domingo, 13 de outubro de 2024

O ÚLTIMO SHOW SOLO DO 'DIAMANTE LOUCO'

 

Quando se fala de Roger Keith Barrett - mais popularmente conhecido por milhões de fãs do Pink Floyd e da cultura pop como Syd Barrett - logo vem a impressão de um cara obscuro, calado e ensimesmado num canto, atormentado por visões terríveis e alucinatórias de outras dimensões espaço-temporais, que lhe concediam a inspiração para variados sons e letras, e entupido de ácido lisérgico até na tampa, prestes a sair perpetrando qualquer desvario por aí.

Syd Barrett

Segundo o amigo de longa data (e célebre substituto de Barrett no Pink Floyd), o também guitarrista e vocalista David Gilmour, não era bem assim:

"Syd era um encanto de pessoa. Um rapaz bem tímido, sensível, e incrivelmente engraçado em uma porção de situações. A imagem que se tem dele contrasta com a de períodos muito bons que tivemos juntos. Depois ele obviamente se perdeu. Mas antes disso, era um cara muito agradável de se estar junto".

Pink Floyd, em 1967: 
da esquerda para a direita, Roger Waters, Nick Mason, Syd Barrett, e Rick Wright

Tanto é que, poucos sabem, os membros do Pink Floyd - talvez por remorso, culpa, ou simplesmente boa amizade - tentaram bastante ajudar Syd Barrett em sua breve, mas turbulenta, tentativa de carreira solo, após ele sair da banda.

Ah, os estranhos confins sombrios da mente humana. A espiral esquizofrênica em que Barrett foi sendo levado deste para outro mundo foi uma das maiores inspirações para os remanescentes de sua banda - o Pink Floyd, principalmente por orientação de Roger Waters (que tomaria a dianteira como figura de frente e principal compositor) passaria o resto de sua carreira emulando temas que versavam sobre a loucura e o isolamento, sobre o ser humano oprimido pelo meio, pelos estratagemas sociais e os diversos fantasmas da existência. E o fantasma de Barrett, e do que o grupo poderia ter sido caso continuasse sob seu comando, os assombraria por todos esses anos.

Um dos maiores sucessos do Pink Floyd é sobre Barrett: "Wish You Were Here" (Gostaria que você estivesse aqui), de 1975, do álbum de mesmo nome. Disco esse que abre, ainda, com uma belíssima e longa suíte, também toda inspirada em Barrett: "Shine on You Crazy Diamond" (Brilho sobre você, diamante louco - sendo que 'diamante louco' era um apelido dado a ele por seus ex-colegas de banda).


O que teria feito um estudante de artes de Cambridge, na Inglaterra, calmo e tranquilo como Barrett, se distanciar tanto da normalidade? É aquilo que nos apavora todos os dias também, quanto nos sentimos perplexos, frustrados, com medo, ou torpor e desalento, diante das situações do dia a dia? Experimente isso amplificado pelas pressões e incertezas da vida na estrada, e dos delírios e exageros artísticos que um lugar insano como a Londres da metade final daquela década propiciava (1965-1970). E... sim, talvez tenhamos a resposta.

See Emily Play (1967)

Nas cabeças de Roger Waters (baixista), Richard Wright (tecladista) e Nick Mason (baterista), além do recém-chegado Gilmour, amigo pessoal de longa data, parecia um tanto quanto absurdo, e decepcionante, o cara que havia praticamente agregado todos e montado a banda estar se desinteressando tanto, se distanciando, justo num momento em que eles estavam vivenciando uma importante ascensão. Já haviam enfileirado hits intrigantes nas paradas de rock britânicas em 1967, como "Arnold Layne", "See Emily Play", "Candy and a Currant Bun", e seu álbum de estreia, o lendário The Piper at the Gates of Dawn, totalmente idealizado pelo imaginário psicodélico de Barrett, havia angariado admiração considerável de público e crítica. Já haviam, inclusive, partido para a sua primeira turnê nos EUA, mais um grupo inglês desbravando a América.

Barrett "se deixou ser dispensado" pelo Pink Floyd em abril de 1968, quando ele já estava num estado tal de alienação e catatonia, que nos últimos ensaios com o grupo, fosse em estúdios ou antes dos shows, ele invariavelmente saía do tom, parava de cantar, começava a tocar notas erradas ou apenas uma nota em várias músicas, ou simplesmente desligava a guitarra e a largava no chão, parando tudo para ir fumar. 

Matilda Mother, do disco 'The Piper at the Gates of Dawn' (1967)

Uma de suas últimas tentativas de gravação com a banda, de uma música chamada "Have You Got It Yet?", tornou-se uma espécie de sessão de tortura para eles, visto que, de uma ideia básica com um arranjo mais simples que Barrett tinha em mente, ele foi mudando tanto a estrutura da composição a cada vez que tocava, e a executando inadvertidamente com alterações que punham os outros integrantes do grupo perdidos, que logo chegaram a discussões e um impasse, com Barrett abandonando a sala de gravação e deixando todos com os ânimos exaltados.

Ele voltaria alguns dias depois, ficando na sala de recepção do estúdio, esperando para ser chamado pelo grupo para continuarem as gravações. Não seria, nunca mais. Assim como para shows. Era o fim do Pink Floyd da era Syd Barrett.

Em 1968, o grupo chamaria o amigo de Barrett, o guitarrista David Gilmour, para colaborar com eles, mas logo ele acaba se tornando o substituto oficial do músico, e passa a integrar definitivamente o Pink Floyd, já gravando o segundo álbum com eles. 


Após a saída do grupo, Barrett ficaria meio sumido durante quase um ano, transitando entre Londres e Cambridge, onde esporadicamente ia passar alguns dias com a sua família. Esse período de semi-ostracismo serviu para dar uma aliviada no temperamento do artista, embora ele ainda mantivesse os diversos contatos de seus dias loucos com o Pink Floyd e, através disso, continuasse com o seu uso abusivo e insano de drogas. No início de 1969, por força de um empurrão do ex-empresário da banda, Peter Jenner, e do pessoal da gravadora EMI-Harvest, Barrett é encorajado a tentar uma carreira solo.

Barrett, em 1969

Com a ajuda de amigos músicos, incluindo o baterista do Humble Pie, Jerry Shirley, mais alguns membros da banda Soft Machine, Barrett entra no estúdio para dar início às gravações do hoje mítico e cultuado disco The Madcap Laughs. Detalhe: ajudando na produção do álbum, estão nada mais, nada menos que David Gilmour e Roger Waters, seus ex-companheiros de banda. Em uma das peripécias mais maníacas de sua vida, Barrett pegou um vôo para Ibiza (na Espanha), ao saber de um show que o Pink Floyd daria lá, e saiu praticamente correndo na pista do aeroporto para encontrar o grupo, e suplicar a Gilmour e Waters que o ajudassem na mixagem do seu disco solo... Piração total.


Logo, as sessões de gravação se provaram tão confusas e erráticas quanto aquelas que ocorriam anteriormente com o Floyd. Barrett se dispersava, mudava andamentos e acordes de última hora, parava as sessões no meio, e colocava quase todo mundo à beira da loucura - a loucura dele. Jenner recorda: "Eu era muito otimista em relação ao senso de recuperação e responsabilidade que achava que Barrett poderia ter, tentando revitalizar sua carreira... eu não sabia no que eu estava me metendo". Ao que David Gilmour, em entrevista de 2007, também complementaria: "Aquelas sessões eram um inferno, uma tortura. Tínhamos pouco tempo, e na maioria das vezes ele realmente não colaborava, não estava bem. Ficamos muito frustrados, pois chegávamos ao ponto de simplesmente chegar ele na parede e dizer: cara, se liga! É a sua carreira, parceiro. Pegue esses seus dedos e toque, mas faça alguma coisa!". 

Contribuindo para a penúria de todas as situações, estava o fato de Barrett ter terminado o relacionamento com sua namorada Lindsay Corner, e estar em uma nova fase depressiva.


Gravado às pressas, e com os músicos e produtores se esforçando para tirar todo o leite de pedra possível daquelas caóticas sessões, 'The Madcap Laughs' é enfim lançado em 2 de janeiro de 1970, e obtém moderado reconhecimento e desempenho. Quase todo acústico, com muito violão e voz, o tom do disco é estranho, e reflete bem o período complicado pelo qual Syd Barrett estava passando: em canções como "Terrapin", "Golden Hair" e "Octopus" (também conhecida em versões alternativas como "Clowns and Jugglers"), temos um artista cantando desvairadamente e de forma livre com seu violão, desafinando e improvisando algumas vezes, com sutis acompanhamentos de banda e outros músicos, seguindo o ritmo como podiam, ou adicionados depois com truques técnicos de estúdio. 

Octopus

Um pouco mais elaborado é segundo disco solo de Barrett, intitulado apenas de... Barrett, lançado em 14 de novembro de 1970. Este é um pouco mais trabalhado instrumentalmente, com um som mais "redondo" e enxuto, e continuava a mão sempre amiga de David Gilmour na produção, mas agora com o reforço não de Waters, mas sim, do tecladista do Pink Floyd, Richard Wright. Que diria:

"Fazer o disco de Syd foi até interessante, mas extremamente difícil. David e Roger fizeram o primeiro (The Madcap Laughs), e David e eu fizemos o segundo. Mas naquela época estava apenas tentando ajudar o Syd de qualquer maneira, em vez de nos preocupar com o melhor som de guitarra. Você poderia esquecer isso! Era uma aventura entrar no estúdio e tentar fazê-lo cantar certo, ele não estava nem aí...".


E então, chegamos aos momentos finais da carreira de Barrett como artista solo e performer, que culminam com aquele que seria o seu último show ao vivo.

A lendária apresentação ocorreu para uma pequena plateia no Kensington Olympia, um teatro perto da entrada do metrô de Londres, em 6 de junho de 1970. 

Não existem registros desse momento, mas o que os fãs viram ali foi uma apresentação fugaz e terrivelmente executada de apenas quatro canções por Barrett, acompanhado por uma minibanda que tinha o parça David Gilmour quebrando um galho no baixo, e outro amigão, o baterista Jerry Shirley do Humble Pie, na bateria. Barrett começa mandando "Terrapin" do primeiro álbum, e até aí tudo vai bem. O pessoal gosta, e aplaude. Logo em seguida, ele toca uma das melhores do segundo disco, que ainda estava pra sair, a bacana "Gigolo Aunt". Os problemas, então, começam. A mesa de som do backstage, pessimamente instalada, começa a dar problemas, o som da voz começa a falhar e volta abafado. Barrett mal termina a música e tentam ajustar a equalização. O show recomeça. Ele toca outra do novo disco, a louca "Effervescing Elephant". A performance prossegue com alguns problemas, a voz falhando em alguns momentos, mas vai até o final. E então, Barrett e os caras começam a tocar "Octopus". Em um determinado momento, a voz de Barrett some de vez. Depois, o baixo de Gilmour dá uma falhada, mas volta. Subitamente, toda aquela aura misticamente etérea de Barrett volta a tomar conta da cena - como nos tempos do Floyd, ele se desinteressando, parando de tocar aos poucos, começando a fixar um olhar vidrado e viajante nos outros músicos e na plateia. Até que para totalmente. A execução de "Octopus" vai morrendo aos poucos, até findar.

Barrett já estava com uma guitarra nessa música, que ele lentamente retira de si com a alça, a despluga, coloca lentamente no chão, e com uma voz calma e pausadamente educada, se dirige a todos nos microfone: "Muito obrigado, foi um prazer. Foi muito bom ver vocês aqui". Ele abandona o palco, e vai embora.

Apesar de sua aparição em um programa de rádio da BBC Londres em fevereiro de 1971, tocando três músicas de sua carreira solo, e de depois ter se envolvido com esporádicas aparições com outros músicos, no projeto de uma nova banda chamada Stars, entre os anos de 1972-1973, Barrett foi lentamente se esquivando de todas as movimentações da carreira artística, e cessando definitivamente a sua história no mundo da música. No período final de sua vida, ele era apenas um pacato e enigmático senhor na cidade de Cambridge, levando uma vida calma com sua mãe e sua irmã, pintando quadros, e evitando de todas as maneiras ser reconhecido e lembrado pelo seu passado. O pouco que se sabia sobre ele nos últimos tempos é que estava lutando contra uma diabetes, e vinha perdendo peso após alguns anos de obesidade.

Syd Barrett morreu em 7 de julho de 2006, aos 60 anos de idade, em decorrência de um câncer no pâncreas.

Em seu atestado de óbito, constava como ocupação: "músico aposentado".

Barrett, em 1998

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