dessa nova trilogia. O trágico A Vingança dos Sith (2005), portanto, acabou sendo realmente um filme muito bom, conseguindo emular o clima épico dos filmes clássicos.  

O bizarro Jar Jar Binks

O plot twist mais tresloucado jamais imaginado por todos vai ocorrer em 2012, quando finalmente é sentido um forte abalo na Força: George Lucas abre mão da  produtora LucasArt e de todos os seus direitos sobre os filmes e personagens Star Wars. Para quem? Mickey Mouse.

A partir daí, a Disney se torna a produtora oficial da saga Star Wars, e resolve quebrar a banca anunciando, para 2015, a nova trilogia Star Wars no cinema, agora unindo passado e futuro, dando continuidade a toda a trama original e juntando novos e velhos personagens. É a "era Rey", com uma menina catadora de lixo desempenhada pela atriz britânica Daisy Ridley, que vai se revelar como detentora de ancestrais poderes jedi. Para dividir os holofotes com ela, um protótipo de Vader, na forma do sobrinho dele, Kylo Ren (interpretado por Adam Driver). E o show vai começar, com o sétimo, oitavo e nono episódios.

Finn (John Boyega), Rey (Daisy Rdiley) e Poe Dameron (Oscar Isaac): o trio de protagonistas casca grossa da última trilogia Star Wars nos cinemas

Resumo da ópera espacial toda: em meio a um fan service defenestrado idealizado pelos executivos de entretenimento da Disney, levando a uma espécie de "pasteurização" da saga, surge toda uma leva de novos personagens, que ora funcionam, ora não - difícil reconsiderar o arremedo de Han Solo que é o personagem Poe Dameron (Oscar Isaac), ou a falta de carisma do Finn (John Boyega). Também não consigo evitar um sentimento de ojeriza toda vez que vejo aquele tal de DJ, interpretado com uma overdose de trejeitos demenciais pelo Benicio Del Toro, no oitavo episódio (Os Últimos Jedi, de 2017). Parece que, de repente, todo mundo em Hollywood quis se aproveitar do evento pop que é Star Wars, mas adulterando conexões emocionais com sua extensa legião de fãs, se apropriando grotescamente de seu encanto primal e o subvertendo à linha de produção do mercado. Fagulhas da magia dos filmes originais aparecem aqui e ali, em certos momentos, mas a verve da velha proposta não está mais lá, os roteiros não se sustentam nessa vibe. É como a velha história de querer inventar demais para redescobrir a roda, que já foi inventada. 

Kylo Ren

E o pior de tudo, e que a uma altura dessas já deixou de ser spoiler há muito e muito tempo, em uma galáxia distante: para deixar raivosa toda uma imensa gleba de fãs puristas, vemos o completo extermínio do trio original de protagonistas da série. Em cada um dos filmes, vão padecendo Han Solo, Luke Skywalker e Leia, um a um. E não é val dizer que porque Carrie Fisher já tinha falecido na época do lançamento do último filme, então seria preciso matar sua personagem - vamos lá Disney, vocês mesmos são pioneiros na utilização de tecnologia digital e IA para recriar figuras, vide os produtos derivados de Star Wars em suas séries de streaming e o filme avulso Rogue One (2016). 

Confesso que eu, assim como tantos outros, também fiquei bastante decepcionado com as mortes desses personagens clássicos - todo mundo estava lá para vê-los interagindo mais, entrando em ação, e realizando aquela velha química que havia entre eles. Juntos! Mas não tivemos nada disso. Luke, um dos maiores símbolos de esperança na galáxia, se tornando um ermitão ranzinza e antipático, jogando fora o seu próprio sabre de luz, recuperado pela Rey! Há quem ainda considere a luta "holográfica" dele, transmitida direto de seu retiro em 'Os Últimos Jedi', uma piada de grande mau gosto com o cânone da saga... 

Luke Skywalker (Mark Hammil): bancando o ermitão ranzinza e antipático

Passado tudo isso, e os absurdos já cometidos pela Disney em sua louca cavalgada rumo à exploração extrema do universo jedi em mais séries de streaming com tramas empoladas, e mais subprodutos, agora já se fala em uma "nova saga", com mais filmes da personagem Rey, pobre jedi que não tem sossego. E que ainda evoca e toma para si o sobrenome 'Skywalker', para que este não tenha também. Que a Força proteja a todos nós!


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