quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

A FALTA QUE KUBRICK FAZ

 


Não são uma, nem duas, e nem três pessoas que tem falado sobre como a mais recente cinebiografia sobre Napoleão Bonaparte, Napoleon (2023), de Ridley Scott, está repleta de furos históricos mas, talvez o pior ponto, é que seja igualmente isenta de um estudo psicológico mais profundo sobre a intrincada personalidade de seu mítico protagonista. Apesar de Ridley ser o responsável por obras lendárias como Alien (1979), Blade Runner (1982) e Gladiador (2000), o que se observou aqui foi o pretenso intuito do criador de realizar um culto ao "cinema espetáculo", com grandiosidade de cenários e figurino, mas se esquecendo do viés mais intimista e emocional do roteiro, resvalando em superficialidade no estudo de personagens. O fetiche pelo blockbuster.

Napoleão (2023), de Ridley Scott

A visão de um cineasta é a cara do filme que ele realiza. Isso fica cada vez mais evidente a partir dos ditames da New Hollywood dos anos 60 e 70, movimento que estabeleceu o padrão do filme autoral como uma otimização da expressão artística na sétima arte lá fora. No Brasil, já vivíamos essa realidade desde outras eras, em muito graças aos esquemas marginais de financiamento, derivados da cultura mambembe e a falta de grana (poder) dos produtores, que acabava deixando o próprio diretor correndo atrás de tudo e ficando com a liberalidade de uma maior fatia de expressão artística - exemplos como as obras de Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 Graus, Vidas Secas), e dos icônicos Glauber Rocha e José Mojica Marins, o 'Zé do Caixão', nos anos 60, não me deixam mentir.

A partir dos sixties, gente como Martin Scorcese, William Friedkin, Francis Ford Coppola, Arthur Penn, Dennis Hopper, Terrence Malick, e muitos outros, passa a idealizar o cinema de autor como uma premissa básica para a consecução de tramas robustas e criativas, que buscavam não só o refinamento e a inovação estética da cinematografia, como também, o aprofundamento das características psicológicas das personagens.

Isso em território americano. Mas, e na Inglaterra?

Stanley Kubrick

Desde a década de 1950, um promissor especialista em fotografia já vinha se especializando como assistente, e foi galgando os degraus até conseguir o seu primeiro grande êxito com o filme Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957), que tinha o astro americano Kirk Douglas. Se tratava de Stanley Kubrick.

Em 1960, Kubrick teria mais um grande êxito resultante da parceria com Douglas, o épico de gladiadores Spartacus, que já prenunciava que ali estava surgindo um grande diretor de cinema. Mas foi com dois filmes que despertariam polêmica e curiosidade, tocando em temas tabus, que ele se firmaria e passaria a ser celebrado, dos dois lados do Atlântico: Lolita (1962), e Dr. Fantástico (1964). O primeiro era a adaptação do romance de Vladimir Nabokov, que abordava a relação de um professor de meia idade com uma ninfeta de apenas 14 anos, numa obra precursora das discussões acerca da pedofilia. E o segundo era uma comédia escrachada de humor negro, capitaneada pelo incrível comediante inglês Peter Sellers em seu elenco, tratando das agruras de um inevitável conflito nuclear bem no clímax da Guerra Fria, entre EUA e União Soviética. 

Peter Sellers, no clássico 'Dr. Fantástico' (1964)

É interessante notar como que ao longo desses filmes (ambos em preto-e-branco), Kubrick foi desenvolvendo seu estilo, e aprimorando ângulos de câmera, closes, cenários e distanciamentos, bem como um talento praticamente perfeito em conseguir focar e explorar as nuanças mais escuras da alma humana e suas obsessões. Kubrick acabaria se tornando o cineasta com maior envergadura para explorar personagens desajustados, psicóticos, bipolares e com desvios de comportamento, do cinema contemporâneo. Perfeccionista, chegava também a filmar mais de 40 ou 50 takes de uma simples cena, apenas para conseguir apurar o modo como ele a idealizava em sua mente. Colaborou no desenvolvimento de novos tipos de lentes, e câmeras, e explorou à exaustão os cenários e paisagens, os convertendo em personagens quase que autônomos. Algumas das cenas de seus filmes se parecem com quadros pintados.

2001: Uma Odisseia no Espaço

Em 1968, chega a consagração definitiva, com o clássico da ficção científica 2001: Uma Odisseia no Espaço. Nunca antes, o espaço sideral havia sido tratado de forma tão séria, realista e imersiva, como nessa obra-prima. Inspirado no conto 'The Sentinel', do renomado autor Arthur C. Clarke, o filme consagra definitivamente Kubrick, lhe dando carta branca para, a partir de então, tocar apenas projetos nos quais ele acreditava, e exercer total domínio e controle criativo e artístico. Vieram outros grandes filmes, numa trinca marcante: o famigerado Laranja Mecânica (1972, onde a polêmica da vez se dava por conta da crítica à violência das autoridades e da sociedade, frente à violência juvenil), Barry Lyndon (1975), e O Iluminado (1980). Todos adaptações de grandes obras literárias - Kubrick tinha compulsão por livros. 

Mas justamente nesse pedaço da história, o período entre o final dos anos 60 até meados de 1975, é que chegamos ao ponto que volta ao começo de nosso texto: devido a entraves políticos e financeiros dos grandes estúdios, a frustração que Kubrick sofria por nunca ter conseguido realizar aquele que seria, em sua própria concepção, o maior filme de sua carreira, e talvez de todos os tempos... a sua versão da história de Napoleão

Livro especula sobre como teria sido versão de Kubrick para seu filme sobre Napoleão

A corrente de especulações sobre o que seria "o melhor filme jamais realizado" é extensa, e diversos críticos de cinema e historiadores se debruçam sobre toda a absurda quantidade de material, incluindo livros, relatos de época e biografias, que Kubrick teria reunido durante todo um período, para conseguir colocar em prática o seu sonho de narrar a saga do imperador francês. Rascunhos do roteiro em que Kubrick trabalhara, bem como fotos, imagens e esboços, seriam revelados dez anos depois de sua morte, em 2009, no livro 'Stanley's Kubrick Napoleon: The Greatest Movie Never Made'. Ali, percebemos que uma grande parte do material acabaria sendo utilizada como fonte de pesquisa e produção para o filme Barry Lyndon, de 1975, cuja trama se passa um pouco antes das guerras napoleônicas.

De qualquer forma, é realmente de se lamentar. A visão de Kubrick, com certeza, seria brilhante, e resultaria num filme bem melhor do que o de Ridley Scott, acredito. Teria um tom mais épico, e com maior profundidade de estudo de personagens.

Basta pegarmos um outro filme dele que explora bastante o ambiente bélico, e que, apesar de considerado menor em sua filmografia, hoje pode ser visto e revisto como uma modesta obra-prima que perscruta magnificamente as neuroses do comportamento humano, diante do caos da guerra: Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987).

Nascido para Matar (1987)

Nesse clássico mais recente de Kubrick (o penúltimo que ele realizou), temos a ação nitidamente dividida em duas partes, como capítulos distintos de um livro. Na primeira, nos deparamos com a formatação e desumanização dos recrutas americanos em um campo de treinamento, que serão mandados para o Vietnam. Ali, comem o pão que o diabo amassou com o rabo, na forma da cruel catequização imposta pelo Sargento Hartman (magistral atuação do falecido Lee Ermey), e presenciam a sua perseguição ao frágil recruta Gomer Pyle (desempenhado por um excelente e jovem Vincent D'Onofrio - o atual Wilson Fisk da série Demolidor). Pyle é o 'outsider', a peça que não se encaixa no plano de padronização de corpos e mentes que o programa dos marines (fuzileiros) quer executar, uma lavagem cerebral para transformar rapazes americanos em máquinas matadoras de comunistas. Ele é um agente estranho no corpo militar perfeito e uniforme. Uma bactéria que precisa ser erradicada - ou absorvida. Agressão, humilhação, e  punição de seus atos. Ele vai pirar. Kubrick vai mostrar esse processo gradualmente, com cenas simbólicas e geniais que culminarão em uma tragédia no campus, que vai marcar o final do treinamento. 

O enlouquecido recruta Pyle (Vincent D'Onofrio)

Corte. Segunda parte. Nossos prezados fuzileiros do treinamento já estão no vietcongue, em Da Nang. Joker (Matthew Modine) é o que mais se aproxima de um protagonista, pelo menos para nós, é o narrador da história. De certa forma, é também um desajustado, usa broche do ying-yang, símbolo hippie da paz e amor, em plena terra de guerra. É um debochado, mas se infiltrou ali cumprindo o papel de jornalista do exército, passatempo enquanto não consegue o passaporte da dispensa para sair do inferno. Mas a guerra é brutal, não perdoa. Após um ataque surpresa em sua base, acaba tendo que ir com sua tropa a campo - e ali, vemos um dos mais deliciosos e intensos exercícios de cinematografia de Kubrick, dirigindo com maestria os horrores da batalha a ser encarada. Não há música, não há sentimentalismos, nem muita conversa. Há tiros, gritos, explosões. Kubrick enxuga e joga fora todos os excessos de outros filmes sobre o Vietnam já feitos até então, e nos entrega um espetáculo de dor, selvageria e amadurecimento dos jovens soldados, que terão a mais pura sorte se sobreviverem a tudo aquilo. O foco está na ação, mas também está sempre naqueles olhares assustados e no desespero, a cada tiro letal de sniper, em um vilarejo sob escombros.

Tudo filmado com realismo, eloquência... e teor psicológico, como deve ser. Como deveria ser com Napoleão.

Na guerra, nunca há heróis.


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