sexta-feira, 20 de setembro de 2024

AS FACES DO MAL, SEGUNDO FRIEDKIN

Para o icônico diretor de cinema William Friedkin - falecido há pouco mais de um ano, em 7 de agosto de 2023, aos 87 anos - a vida do ser humano é um fenômeno marcado por emoções e atitudes fortes, frutos não só da iconoclastia ou do instinto, como também de circunstâncias que fazem as personalidades mais invariáveis se manifestarem e, por conseguinte, os confins do psicológico virem à tona. 

É assim em algumas de suas melhores obras: Comboio do Medo (Sorcerer, 1977), Viver e Morrer em Los Angeles (To Live and Die in L.A., 1985), Matador de Aluguel (Killer Joe, 2011), e , inevitável dizer, O Exorcista (The Exorcist, 1973) - o filme que lhe rendeu notoriedade eterna, o seu passe famigerado para a imortalidade na sétima arte. 

William Friedkin

Tido como um dos primeiros grandes desbravadores do movimento que se tornaria conhecido como New Hollywood, a "nova Hollywood", que subverteu conceitos e padrões estruturais e estéticos dos filmes norte-americanos de meados das décadas de 60 até o final da década de 70, do séc. XX, Friedkin seria considerado talvez o mais irrequieto, perfeccionista e nervoso cineasta de toda aquela geração que incluía Coppola, Scorcese, DePalma e outros. Oriundo de uma família de judeus corridos da Ucrânia para não morrer em massacres anti-semitas dos 1900 e poucos, era de uma família de classe média baixa, onde a mãe, a quem ele chamava de "santa", era uma dedicada enfermeira de salas de cirurgia, em hospitais terríveis de Chicago, Illinois (onde ele nasceu), e seu pai era um marinheiro mercante e comerciante ocasional de roupas, um cara não muito comprometido com a vida familiar, por quem Friedkin nutria um misto de afeição e desprezo. 

Essa origem nas adversidades construiu um jovem homem com caráter duro e determinado, que ao começar a trabalhar e se aperfeiçoar em roteiros e filmagens para documentários e séries de TV do canal WGN-TV de Chicago, ainda novinho, logo após terminar a high school (ensino médio), sabia o que queria, e acreditava no trabalho como forma de caminho para a redenção.

Dali para migrar para Los Angeles e participar de diversas produções, seria apenas um pulo.

O primeiro filme que realça seu nome nas bilheterias é de 1970, baseado em uma peça de Mart Crowley para a Broadway, Os Rapazes da Banda (The Boys in the Band), que abordava a temática gay de forma corajosa, para uma época em que isso causava uma polêmica sem precedentes. Friedkin mostrava que tinha vindo para ficar, e fazer barulho.

Operação França (1971)

Mas o sucesso arrebatador viria mesmo com o até hoje célebre Operação França (The French Connection, 1971), que tinha Gene Hackman como protagonista - o filme que disputa, com o 'Bullit' de Steve McQueen, o título de película com algumas das melhores e mais realistas perseguições de carros policiais.  Assim como a personalidade de Friedkin, o filme era duro, seco e sombrio. Marcou época por jogar fora toda aquela tralha de filmes de tira onde os inspetores ou detetives eram heróis vibrantes e certinhos, e as linhas divisórias entre eles e os bandidos eram bem demarcadas. Não senhor, ali tínhamos missões falhas, pistas falsas e tiros em pessoas erradas, bandidos que escapavam no final, nada é perfeito e ponto final - a vida como ela é. Essa nova visão ao gênero foi um tiro certeiro para William Friedkin: em 1972, de oito indicações para o Oscar, ele sairia com a estatueta dourada nas mãos em cinco, incluindo a de melhor filme, a de melhor diretor para ele mesmo, e de melhor ator para Gene Hackman.




Foi o passaporte para que ele tivesse o sinal verde para fazer o que quisesse, e então iniciasse a produção daquela que seria considerada por muitos a sua obra-prima.

Friedkin andava obcecado por um livro lançado naquela época, e que ele lera recentemente, baseado na história do exorcismo real de um garoto de 14 anos, que teria ocorrido no final da década de 1940, no estado de Maryland. O livro se chamava "O Exorcista", havia sido escrito por William Peter Blatty - que ouvira falar do caso do exorcismo quando ainda era estudante na faculdade de Georgetown - e nele o enredo do fato era alterado para uma menina (Regan), filha de uma atriz de cinema, como sendo a vítima de uma possessão. 

O cineasta rapidamente começou a emendar uma série de conversas com o autor do livro, no sentido de negociarem uma adaptação para as telas. Blatty, logo em seguida, foi contratado como roteirista, e moldou ele mesmo o screenplay para o que se tornaria um dos filmes mais vistos, comentados (e temidos) de toda a história do cinema.

William Peter Blatty

Dirigido com habitual mão de ferro por Friedkin, o hoje clássico "O Exorcista" foi estrategicamente lançado no dia seguinte ao Natal de 1973, no dia 6 de dezembro, e acabou sendo alvo de uma inovadora campanha de marketing por parte da produtora Warner Bros., surfando na remanescente onda midiática de filmes, livros músicas e diversas obras artísticas que, desde o período final da década de 1960, abordavam o tema do satanismo e ocultismo, com movimentos sociais e seitas como a de Anton LaVey, os filmes-manifesto de Kenneth Anger e o célebre Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polansky, além da obviamente sempre lembrada chacina comandada por Charles Manson (1969), que estava ainda recente e tinha suas óbvias relações com o fanatismo anticristão e o oculto. 

Todo esse zeitgeist sinistro beneficiou, e muito, o êxito da nova empreitada de Friedkin, sendo que telejornais e  manchetes davam ênfase às filas quilométricas que se avolumavam nas portas dos cinemas, de milhares de espectadores querendo assistir o filme, ainda que debaixo do frio rigorosíssimo do inverno de 1973. Não obstante, eram publicados relatos de pessoas apavoradas, algumas passando mal e algumas abandonando as sessões de exibição, chocadas e batendo o queixo - e frisando que não era de frio, mas de medo. Tudo contribuiu para essa aura mítica em torno de O Exorcista, que marcou para sempre o cinema de horror.

Analisando mais tecnicamente, é uma obra muito bem feita e extremamente bem concatenada por Friedkin, que capricha em um clima lúgubre e de crescente e sufocante suspense em torno da gradual transformação da jovem Regan (interpretada por Linda Blair) e seu processo de possessão, até a sua completa efetivação, com efeitos devastadores e tenebrosos sobre o seu corpo e a sua voz, cada vez mais disformes e guturais, bem como o terror e desespero de sua mãe (excepcional atuação de Ellen Burstyn), tomada de uma incapacidade e agonia dilacerantes, sem saber como recuperar sua filha. Há dois contrapontos, aliás: a trama se preocupa com o núcleo de Regan e sua possessão, de um lado, e do outro, com o impasse existencial do padre Damien Karras (interpretado por Jason Miller), com a fé abalada e sem dinheiro para tratar da mãe doente, tentado a largar a batina e voltar à sua carreira de pugilista. Ele em breve será levado a testar a sua fé, ao ser chamado a confrontar o peculiar problema de Regan, e com a chegada ao local de um já tradicional padre exorcista convocado pela igreja, aparição magistral de Max Von Sydow no papel do padre Merryn...

Após desfrutar dos louros do imensurável sucesso de O Exorcista, Friedkin seguiria com uma longa e irregular carreira, com alguns altos e baixos - sendo os baixos em bem maior número. Convidado e intimado, pela Warner e vários estúdios, a filmar ou participar de sequências ou derivados de seu maior êxito, Friedkin se manteve fiel ao seu caráter de originalidade e ineditismo, e recusou todas as propostas. Segundo ele mesmo dizia, nunca quis voltar àquele lugar comum. Mas, em seu íntimo, algo ainda o inquietava e desafiava, havia ainda uma incitação sobre coisas a se dizer a respeito das instituições do profano e do sagrado, os atos da possessão e do exorcismo - e que ainda o fascinavam.

O resultado dessa necessidade de expiação viria em 2017, com o lançamento de O Diabo e o Padre Amorth (The Devil and Father Amorth), em que Friedkin retorna ao tema mas de forma diferente, voltando às suas raízes de documentarista. 

Friedkin e o padre Gabriele Amorth

O filme acaba sendo uma longa reportagem, de 70 minutos, mas cuja importância reside principalmente em uma profunda análise que Friedkin faz de suas próprias crenças a respeito do que realmente é o exorcismo. Para isso, ele acompanha, até um pequeno vilarejo da Itália, o célebre padre exorcista do Vaticano, Gabriele Amorth (1925 + 2016), onde ele realizará o nono ritual de exorcismo de sua vida, em uma moça de trinta e poucos anos que será simplesmente chamada de "Christina" (nome fictício). Friedkin filma, com detalhes, toda a sessão real de exorcismo. São cenas impressionantes, que não deixam de chocar - mas de um forma muito diferente daquela do filme de 1973, com foco no realismo, seja nos semblantes dos familiares e amigos da moça possuída, nas orações e imprecações do padre Amorth, ou nas expressões contorcidas e alteradas de Christina. 

Apesar de ter sido acusado por alguns críticos de ter adulterado um trecho em que a voz da exorcizada aparentemente apresenta mudança gutural, Friedkin juraria até o fim de sua vida que tudo que ele mostrara ali era filmagem legítima, footage puro e sem nenhum tipo de manipulação. E isso só torna a coisa ainda mais assustadora.

Ele não se rende, tampouco, ao maniqueísmo do simples temor religioso, e seu documentário também adentra o terreno científico, das pesquisas neurológicas e sobre os transtornos psicológicos e emocionais, as doenças psiquiátricas e desvios de personalidade, que podem também constituir causas para todo aquele fenômeno apresentado. Acaba sendo um primoroso trabalho investigativo e jornalístico, no qual Friedkin perscruta formidavelmente quais são os motivos para todas as faces do mal que se revelam, em uma possessão demoníaca. O cineasta deixa as suas impressões em aberto, sem acabar pendendo para nenhuma tendência e deixando o terreno aberto para que cada espectador reflita e tire as suas próprias conclusões, o que é louvável, e constitui um grandes méritos do documentário.

Amorth deveria ter realizado mais um exorcismo algum tempo depois, o seu décimo, e que provavelmente entraria no documentário também, mas acabou sendo hospitalizado e morreu, em Roma, aos 91 anos, após o agravamento de problemas pulmonares, durante o período de finalização do filme. Assim como na retumbante obra de 1973, onde os padres padecem diante do enfrentamento contra as forças demoníacas, tudo isso conferiu um toque ainda mais trágico e sombrio a essa nova incursão de Friedkin pelo exorcismo, só que dessa vez contada com fatos reais, e atores reais. Assim como é sugerido em várias das entrevistas, o mal pode surgir de várias formas, pode ser gerado a partir de diversas origens.

É o diabo de cada um, sempre pronto para agir, sempre pronto para aparecer e enganar, como quem não quer nada. 

Só a fé mesmo pra dar um jeito nisso. E haja fé.

Friedkin nos intervalos das filmagens de O Exorcista, com Linda Blair


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Um comentário:

  1. Bom dia. Curti a sua página. Se puder me siga na minha página de cinema. https://cinemacemanosluz.blogspot.com/

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