terça-feira, 26 de dezembro de 2023

RETRATOS FANTASMAS: DECLARAÇÃO DE AMOR AO CINEMA, A RECIFE... À MEMÓRIA

É com pesar que ficamos sabendo que o documentário Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, o nosso mais forte candidato a representar o cinema brasileiro na cerimônia do Oscar 2024, foi desconsiderado na escolha do júri da Academia para a disputa. Mas lembrando que resolveram premiar a insipidez de uma Gwyneth Paltrow ao invés da sensibilidade de Fernanda Montenegro em 1999, com a condecoração de melhor atriz daquele ano, não é nada de se estranhar, os absurdos desse mundo corporativo que prioriza o lobby ao invés da arte. E o Brasilzão vai ficando pra trás mais uma vez.

Faça então a sua parte, e prestigie essa belíssima obra no streaming mesmo - Netflix, enquanto está disponível. É uma tocante e pungente declaração de amor ao cinema, a Recife (cidade do diretor), e à memória, de forma poucas vezes vista anteriormente. 

A linha narrativa é dividida em três partes distintas: a primeira, dedicada à casa e bairro onde Kleber viveu a maior parte de sua vida; a segunda, dedicada ao decadente centro comercial de Recife e suas antigas salas de cinema; e a última, perfazendo um fecho que cruza o caráter religioso desses recintos e das igrejas, num preciosíssimo exercício de reflexão sincretista e nostálgica, que nos remete a tempos de outrora, de nossas próprias raízes, infâncias e puberdades.

É impressionante como Kleber consegue conjugar uma obra concisa com imagens, cenas de arquivo (referências diretas a seus curtas, e outros filmes seus, como "O Som ao Redor" e "Aquarius", tomam conta da tela), e uma própria auto-análise de sua carreira como ser humano e cineasta, emoldurando no caminho um painel repleto de referências sociais da vida em Recife, de seus lugares como eram e como ficaram, e da própria passagem do tempo - cruel, impassível e indolente, como ele só. Termina que "Retratos" se torna uma obra muito pessoal, e muito histórica ao mesmo tempo, no que se constitui em linguagem artística e simbiótica das mais curiosas. É o documentário 'por excelência', mas executado com nuanças de subjetividade notável.

Para aqueles mais sensíveis, testemunhar a impiedosa passagem que o tempo impõe às pessoas e aos lugares pode ter força emocional irresistível. O filme tem esse tino de causar na gente sentimentos de tempos idos (eu mesmo me lembrei demais dos antigos cinemas que eu frequentava, e tudo que vivia na época), e por mais que isso seja inevitável, pois o cinema tem tendência ao melodrama (como o próprio diretor comenta, a certa altura), ele consegue se equilibrar numa linha tênue entre a análise e a reverência, citando símbolos icônicos como os extintos Trianon, Art Plaza e Cine Veneza, gigantes de um passado glorioso e tão caro a Kleber e a outros cinéfilos da velha Recife.

Momento especialmente comovente: o saudoso Sr. Alexandre, operador de projetor que relata como seria o seu último dia de trabalho no cinema que vai fechar em 1992 (vai encerrar a última sessão com "chave de lágrimas"). Pela mente da gente passam pessoas, amigos, e momentos, que na hora causam um aperto no coração com essas palavras do seu Alexandre, elemento tão importante, e tão desconhecido, que com certeza causou muitas emoções e reflexões nas vidas de tanta gente que nem fazia ideia de quem ele era, com os filmes que ele projetava com carinho e devoção, em uma sala quente e pequena, sem ar condicionado, onde tinha que se deitar no chão sem camisa, para se refrescar um pouco. 

Seu Alexandre - o heroico projetor de cinema retratado no documentário

A cada momento, o diretor consegue nos fazer crer que o mundo mágico do cinema é, sim, um passaporte para a eternidade, e que seus 'personagens' - sejam eles um cachorro do vizinho de sua casa que latia sem parar, ou velhas salas de cinema sucateadas e abandonadas - sobrevivem agora em uma outra dimensão, do outro lado da tela, onde voltam por vezes para nos assombrar (ou maravilhar), fantasmas do passado que são.

Também testemunhamos os paradoxos históricos, o cinema chique inaugurado com os louvores da ditadura militar e elite social da época, numa festejada sessão do filme "Aeroporto", de 1970, e as suas imagens de hoje, desmazelado e modificado, condenado a se tornar um mini-shopping, "organismo estranho" que se instalou naquele templo de glórias antigas, como bactéria a invadir e contaminar o hospedeiro com a chaga dos tempos modernos e da devastação imobiliária monetizadora. É o célebre Cine Veneza, que em período áureo, transformou o musical "Hair" (de Milos Forman, 1979) em fenômeno recifense, assistido por mais de 200.000 espectadores, apesar das cenas de nudez e repressão da censura federal de 18 anos de idade, nos estertores do regime dos milicos.

Hair (1979)

O documentário termina com a já antológica 'sequência do motorista de Uber' - que carrega diversos simbolismos, na verdade. Seria a invisibilidade um poder inerente ao tempo, que faz desaparecerem nossas realidades, nossas referências, mas que obras majestosas como esse próprio "Retratos" tratam de repor, e fazerem aparecer novamente? Se tornam invisíveis como os próprios fantasmas das fotos e retratos - que desaparecem, e reaparecem, para depois desaparecer novamente. São como as memórias, fantasmagóricas e assombrosas - conforme sugerem as diversas passagens musicais, e até místicas e climáticas, que pontuam os lugares e paisagens recifenses, elevados à condição do protagonismo. 

De repente, simplesmente percebemos esse "poder" da invisibilidade como uma alegoria, e elegia honrosa, do próprio ofício cinematográfico. De cineastas caprichosos como esse Kleber Mendonça, que faz aparecer e desaparecer, e que ao fazer isso, mais uma vez nos mostra como cinema é arte técnica mas emotiva, a ciência e a mente trabalhando em prol da alma e do coração.

Tudo isso faz de "Retratos Fantasmas" uma homenagem muito bonita e agridoce à sétima arte, e um autêntico 'must see'. Você tem que ver, simplesmente isso.


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