Algo que tem a ver com a morte."
Um dos causos que o veterano e lendário ator norte-americano Henry Fonda (1905-1982) mais gostava de contar, em suas entrevistas ao longo dos anos 1970, era sobre como havia sido fascinante trabalhar com o diretor italiano Sergio Leone, de forma a desconstruir a sua imagem de "bom mocinho" dos faroestes e filmes mais antigos de sua carreira, encarnando pela primeira vez um vilão cruel e psicótico, e pregando a maior 'trolagem' nas plateias desavisadas.
Ele relatou essa história em sua famosa entrevista no programa de TV Dick Cavett Show, em 1972, e também para uma equipe de jornalistas, em 1975, de um documentário que estava sendo rodado: "Existia aquela cena em que chegamos, eu sou um matador com um bando de capangas, acabamos de alvejar uma família feliz, o pai e seus três filhos, em uma fazenda remota, somos filmados por trás e chegamos caminhando lentamente perto das vítimas, e Leone faz a câmera vir se aproximando, por trás de mim e se movendo ao meu lado, até se virar e focalizar o meu rosto, de forma que todos no cinema deveriam tomar um susto e gritar: - Meu Deus... É O HENRY FONDA!" .
Ele contava isso e dava uma bela gargalhada logo em seguida.
Desde filmes antológicos do cinema, como Vinhas da Ira (1940) e Paixão dos Fortes (1946), Fonda tinha sido o nice guy, o cara legal, o mocinho que sempre aparecia com bravura e altruísmo para salvar a parada. Mas a sua assombrosa atuação como o facínora Frank, em Era uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West, ou C'Era Una Volta il West, título original italiano, 1968), acabou com isso de uma vez por todas.
Para o pessoal da geração mais nova que ainda não viu, ou para quem mais queira conhecer, uma boa notícia é que, depois de uma temporada fora, o filme está de volta ao catálogo da Netflix.
O spaghetti western que seria considerado a obra-prima de Leone também se tornaria revolucionário e inovador em diversos outros quesitos, que lhe regalaram o status de filme cult, logo convertido em um clássico contemporâneo. Ele desconstruía as bases da narrativa comuns ao cinema de faroeste, até então, e parecia criar uma espécie de 'novo espetáculo', silencioso e soturno, mas onde fortes músicas e imagens ecoavam em um ritmo próprio, lento e sinuoso, com uma estrutura estética na qual bandidos e mocinhos jamais antes haviam sido apresentados ao público, não daquela forma.
Depois do sucesso avassalador da sua "trilogia dos dólares", em parceria com o ator Clint Eastwood (matéria especial aqui), o diretor Sergio Leone era aclamado como um dos mais criativos e bem-sucedidos artesãos da Sétima Arte na Europa, e o mercado norte-americano passou a disputar o seu passe para uma próxima produção. Mediante uma oferta polpuda da produtora United Artists (famosa pelos filmes do James Bond 007), Leone acabou recusando para aceitar os 3 milhões de dólares propostos pela Paramount Pictures, que eram um pouco menos do que a UA oferecia, mas em troca, lhe dava o que ele mais prezava: liberdade criativa, de roteiro e de contratação da equipe e elenco que ele bem entendesse para o seu próximo filme, cujas filmagens deveriam começar por volta de março de 1968.
Leone preparou correndo um script de 400 páginas com a ajuda de Sergio Donatti, baseado em uma história original desenvolvida por ele mesmo juntamente com seus colegas Dario Argento e Bernardo Bertolucci (futuros nomes de peso no cinema italiano), e do qual, surpreendentemente, apenas 14 páginas continham diálogos, sendo o restante descrições detalhadas de cenas, frases de efeito, ambiências e situações, que já davam uma noção do quão épica aquela narrativa pretendia ser: uma história de vingança de um "estranho sem nome" (mais um) contra um desafeto do passado, que cruza o caminho de uma viúva que herda uma grande propriedade no deserto, por onde irá passar uma nova ferrovia, motivo de cobiça e disputa entre poderosos.
Contada assim, parece ser uma história por demais mundana, simplória até. Mas aí reside a genialidade e o arrojo de Leone, ao criar camadas cinematográficas visuais e sonoras que preenchem o roteiro, e de uma beleza plástica tão impactante, que o espectador imerge em um velho mundo de foras-da-lei em decadência, dando lugar à nascente civilização americana, de uma forma praticamente impossível de não se emocionar.
Para o papel do pistoleiro procurando vingança, o lacônico personagem simplesmente denominado Harmônica (por estar sempre com uma na boca, soprando notas ameaçadoras), Leone tentou mais uma vez recorrer a Eastwood - entretanto, este já estava dando largada ao seu megaestrelato em Hollywood, finalmente despontando no cinema americano, e friamente lhe respondeu: "No more Italian westerns, Sergio" (Chega de faroestes italianos, Sergio). A escolha que provaria ser a mais acertada recairia, então, sobre outro ator que havia sido um eterno coadjuvante no cinema americano, mas que recentemente havia roubado o destaque em um filme francês chamado 'Adeus, Amigo', onde contracenara com Alain Delon: ninguém menos que Charles Bronson. Para o papel do assustador bandidão Frank, finalmente fora contratado o já citado Henry Fonda - um ídolo, que era sonho de consumo de Leone para seus faroestes desde que ele iniciara a carreira de cineasta, e para o qual os 250.000 dólares de seu cachê podiam agora ser pagos pela Paramount. Para o papel de Cheyenne, líder de uma gangue que é confundido com Frank e que acaba servindo como um coadjuvante de peso e alívio cômico da trama, outro grande ator americano da época foi recrutado: Jason Robards. E para o papel da viúva Jill, importantíssimo para a trama, fora chamada uma atriz que, na época, só perdia para Sophia Loren como símbolo da beleza europeia: a estonteante Claudia Cardinale.
Havia ainda um pequeno núcleo de personagens ligados ao bando de pistoleiros de Frank, que recebia ordens e grana do personagem Morton, interpretado pelo célebre ator italiano Gabrielle Ferzetti: uma figura de relevo, que servia para representar o progresso das estradas de ferro, com seus empresários endinheirados chegando e modernizando tudo, transformando ranchos e vilarejos em cidades, e dando fim à era mítica dos cowboys.
Harmonica, Frank, Jill e Cheyenne: em suma, esse era o quarteto cujas vidas se cruzavam tragicamente, e que conduzia a narrativa que estampava a morte e o confronto iminente a cada ampla tomada, cada longa e silenciosa sequência onde os tradicionais close ups dos personagens eram explorados, revelando, com semblantes e expressões tocantes, tudo aquilo que os esparsos diálogos estavam fadados a não entregar. Mas a música, em vários desses extensos e contemplativos takes, também aparecia - e era, mais uma vez, do habitual colaborador de Leone, o maestro (mestre) Ennio Morricone.
Assim como nos faroestes anteriores de Leone, a música de Morricone era uma personagem a parte, por si só. Mas aqui ele se superou: os 3 temas musicais predominantes de 'Era Uma Vez' - um centrado no confronto entre Harmonica e Frank, outro baseado no personagem Cheyenne, e o principal, dedicado à personagem Jill, belíssimo e muito famoso - eram poderosos, e constituem algumas das composições mais lindas, trágicas e melancólicas já criadas para um filme de western. Como bem pontuou um crítico da época: "o filme de Leone é uma ópera da morte, do fim de uma era, em que seus personagens vão caminhando rumo à inevitabilidade de seus destinos, com uma triste beleza de suas visões sobre aquilo que não conseguem mudar".
Curiosamente, quando foi lançado, em dezembro de 1968, e ao contrário do que se pensa hoje, 'Era Uma Vez...' não foi um grande sucesso - apenas na Itália e na França, onde foi imediatamente considerado um clássico pelo público e crítica especializada, e teve uma bilheteria monstruosa. Nos EUA, país onde Leone achava que o filme iria arrasar, acabou com um faturamento tímido de apenas 1 milhão e meio de dólares - fracasso, se formos considerar que os custos finais com a produção do filme acabaram chegando na casa dos 5 milhões. Isso acabou fazendo com que a Paramount desrespeitasse o conceito original de Leone, e o filme tivesse cortes, devido à sua longa duração original (170 min.), sendo adulterado e modificado para futuros relançamentos e tentativas de êxito em outros mercados.
Tudo isso causou uma amargura tão forte em Leone, que esse filme brilhante infelizmente se tornou, ao mesmo tempo, um das mais perfeitas e mais frustrantes obras para o seu criador, o condenando a um limbo de reclusão, do qual ele sairia e voltaria a se dedicar a novos projetos apenas uns bons anos depois. O seu último grande ato, que é considerado uma espécie de "resposta" dele a Hollywood depois de suas decepções, é um épico de gangsters de 1984, 'Era Uma Vez na América', com Robert DeNiro e James Woods, e seria finalizado por ele poucos dias antes de sua morte.
E em toda essa trama incrivelmente poética sobre o fim dos homens com revolveres ("uma raça antiga", como diz o personagem de Bronson, a certa altura), com seus personagens ameaçadores e heroicos, acabamos concluindo, após o inevitável duelo fatídico e as cenas de adeus pungentes e inevitáveis em seu desfecho, que a verdadeira personagem principal era, de fato, a viúva Jill - e aqui vai todo o mérito para os inesquecíveis e comoventes olhares lânguidos da musa Claudia Cardinale, em suas cenas finais.
Cabe lembrar que não era exatamente novidade deslocar o protagonismo de um western para a figura feminina: apesar de sua fama de inovador, Leone sabia muito bem surrupiar e esconder suas inspirações, e bebia de muitas fontes de faroestes clássicos do passado, como Johnny Guitar (1954) e O Proscrito (1943): histórias que de certa forma moldaram a personagem de Jill, onde mulheres fortes também conduziam a narrativa e mostravam que, se aquele mundo de homens brutos e perigosos se movia, entre dólares, mortes e desejos, era instintivamente por causa delas, e para elas.
Que bela homenagem às mulheres que Leone prestaria, afinal.
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