Fosse vivo, ele estaria completando 74 anos nesse 14 de setembro próximo. Era do mesmo panteão de outros lendários guitarristas, cujos instrumentos e notas eram embebidos no blues, encharcados de riffs, acordes e fraseados intensos e acachapantes - um deles, aliás, o fantástico irlandês Rory Gallagher, já retratado aqui, em uma de nossas postagens! Mas guitarristas esses que também, por não terem pertencido a combos ou bandas mais duradouras, ou de um impacto midiático mais estrondoso e longevo, acabaram não ficando tão conhecidas ou lembradas pelo grande público - afinal, não é todo mundo que teve o mesmo destino (e sorte) de um Eric Clapton, Jeff Beck ou Jimmy Page, para participar de grupos como Yardbirds ou Cream, não é mesmo?
Estamos falando aqui de Paul Kossof, o guitarrista da mítica banda inglesa Free.
Desde tenra idade, Kossof já era íntimo das artes - era filho de David Kossof, grande ator britânico, com prolífica carreira no teatro e cinema ingleses. Com as constantes mudanças da família, por conta dos variados convites para o pai participar de peças e projetos artísticos diversos, Paul desenvolveu uma personalidade intimista e errante, fato agravado pelo que viria a ser a sua baixa estatura em adulto (cerca de 1,62m), padrão considerado inferior para os britânicos, o que viria a causar severos problemas de 'bullying' e autoestima no moço desde cedo.
Apesar disso, Kossof tinha sensibilidade e carisma inegáveis e, a despeito dos problemas de rebeldia e comportamento na escola, em muito causados pelo problema anteriormente descrito, ele começou a desenvolver um talento inegável para o violão, já a partir dos 10 anos de idade. Aos 14 anos, já no ensino médio, ocorreu um episódio complicado, em que Kossof conseguiu com alguns colegas receitas de remédios em excesso para dores no estômago, que lhe causavam alívio e entorpecimento para suas angústias (presságio dos seus futuros problemas com gastrite nervosa e drogas), e após um episódio em que isso lhe causou embaraço nos estudos, seu pai resolveu tentar "criar responsa" no menino, e chamá-lo para participar da produção musical de algumas de suas peças teatrais, já no início dos anos 60.
O maior envolvimento de Kossof com o mundo artístico foi tão proveitoso, que a sua gama de contatos se expandiu, e logo ele estava trocando figurinhas com algumas das principais figuras do blues de Londres - assim como os futuros membros de agremiações como os Rolling Stones, Yardbirds, Pretty Things e Kinks, Kossof era um entusiasta do estilo, e reza a lenda que, em um só final de semana, havia conseguido tirar de ouvido todas as músicas da coleção do bluesman americano Elmore James, na casa de um amigo dele que havia trazido os discos dos EUA, feito admirável e que mostrava a devoção do guitarrista aos sons que faziam a sua cabeça.
Já mudado de mala e cuia para a capital inglesa, em 1966 ele é convidado por um amigo, o baterista Simon Kirke, para fazer parte do grupo de blues Black Cat Bones. Esse seria um dos passos mais importantes de sua carreira: enquanto eles estavam acompanhando uma turnê do já célebre grupo de Peter Green, o Fleetwood Mac, eles acabam conhecendo o vocalista Paul Rodgers - dono de agudos roucos e bluesy poderosos - e o baixista Andy Fraser - o cara que reinventou o jeito de tocar baixo nos anos 60, ao lado de John Entwistle, do The Who - e juntos, resolvem montar uma nova banda, com propostas mais pesadas e progressistas: o lendário Free.
Ele pertencia à escola dos guitarristas que priorizavam o feeling, no lugar da velocidade.
As notas dos solos de Kossof eram precisas e cadenciadas, colocadas no lugar certo e na hora certa da música, e escolhidas com um bom gosto tão peculiar, que talvez só mesmo David Gilmour (do Pink Floyd) poderia fazer páreo a ele, em alguns momentos.
Sons como "Walk in My Shadow", "Goin' Down Slow" e "I'm a Mover", do primeiro álbum do Free (1968) desafiam as convenções do gênero, ao mostrar um guitarrista à frente do seu tempo, e que segura a barra em todas as direções, ritmando e solando feito um degenerado do blues. No disco seguinte, autointitulado (Free, 1969), novamente o pau come, em petardos como "I'll Be Creeping" e "Broad Daylight".
Mas é no mega platinado Fire and Water, de 1970, que as coisas mudam de vez, e o Free se torna não uma sensação britânica - mas sim, um grupo de renome internacional, com o seu hino eterno, "All Right Now". Essa música é tão icônica que, até hoje, é difícil não reconhecer ela, à medida que tocam seus primeiros acordes certeiros, introduzidos por guitarra e bateria. O seu ritmo envolvente e "funkeado" é a deixa para Rodgers desfilar seu vocalzão poderoso, e Kossof solar feito um possuído, com notas inebriantes e repletas de sensualidade. Até mesmo no Brasil, o sensacional cantor Leno, em seu aclamado e censurado álbum Vida e Obra de Johnny McCartney (1971) rendeu ode a ela, na estonteante "Por Que Não". Em outras faixas, como a icônica "Mr. Big", a despeito de ser uma música criada para a tour-de-force do baixista Andy Fraser, que faz misérias com seu instrumento, chama a atenção o solo melancólico e inebriante de Kossof arrasando nas seis cordas, preenchendo a música e viajando no tempo-espaço como se fosse o visitante de uma nova era, ser em ebulição cósmica de uma realidade atômica totalmente desvairada.
"All Right Now" se tornou a música-símbolo do verão na Inglaterra, em 1970, e o seu sucesso estrondoso e arrebatador fez com que o grupo fosse imediatamente escalado para participar do célebre Festival da Ilha de Wight: versão inglesa do americano Woodstock, que ferveu quente entre a hippaiada da Europa e resto do mundo na época. Para se ter uma ideia, esse foi o famoso festival em que até mesmo os exilados brasileiros Caetano Veloso e Gilberto Gil estiveram, depois do bode com a ditadura militar brasileira, que fez eles "cascarem" para o exterior.
Após a apoteose triunfante, e necessária, do Free na Ilha de Wight, se seguiram turnês, shows e mais shows, e o grupo se tornou um dos maiores do mundo, chegando a rivalizar com The Who, na época.
Mas dali em diante, para Kossof, infelizmente, seria ladeira abaixo... Os problemas do músico com o pó, bolinhas e ervas, subterfúgios enganosos para os seus problemas de estômago e baixa autoestima, passam a fazer parte constante da sua rotina, e são agravados pelo aumento do consumo de álcool. Quem é do ramo gástrico, sabe que isso se torna uma bomba-relógio: e para um cara que nem Kossof, que já vinha de problemas anteriores ligados à ansiedade e úlcera, tudo isso era só questão de tempo para virar "caca".
Quando conflitos internos no Free levam à separação do grupo, no final de 1970, e Kossof se vê às voltas com a necessidade de lidar com uma carreira solo para manter o bonde andando, tudo desembesta ainda mais, e a vida do guitarrista passa a ser uma sucessão de idas e vindas com músicos amigos e conhecidos - mas, obviamente, sem o mesmo talento dos colegas originais de banda - para se manter no ramo profissional da música. Em 1972, Kossof se muda para os EUA, e dali em diante, cria e mantém, com formações improvisadas e participação de amigos, o projeto solo Back Street Crawler, que possui 3 álbuns lançados.
O grande problema é que a situação da saúde de Kossof iria só decair, a partir de então, e vai chegando a um nível insustentável quando, mesmo para gravar um célebre álbum de reencontro da formação original do Free, em 1973 (o irregular Heartbreaker), o guitarrista machuca uma de sua mãos em um acidente estúpido causado pela letargia química, e mal consegue contribuir em algumas das faixas do disco, tendo que ser substituído. Mesmo assim, o hit do disco, "Wishing Well", contém o brilho de sua guitarra, e chega ao topo das paradas mundiais naquele ano.
Colegas e parceiros musicais de Kossof testemunham a sua gradual derrocada, nos anos finais de sua trajetória errante - Ken Hensley, guitarrista e vocalista do Uriah Heep, se lembra do estado deplorável do amigo, em uma entrevista de 1980: "Adorável ele, Kossof era tão adorável! Um cara sensível, muito gentil e amável, sempre atencioso com todos. Mas era obcecado por Jimi Hendrix - chegou a conhecer Hendrix, trocaram figurinhas e se tornaram amigos. E depois que Hendrix morreu, acho que ele ficou tão chocado e obcecado que, com o término do Free, ele começou a pensar que o seu destino seria o mesmo. Me lembro ainda de chegarmos na casa que ele tinha comprado em Los Angeles, para chamarmos ele para uma sessão de gravação e... meu Deus, o mar de pessoas esquisitas e junkies caídas, desmaiadas no chão da sala e em todos os cômodos, todos os lugares. Aquilo era a decadência pura. E encontrávamos Kossof lá no meio... era preciso levá-lo para o banheiro, dar um banho nele, tentar revivê-lo... uma cena muito triste."
Em 19 de março de 1976, ocorre o ato final: durante um vôo de Los Angeles para New York, pra participar de um show de sua banda solo, Kossof sofre uma embolia pulmonar, e morre. Terminava a trajetória de mais um dos grandes heróis da guitarra ingleses - esse, talvez, menos lembrado do que muitos outros.
Como última das grandes ironias e homenagens, amigos e familiares concordam que, em sua lápide, fincada no Summerhouse Cemetery de Londres, ficaria celebrizada frase que representaria tanto o seu momento de maior sucesso, como o significado da concretização de uma vida tão repleta de tribulação e sofrimento.
Ali, juntamente com a inscrição "Paul Francis Kossof: 1950 + 1976", está escrito:
"ALL RIGHT NOW"
(TUDO BEM AGORA)
--- x ---
Quer fazer parte do nosso grupo de WhatsApp, e receber nossas postagens e matérias fresquinhas, assim que saem, para ver direto no seu celular? Vem, acho que você vai gostar!
Nenhum comentário:
Postar um comentário