sábado, 25 de janeiro de 2025

AS INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS DE JIM MORRISON

 

'Conte-me onde sua liberdade repousa
As ruas são campos que nunca morrem
Liberte-me das razões pois
Você prefere chorar,
Eu prefiro voar'

(The Crystal Ship - 'O navio de cristal': disco The Doors, de 1967)


James Douglas Morrison (1943 - 1971), ou simplesmente Jim Morrison, o icônico vocalista, letrista e figura pop performática do grupo norte-americano The Doors, arautos contra culturais dos desvairados anos 60, passou a permanentemente se preocupar, a partir de certa altura de sua curta carreira, em relevar mais o caráter literário e intelectual de seu trabalho, como poeta e escritor, do que em continuar sendo somente o sex symbol rebelde vestido de couro, guinchando ou cantando sensualmente, e se esgueirando de modo inebriante e hipnótico diante do microfone, como nas mais intensas apresentações de palco de sua banda.

The Doors

Para Morrison, a partir de 1970, aquelas performances para prender a atenção da plateia eram águas passadas, principalmente a partir do escândalo em grandes proporções que foi o polêmico (e hoje lendário) show deles em Miami, de 1969 (veja mais sobre aqui). Em seu íntimo, para si próprio, ele ainda era o menino que havia crescido sob óculos, um tanto gordinho e tímido quando adolescente, e verdadeiro rato de biblioteca no colégio, explorando as prateleiras, lendo livros estranhos e recitando poesias sombrias e arcaicas que ninguém queria enfrentar.

Morrison e os Doors no hipnótico e avassalador show no Hollywood Bowl, de 1968



Quando se fala em reminiscências de grandes autores nas letras de Morrison, o primeiro nome que vem na cabeça é inevitavelmente do grande bardo inglês William Blake (1757 - 1827), cujo livro 'The Marriage of Heaven and Hell' (O casamento do céu e inferno), repleto de aforismos do autor acerca dos mistérios do homem e da natureza, propõe a seguinte afirmação: "Se as portas da percepção fossem descerradas, todas as coisas apareceriam para o homem como realmente são, infinitas". E daí veio a inspiração para o nome da banda de Morrison: The Doors (as portas).

A escrita de Morrison bebe diretamente na fonte de Blake, que tanto em prosa quanto em verso, elucubra imagens mentais contundentes no leitor, com sentenças cadenciadas repletas de força e sugestão. Não é a toa que, em uma das primeiras apresentações profissionais de Morrison com os Doors, ainda em 1966 na casa de shows de Los Angeles que os popularizou (Whiskey a Go-Go), o cantor recitaria durante as músicas dezenas de sentenças de Blake, tiradas do 'Casamento do Céu com o Inferno'... Infelizmente, não existem registros gravados desses instigantes concertos.


'Agora a serpente sorrateira anda
Em suave humildade
E o homem justo se enraivece
Em terras remotas onde perambulam leões'
(Blake)


'Alguns bandidos viviam ao lado do lago
A filha do ministro está apaixonada pela cobra
Que vive em um poço ao lado da estrada
Acorde, garota! Estamos chegando em casa'
(Morrison)


William Blake

Notáveis as métricas eloquentes dos versos de Blake e de Morrison, que volta e meia, invocavam forças ocultas de monstros e criaturas selvagens, como metáforas da crueldade humana - em alguns momentos, como nesse extrato de 'Casamento' (Blake) e da letra de 'Celebração do Rei Lagarto' (Morrison), as narrativas parecem complementares. Como poeta e também ilustrador do movimento romântico do séc. XIX, William Blake era um artífice de panoramas visuais com as suas palavras, e exercia enorme influência nos poemas compostos por Morrison, que a seguir eram musicados pela banda. Outra de suas famosas obras, que eram tanto escritas quanto ilustradas pelo mesmo, e da qual Morrison sabia longos trechos de cor, era 'Songs of Innocence' (Canções da Inocência).

O poema 'Spring', na versão original de "Canções da Inocência", escrito e desenhado por W. Blake

Tanto Blake quanto Morrison evocam imagens idealizadas de um mundo idílico, as sombras da alma que se opõem ao Éden imaculado, em toda a sua pureza inicial (O 'Paraíso Perdido', de Milton - poema épico de 1667), e que nada mais são do que a representação do homem atual, corrompido e degradado, o “civilizado ameaçador”, cujos sorrisos são esgares tão falsos e mortais quanto a lâmina! Cuidado com eles, diria Morrison... prefira os amigos rudes mas simples de coração, e sinceros, do que os "gigantes" educados e poderosos...


'Chega de dinheiro, chega de luxos

Este outro reino é de longe melhor (...)

Não irei aí

Prefiro um festim de amigos

Do que uma família de gigantes'


(The Severed Garden - 'O jardim cortado', J. Morrison)



Blake e Morrison tentam manter essa candura dos fortes de espírito e selvagens de coração, até mesmo enquanto infantes no alvorecer de suas consciências: Blake conta que tinha visões, enquanto criança, de anjos vagando entre os trabalhadores rurais da fazenda onde ele morava. Ouvia vozes, falava de uma percepção aguçada de sentir e ver coisas além da nossa compreensão. Da mesma forma, Morrison passaria a embaralhar sonho com realidade, ao fazer o relato de um episódio em que ele, quando menino, ao viajar de carro com os pais, se depara com um acidente terrível com um caminhão de índios na estrada, vê vários deles mortos, os corpos estirados no asfalto, e afirma que o espírito de um deles "pulou" para dentro dele, e o acompanharia pelo resto dos seus dias - essa alma indígena era o seu "eu artístico", que se manifestava em letras e nas viagens de peyote e LSD que Morrison faria, na fase inicial de sua carreira, inspirando partes de suas músicas e a dança xamânica que certas vezes praticava nos palcos (vide a performance de "The End" dos Doors, no show do Hollywood Bowl em Los Angeles, 1968).

Mas não só de Blake vivia Morrison. Outro autor "maldito" que ele adorava ler era o errático poeta, ensaísta e crítico francês Charles Baudelaire (1821 - 1867), o homem que elevou o binômio poesia/boemia a novos patamares em sua época, e fez da rebeldia e transgressão as suas marcas registradas diante da puritana elite burguesa, para o horror da sociedade da época; e obviamente, isso era uma das coisas que mais atraía a atenção do jovem e contestador Jim Morrison também.

Retrato de Baudelaire, tirado em 1865, dois anos antes de sua morte

Considerado a contrapartida do americano Walt Whitman no referente ao simbolismo e nascimento da poesia moderna, por incorporar diversos elementos da realidade e da vida e paradigmas do próprio autor em suas obras, Baudelaire começou arrepiando já em tenra idade, quando foi expulso de um dos mais renomados colégios de Paris por se recusar a mostrar um bilhete que lhe fora passado por um colega. Foi enviado pelo padrasto para uma temporada na Índia aos 19 anos, onde deveria viver sob a batuta de tutores austeros para corrigir seus modos viciosos - mas nunca chegou lá, conseguiu fugir escondido e, de volta a Paris, viveu em bares e bordéis até atingir a maioridade e ter acesso à herança do pai, que só não foi completamente dilapidada na esbórnia pois sua mãe conseguiu processá-lo na justiça como filho pródigo, incapaz de gerir seus bens, que passaram a ser controlados por um tabelião.

Às voltas com Jeanne Duval, uma decadente atriz haitiana que foi morar em Paris em 1842, musa de Baudelaire e com quem ele manteve um longo e conturbado romance durante vinte anos, ele lança aquela que é considerada a sua obra-prima em 1857, o escandaloso 'As Flores do Mal': revolucionária coleção de 100 poemas do autor que inauguram o estilo simbolista, e versam sobre temas como o pecado, o desejo, os vícios e o erotismo intenso - em suma, tudo o que Baudelaire vivia, mas de forma incrivelmente poética. O livro é considerado uma das obras mais ultrajantes da França, e acaba sendo censurado e retirado de circulação pelas autoridades: Baudelaire é condenado a pagar 300 francos de multa, e a editora Poulet-Malassis, mais 100, levando o seu dono à falência e a um auto imposto exílio.



A escrita simbolista e erótica de Baudelaire exercia influência nas letras e performances carregadas de teor sexual de Morrison e seus asseclas, os "reis do rock orgástico de Los Angeles" (segundo uma publicação da época)

Já no percurso final de sua vida, Baudelaire tentou uma espécie de "redenção", e se inscreveria para fazer parte da Academia Francesa de Letras, buscando um renome e reconhecimento que o fizessem tanto ser perdoado e reabilitado aos olhos de sua mãe (assim conseguindo, também, mais dinheiro), como ao mesmo tempo ser melhor apreciado pelo público e a burguesia em geral, para quem ele ainda carregava a pecha de "vulgar" e obsceno. Mas não teve muito prazo para isso: nessa época, em março de 1866, ele começa a apresentar os primeiros sintomas de afasia (perturbação mental que causa distúrbios na comunicação, o mesmo caso do famoso ator Bruce Willis) e também hemiplegia (paralisação de partes do corpo), logo tidas como consequências diretas de uma sífilis contraída anos antes, que avançava cada vez mais em seu organismo. 

Baudelaire falece em 31 de agosto de 1867, aos 46 anos. Em Morrison, a vivacidade de suas linhas e estrofes inebriadas de libido e exuberância, também conjugando os signos da natureza e as coisas do instinto animal (também tão caras a Blake), ressoariam plenamente.


'Cibele então fecunda em frutos generosos,
Nos filhos seus não via encargos onerosos:
Qual loba fértil em anônimas ternuras,
Aleitava o universo com as tetas duras.
Robusto e esbelto, tinha o homem por sua lei
Gabar-se das belezas que o sagravam rei,
Sementes puras e ainda virgens de feridas,
Cuja macia tez convidava às mordidas!'

(Trecho de 'Correspondências' - As Flores do Mal, C. Baudelaire, 1857)

Outra influência cara a Jim Morrison era o filósofo alemão Friederich Nietzche (1844 - 1900, recentemente abordado aqui).

Numa evolução lógica de ideias que se comunicavam e levavam a um ponto em comum para Morrison, vislumbramos em Nietzche aquela concepção de um mundo original onde a verdadeira natureza do homem é aquela não corrompida pela força gregária, a opressão do indivíduo pelo coletivo, o que para o autor, se resume na mais nefasta ação do Estado - "o mais feio dos monstros feios" - sobre o indivíduo, as formas de poder conjeturadas para retirar dele toda a sua integridade e personalidade. "O Estado Ideal é uma ideia que busca agrilhoar o ser humano em uma vida massificada".

Morrison no estúdio, durante as gravações de 'The Changeling' - disco L.A. Woman, 1971

As teses libertárias do autor, de se opor a toda e qualquer forma de dogma ou opressão, e se redescobrir como ser plenamente livre (o conceito do "super-homem" de Nietzche) estavam presentes em fortes composições de Morrison, como "When the Music's Over", "Five to One", e "The Changeling" - com suas corrosivas alusões ao cara que não se prende a nada e a lugar nenhum:

'Eu vivo na periferia
Eu vivo no centro
Eu vivo em tudo quanto é canto
Eu tinha dinheiro, e não tinha nada
Mas nunca fiquei quebrado
A ponto de não sair pra outra parada'

(The Changeling - 'O inconstante', J. Morrison)

Nietzche

'Três metamorfoses do espírito vos menciono: de como o espírito se muda em camelo, e em leão o camelo, e em criança, finalmente, o leão!

O espírito tornado besta de carga atira sobre si todos estes pesados fardos; e igual ao camelo, que se apressa para alcançar o deserto, também ele se apressa para alcançar o seu deserto.

E lá, na solidão extrema, produz-se a segunda metamorfose; o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade, e ser amo em seu próprio deserto.

Inocência é a criança, o esquecimento, novo começar, jogo, roda que gira sobre si mesma, primeiro movimento, santa afirmação. Tendo perdido o mundo, quer ganhar para si o seu mundo.'


(Trechos de 'Assim falou Zaratustra' - Nietzche)

Edição original de 'Also Sprach Zaratustra', de Nietzche

Morrison confabula a liberdade, a metamorfose do ser para o autêntico dono de si, ideia essa trabalhada com afinco por Nietzche no seminal 'Assim Falou Zaratustra' (1883). É o despertar do humano para o retorno ao estado de espírito original e a liberdade total e íntegra, sem concessões.


Chegamos então a um grupo de autores que desenvolve essas mesmas ideias, mas pertencente a um grupo mais contemporâneo e bem mais próximo de Morrison, geograficamente inclusive: estamos falando da geração beatnik, o movimento vanguardista de escritores norte-americanos que, a partir das décadas de 1940 e 1950, exploraria sobremaneira os aspectos de crítica social do sonho americano, o american way of life, suas mazelas e hipocrisias, assim como criaria também uma nova estética na escrita que jogava o texto de forma "jorrada" e frenética na cara do leitor - pra que tanta preocupação com a erudição da linguagem e os padrões formais, escreva como se fala e fale como se escreve, e dá-lhe os lendários Jack Kerouac e Willliam S. Burroughs com os seus incríveis 'On the Road' (Pé na Estrada, 1957) e 'The Naked Lunch' (O Almoço Nu, 1959), livros de prosa fluida e anfetamínica, saída diretamente das ruas, que se comunicavam com os artistas folk das canções de protesto (como Pete Seeger e um certo Bob Dylan), e se tornaram item de cabeceira para para todos aqueles que não se contentavam com o que os professores, pastores, autoridades e demais senhores da sociedade lhes diziam e queriam saber da VERDADE, grafada em maiúsculas.

Jack Kerouac

'Consigo sentir a tocaia se armando, sentir os movimentos da polícia lá fora mobilizando seus informantes demoníacos, cochichando ao redor da colher e do conta-gotas que jogo longe na estação Washington Square; pulo uma roleta, desço dois lances da escadaria de ferro e pego a linha 'A' direto para a parte alta da cidade… Uma bicha jovem e atraente, de cabelo escovinha e jeito de quem saiu de uma universidade de luxo para trabalhar como executivo no mundo da publicidade, segura a porta para mim. Sem dúvida acha que sou uma figura. Sabe como é essa gente: aborda garçons e taxistas falando de ganchos de direita e beisebol, chama o balconista do Nedick pelo nome. Um verdadeiro idiota, cara.'

(Trecho de 'O Almoço Nu' - William S. Burroughs)

William S. Burroughs

Para um ávido e irrequieto Jim Morrison, garoto criado em família conservadora com um pai almirante da Marinha dos EUA, não havia nada mais vibrante e atraente do que aquilo. A fala (e a vida) do jeito que ela é, sem farsas, o desespero pela vontade de viver intensamente sobre a qual aqueles caras falavam, como o desajustado Dean Moriarty do romance 'On the Road' de Kerouac, uma verdadeira máquina de palavras e de atitudes, tão tresloucadas quanto envolventes.

Logo, Morrison se interessa pela poesia louca e incendiária do também beatnik Allen Ginsberg, uma das lendas do movimento com o seu revolucionário poema 'Howl' (Uivo), lançado em 1956, que inaugurava um novo estilo livre e sem amarras, com versos separados apenas por vírgulas e atropelando uns aos outros com ritmo e intensidade, uma inovação estilística que logo iria permear também toda a produção cultural do folk e do rock apenas alguns anos adiante, com o advento da geração hippie:

'Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, famintas histéricas nuas, se arrastando pelas ruas dos negros na madrugada em busca de uma dose feroz, hipsters com cabeças de anjo ardendo pela antiga conexão celestial com o dínamo estelar no maquinário da noite, que na miséria e em farrapos e olhos vazios e chapados sentaram fumando na escuridão sobrenatural dos apartamentos de água fria flutuando pelos topos das cidades contemplando o jazz, que despiram seus cérebros ao Céu sob o El e viram anjos maometanos cambaleando nos telhados iluminados dos cortiços, (...)'

(Trecho de 'Uivo' - Allen Ginsberg)



Jim Morrison passaria os anos finais de sua vida tentando ser reconhecido como escritor sério. Num paradoxo vil com um de seus mestres, Baudelaire, ele sentia que "aprontara" demais enquanto astro do rock, e agora tudo o que queria era sossegar, ler e escrever normalmente, mostrar a sua poesia, chega de polêmicas, e talvez em alguns momentos voltar a cantar, e simplesmente declamar e cantar, também normalmente, fosse com a sua banda ou qualquer outra - a sua saída dos Doors, durante todo o período de lançamento do último álbum deles, o L.A. Woman (1971), já era dada como certa. Mas mesmo depois de partir para o seu idílio amoroso com a namorada Pamela Courson em Paris - férias de duração incerta, para espairar a cabeça e conseguir justamente se concentrar um pouco mais na escrita - Morrison ainda fez uma ligação telefônica para o baterista John Densmore, expressando o seu desejo de retornar e ainda voltar a cantar com eles.

Mas, como é sabido, Paris foi o fim de tudo, em 3 de julho de 1971.

Morrison conseguiu pelo menos, ainda em vida, editar e lançar dois livros completos de antologia de escritos e poesias suas - em alguns casos, letras que deveriam ser de músicas e ensaios inacabados: são The Lords - Notes on Vision, e The New Creatures, ambos de 1969. Em 1978, seus ex-companheiros dos Doors recolheriam gravações de Morrison feitas antes dele partir para Paris, recitando alguns de seus poemas, e gravariam acompanhamentos musicais por cima, lançando o curioso disco An American Prayer - que vendeu pra caramba, mostrando o sempre latente interesse dos fãs por material original do vocalista e seu grupo.

Morrison não presenciou o sucesso dessa empreitada. E nem o reconhecimento tardio pela mídia e pelos estudiosos da literatura americana, a partir dos anos 1980/90, de que a sua poesia se tornaria seriamente considerada uma das mais instigantes e visionárias já produzidas no século XX.


Já não temos dançarinos, os possessos.

A clivagem dos homens em atores e espectadores

é o fato crucial do nosso tempo.

Obcecam-nos heróis que por nós vivem e nós punimos

Ah! se todas as rádios e televisões fossem

desligadas, e todos os livros e quadros

queimados já, todas as salas de espetáculos encerradas...

Essas artes de viver por procuração...

Contentamo-nos com ofertas, na nossa procura de

sensações.

Deu-se a metamorfose do corpo enlouquecido

pela dança nas colinas

Num par de olhos rasgando a treva.


(Trecho de ‘The New Creatures’, J. Morrison)




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