Foi com grande satisfação que fiquei sabendo, semana passada, que a célebre e impecável 'Trilogia dos Dólares' está disponível para assinantes do serviço de streaming da Amazon Prime - e o que é melhor, sem pagar nenhuma taxa de adesão a mais de outros serviços parceiros do catálogo, para assistir (como ocorre com alguns outros títulos da plataforma).
É uma oportunidade de ouro, para amantes de spaghetti westerns clássicos como eu, de rever as 3 pedras fundamentais do gênero: Por um Punhado de Dólares (A Fistful of Dollars, 1964), Por um Punhado de Dólares a Mais (For a Few Dollars More, 1965), e Três Homens em Conflito (The Good, the Bad and the Ugly, 1967).
Nesses filmes, o que temos, é aquela que é considerada também uma santíssima trindade do bangue-bangue, reunida para consagrar essas obras: o diretor Sergio Leone, o maestro e compositor Ennio Morricone, e o astro Clint Eastwood, ainda no alvorecer de sua mítica carreira.
São três obras-primas que estabeleceram um novo modelo de se fazer filmes de faroeste, com um maior nível de realismo, violência estilizada, movimentos e enfoques de câmera inovadores, e uma montagem revolucionária, exaltando o "clima" de tensão e suspense entre os personagens, com longos closes (muitas vezes focando bem nos olhos), como forma de expressar as emoções que não estavam presentes nos diálogos - muitas vezes suprimidos ou inexistentes, diante de intermináveis planos e sequências, silenciosas ou musicadas.
E quando há música... ah, que música! O genial italiano Ennio Morricone (falecido em 2020), hoje tido já como um dos maiores e mais inovadores compositores de trilhas sonoras originais para o cinema, consegue transformar a trilha sonora dessa trilogia, assim como em outros faroestes e filmes com suas composições, em um personagem à parte, que pontua os focos de ação e praticamente "fala" com as cenas. Assobios melodiosos e marcantes, corais paródicos e orquestras retumbando o trotar de cavalos, emolduradas por interlúdios e acordes cortantes de guitarras elétricas (uma ousada inovação para a época): tudo isso faz parte do espírito dos lendários temas que Morricone criou e gravou para esses filmes. É difícil um terráqueo que ainda não tenha ouvido algum deles, de tão icônicos e constantemente citados e relembrados que são.
Morricone e o diretor Sergio Leone (falecido em 1989) eram amigos e se conheciam de longa data, estudaram no colégio juntos, e para aqueles dois jovens, nascidos e criados em Roma, o sonho de recriar e dar uma nova roupagem àqueles clássicos de bangue-bangue norte-americano que eles viam nas grandes telas, de velhos mestres como John Ford, Henry Hathaway e George Stevens, se tornaria uma realidade a partir da década de 1960.
Leone, um turrão e perfeccionista diretor, que desenvolveria seu estilo a partir de vários jogos de câmera, com tomadas inovadoras e contemplativas, e roteiros que às vezes beiravam o minimalismo (um mínimo de falas e maior enfoque na movimentação cênica dos personagens), lutava para encontrar um ator americano que desse certo destaque para o tipo de faroeste que ele queria rodar ali mesmo, na Itália, sendo que já estava começando naquela época a onda de atores americanos que, sem conseguir boas colocações e papéis importantes nas produções de Hollywood, acabavam aceitando contratos na Europa com chances de maior visibilidade, em obras de diretores franceses, italianos ou alemães. Fazia apenas três anos que o movimento da nouvelle vague francesa, com diretores como Jean-Luc Godard e Louis Malle, havia estourado na mídia da época, trazendo uma nova forma de se filmar histórias, mais simples e direta, e isso não passara desapercebido na fauna da Babilônia hollywoodiana.
Para o tipo sinistro do pistoleiro silencioso e sem nome, ás no gatilho e que carrega muitas mortes nos ombros, sempre chegando em algum vilarejo inóspito com interesse em dinheiro e ouro, Leone acabaria encontrando, no jovem ator americano Clint Eastwood, a figura ideal para o seu projeto. O calmo e esguio Eastwood - um sujeito de fala mansa que, não raro, era visto cochilando debaixo de seu chapéu, nos bastidores dos seriados western de TV, como Rawhide, e pequenos filmes dos quais participava, nos EUA - assinou um contrato simples de apenas 15 mil dólares para o primeiro filme, 'Por um Punhado de Dólares' - na época, valor considerado baixo, mas razoável para os padrões italianos de produções de baixo orçamento.
Para o papel, que exigia uma atuação minimalista, mas para a qual o ator caprichou nos olhares intimidadores e algumas expressões de desconfiança e desdém (que acabariam se tornando uma marca registrada), Eastwood deixou a barba por fazer e aperfeiçoou o tom de voz macio, mas ameaçador. Um grande problema nos sets de filmagem, hoje conhecido pelos biógrafos do cinema, era a barreira da língua: ele e Leone se valiam de intérpretes para se comunicarem e trocarem ideias na hora de filmar, pois nenhum deles entendia o idioma do outro. Que loucura.
Ninguém imaginava que 'Per un Pugno di Dollari' (título original do filme, na Itália) iria arrebentar nos cinemas, e vender tanto ingresso: lançado em 12 de setembro de 1964, se tornou o maior sucesso nas telonas da Itália daquele ano, e lançado com certo atraso nos EUA, chegou a render 4,5 milhões de dólares por lá, um recorde em filmes de faroeste, naqueles tempos. Um verdadeiro fenômeno para um filme que custara míseros 200.000 dólares!
Com um fiapo de roteiro, calcado no pistoleiro silencioso de Eastwood que chega em uma pequena cidade mexicana ameaçada por bandidos, e se vê enredado numa disputa entre duas famílias locais com as piores intenções possíveis, e muito sangue de vingança rolando na metade final do filme, "Por um punhado" provou que Leone e sua equipe estavam no caminho certo, e que aquele era um novo filão que valia a pena explorar, ou seja, a aventura continuaria. E que o digam também o sem-número de cópias, paródias e imitações malfeitas que também apareceriam depois na Itália, marcando de forma pejorativa o gênero faroeste espaguete...
Lançado em 18 de dezembro de 1965, 'Per Qualche Dollari in Piú' traz um roteiro mais bem trabalhado, com uma produção um pouco mais caprichada, e uma nova adição ao time de Leone, que abrilhanta consideravelmente a narrativa do filme - ao lado de Eastwood está agora outro ator americano, o impagável Lee Van Cleef, com sua cara de mau, figura que também havia estrelado um sem-número de pequenos papéis em faroestes americanos de sucesso (ele era um dos bandidões da quadrilha, no clássico Shane - Os Brutos Também Amam, de 1953), mas sem nunca conseguir chegar ao posto de protagonista, ou em nenhum papel de maior destaque. Agora, nos faroestes da Itália, assim como Eastwood, ele ganharia a sua merecida notoriedade.
Em "Por uns Dólares a Mais", Eastwood e Van Cleef dividem o protagonismo da trama, que novamente se desenrola em torno de conseguir fortunas em ouro e dinheiro, mas também em uma vingança pessoal de um deles, envolvendo o psicótico líder de uma gangue de bandoleiros, visceralmente desempenhado pelo excelente Gian Maria Volonté, na pele do assustador 'El Índio'. Com uma história mais bem desenvolvida que a do filme anterior, mas com todos os elementos clássicos presentes (os enquadramentos hipnóticos, a música onipresente de Morricone, a violência detalhista e o cinismo dos personagens), mais uma vez o sucesso é estrondoso.
Esse filme rendeu ainda mais quando lançado nos EUA, superando o box office do anterior (algo na casa dos 6 milhões de dólares), e pavimentou o caminho para que Leone fizesse aquele que seria considerado o terceiro filme da narrativa envolvendo dólares, vingança e cobiça, uma película que se tornaria uma de suas obras-primas, e o mais bem feito exemplar da trilogia...
Ao aparecer nas telas dos cinemas em 1967, 'Il Buono, il Brutto e il Cattivo' (o bom, o feio e o mau, que na tradução para o título em inglês acabaria trocando a sequência para "o bom, o mau e o feio"), trazia mais um ator americano que era eterno coadjuvante em sua terra natal, mas que se tornaria destaque a partir de agora: o talentosíssimo Eli Wallach. No papel do "feio", o malandro, parvalhão e desajeitado bandido Tuco, não é exagero afirmar que, na maior parte do tempo, Wallach acaba roubando o filme todinho para si, e se torna o verdadeiro protagonista de "Três Homens" - talvez, o único ator "de verdade" entre Eastwood e Van Cleef (que são mais carrancas de durões), capaz de despertar no espectador variadas emoções, do ódio à compaixão, da gargalhada ao mais profundo temor e apreensão. Ele resume, nos seus preciosos momentos em tela, toda a miséria humana da ganância e da dissimulação, agindo como um lobo intrépido ou um simpático cordeiro, ao sabor das conveniências.
Ter uma atuação de excelência como essa era o que Leone estava precisando, para cunhar o mais belo e bem acabado episódio de sua trilogia sanguinária sobre o Velho Oeste, além de um esquema de filmagem mais esmerado, praticamente de megaprodução, naquele que é o mais longo e caprichado dos 3 filmes: 2 horas e 41 minutos que, sinceramente, a gente nem vê passar, de tão cativante, cômica, violenta e absurda que é a sua trama, contando as desventuras dos três personagens do título. Com vários encontros e desencontros, eles se colocam em busca de uma fortuna em ouro enterrada em um cemitério, e da qual apenas um deles sabe o segredo de como encontrar: o "bom" (Eastwood, que pela primeira vez ganha um nome na trilogia, Blonde), o "mau" (Van Cleef, perfeito no papel de vilão!), e o "feio" (Wallach, o mais humano e desastrado - e justamente por isso, aquele com o qual a gente mais se identifica).
Épico total, esse filme permanece até hoje como um dos mais citados e reverenciados do mundo quando o assunto é "faroeste". Leone mais uma vez se superou, provou que era um cineasta de estilo próprio, em franco e total aperfeiçoamento de seu ofício, e encerraria ali a sua famosa "trilogia dos dólares" com Clint Eastwood.
Mas... dali a apenas um ano depois, ainda que sem uma nova parceria com Eastwood - que a essa altura, já estava voltando para o cinema americano, rico e celebrizado, pronto para alçar novos vôos - Leone e seu habitual parceiro Ennio Morricone começariam a trabalhar em um nova produção, mais uma vez um western, mas totalmente diferente e mais ambicioso, diferente de tudo que já havia sido feito: um tal projeto chamado Era Uma Vez no Oeste...
E isso é um belo assunto para outro dia.
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