quarta-feira, 20 de novembro de 2024

ELVIS E O PODER DA REINVENÇÃO

Saiu este mês, na Netflix, o documentário O Retorno do Rei - A Queda e Ascensão de Elvis Presley (2024). Dirigido por Jason Hehir, é uma excelente e bem conduzida produção, dessas que nos deleita com preciosas e raras imagens de arquivo, e que prima por fazer algo que sempre cai bem em documentários sobre personalidades históricas com longas trajetórias: faz um recorte detalhado de determinado período marcante na vida do astro. O filme pincela fatos determinantes da origem e do início da fama de Elvis, também fazendo relações com o contexto social e fatos da época, mas não enrola e vai direto ao ponto, cumprindo bem com a sua finalidade.

O documentário foca o momento conturbado em que Elvis sentiu que deveria 'reinventar' a sua imagem e dar novo rumo à sua carreira, que estava soterrada por contratos intermináveis de filmes chatos e de baixo orçamento, e gravações insípidas que já não conquistavam ninguém nas paradas. Tudo resultado de uma condução pra lá de equivocada de sua carreira nos anos 60, a cargo do seu empresário mala, o raposão velho Coronel Tom Parker.

Documentário foca momento em que Elvis decidiu 'reinventar' sua imagem

Movido por um intenso desejo de voltar a ser relevante para as novas gerações de então, que já se viam capturadas pela energia de um novo tipo de música jovem que surgiu na época - primeiro, com as bandas inglesas, Beatles e Rolling Stones, e logo mais no final da década, a ousadia psicodélica de The Doors, Jimi Hendrix e outros - Elvis tomou para si uma oportunidade única de transformação: um singelo especial de Natal, programado para ir ao ar em dezembro de 1968 pela rede de televisão NBC, e que o Coronel Tom Parker queria que seguisse o seu esquema, no ritmo de sketches e quadros musicais que praticamente imitavam o que Elvis já vinha fazendo naqueles filmes bobinhos. 

Elvis em 'Speedway' (O Bacana do Volante, 1968): não aguentava mais fazer filmes

Elvis resolve então, após conversas com os produtores da atração, mudar radicalmente o seu direcionamento, colocar plateia e palco na coisa toda para voltar a se apresentar ao vivo, e chama para tocar com ele novamente os velhos companheiros de sua banda original, de quando começou, na década anterior - estão lá os lendários Scotty Moore, na guitarra, e D.J. Fontana, baterista, caras que estiveram na gênese daquela febre revolucionária que incendiou os EUA e o restante do mundo, e se chamava rock and roll. Essa parte do show que foi ao ar mostrava um Elvis esbelto, bronzeado, e revigorado após um período de regime e preparação física, vestido de couro preto como os grandes rebeldes da motocicleta no cinema, empunhando seu violão e arregaçando nos vocais de clássicos como "Hound Dog", "Heartbreak Hotel", "Trying to Get to You", entre tantas outras, com sua banda de frente para uma pequena e extasiada plateia, que parecia nem acreditar no que estava vendo - uma lenda, um ícone, ressurgindo das cinzas com força total. 

Heartbreak Hotel

Tal apresentação é de um poder inigualável, e além de sugerir uma provável inspiração para muitos dos shows acústicos intimistas e mais improvisados, que se tornariam moda com os projetos Unplugged, da MTV (nos anos 90), mostra como ele ainda era relevante, ousado, e hipnótico como artista. Esse era Elvis - mais uma vez visionário, precursor, e incomparável.

Mas não era só isso, e a inovação não parava por aí: sob influência da intensa atmosfera política do final dos anos 60, repleta de movimentos sociais e contestações da juventude, com Martin Luther King, Bob Kennedy e as revoltas contraculturais, Elvis sentia a necessidade de se pronunciar sobre algo mais significativo, socialmente falando. É dessa forma que ele resolve gravar, como gran finale para o especial, a canção "If I Can Dream", verdadeiro hino da música de protesto composto por Walter Earl Brown, e encomendada pelo produtor geral do especial de TV, Steve Binder

Elvis e o produtor Steve Binder

Binder, aliás, é figura importantíssima na concepção do especial, que viria a se chamar Elvis Comeback Special '68 - e provavelmente, essa é uma das maiores falhas do documentário da Netflix, que dá pouco destaque à sua importância para que as coisas saíssem do jeito que Elvis realmente queria, e não vai muito a fundo na importância de "If I Can Dream" para aquela ocasião. "Pedi a Earl que simplesmente escrevesse 'a melhor música do mundo', totalmente baseado nas conversas que eu e Elvis tivemos a respeito do assassinato de Luther King, e usando aquele mote do célebre discurso dele, 'I have a dream' (eu tenho um sonho), e o que Earl fez foi simplesmente fantástico, uma das melhores letras para Elvis, e que refletia exatamente a sua filosofia e pensamento... Elvis era muito ligado nas questões sociais, mas não se expunha muito por causa do Coronel".


O filme de Baz Luhrman em 2022 é que acabou retratando melhor a emoção e a importância que essa parceria entre Elvis e o produtor Steve Binder tiveram, para a criação do musical - e reza a lenda que, já na primeira tomada, Elvis cantou "If I Can Dream" com uma performance tão perfeita e incontida, que membros da banda simplesmente ficaram emocionados e com os olhos cheios de lágrimas assim que terminou. Mesmo assim, o rei teve um surto de perfeccionismo com a gravação, e fez vários takes, sendo que o último, considerado o definitivo, foi feito no estúdio com as luzes apagadas, e Elvis se entregando de forma vigorosa e física à interpretação, chegando a ficar de joelhos no chão.

Interessantíssimas são também as participações, no documentário, de gente do ramo artístico que é super por dentro de várias fases da trajetória de Elvis, como os cantores Bruce Springsteen e Billy Corgan (da banda Smashing Pumpkins)eles acrescentam análises certeiras e apaixonadas sobre essa fase do rei do rock, bem como Baz Luhrman, diretor da mais recente e bem sucedida cinebiografia dele (Elvis, de 2022, com Austin Butler no papel principal), e da própria viúva de Elvis, a famosa Priscilla Presley. Sensacional a cena em que ela e Luhrman assistem o trecho de um dos filmecos de Elvis nos anos 60, e comentam que é um crime o que fizeram com a  carreira dele naquela fase.


Em suma, O Retorno do Rei é uma belíssima homenagem a um dos momentos mais notáveis e brilhantes da carreira de Elvis Presley. Foi uma situação excepcional, em que ele retomou as rédeas do seu próprio destino, e conseguiu novamente ser o cara inovador, criativo e instintivo que era antes, dotado de um dom natural e um talento inigualável para a música legítima e de raiz: os verdadeiros blues, country e rock n' roll que ele tanto dominava, se distanciando de falsos apelos comerciais e danosos para o seu nome. Foi o momento em que ele voltou a ser autêntico novamente, o verdadeiro Elvis!

É uma pena que esse impulso durou tão pouco. Tivesse ele realmente conseguido se livrar da dependência (e da ingenuidade) que tinha em relação ao seu nocivo e dominador empresário, sabe lá Deus que grandes obras ele ainda teria legado à humanidade. Fica aqui um alerta para muita gente que continua presa a vida inteira em relacionamentos tóxicos...

Como Elvis sentiu de novo a emoção da volta aos palcos, devido ao especial de TV, sabemos que logo depois ele quis emendar uma turnê empolgante de retorno aos shows ao vivo em vários lugares dos EUA, a partir do ano seguinte (1969), e que se estenderia pela década de 70. Isso fez com que abandonasse definitivamente a sua carreira no cinema, e voltasse a se dedicar integralmente à música e aos discos. Mas, novamente ludibriado pelas artimanhas matreiras de Tom Parker, ele acabou sendo confinado em uma longa e interminável série de shows em hotéis e cassinos de Las Vegas, que além de se comprovar exaustiva e enfadonha - talvez até pior do que a sua temporada de filmes nos anos 60 - terminou por minar a saúde do rei do rock, preso em uma série de contratos que, hoje sabemos, tinham o intuito de saldar as exorbitantes dívidas de jogo do seu empresário.

E assim se deu a fase final da carreira de Elvis, nos anos 70.

If I Can Dream



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sábado, 16 de novembro de 2024

O MUNDO DAS ILUSÕES

Nota: Este texto já estava sendo escrito quando, no dia 13 de novembro de 2024, Francisco Wanderley Luiz, 59 anos - popularmente conhecido como "Tiu França", em Rio do Sul (SC), onde concorreu para vereador, nas eleições municipais de 2020, mas perdeu - paramentado como o personagem Coringa, e carregando diversos artefatos consigo e em seu carro, detonou com a ajuda de timers todos os explosivos na Praça dos 3 Poderes, em frente ao STF, morrendo ele mesmo com graves ferimentos na cabeça e do lado direito do corpo, durante o ataque, já classificado como um ato de terrorismo. Francisco era de extrema direita, filiado ao PL de Santa Catarina, e as suas intenções de praticar alguma espécie de 'ato libertário' e radical já vinham sendo expressadas em suas redes sociais há um bom tempo. Mais uma vez, a realidade consegue chocar mais do que a ficção, e engendrou uma trágica coincidência com o texto desta postagem, visto que aparentemente se tratou de um ato isolado, e Francisco pode ser considerado agora mais uma vítima da terrível polarização política que o país vive, e que atinge mentes mais frágeis. Ao longo de nosso texto, as ideias aqui abordadas serão ilustradas com alguns dos prints de suas bizarras declarações.


E aí? Você é de direita ou de esquerda? Fale agora, ou cale-se para sempre.

Praticamente lhe asseguro de que é melhor se calar para sempre. Não fale, não se declare. Não ceda às paixões de uma luta ideológica que, a todo instante em que irrompe, já renasce velha, careta, e ultrapassada. Esquerda e direita, vermelho e azul, Krushchov e Nixon - essas dualidades não tem mais razão de ser. Acreditar que há uma distinção tão nítida e solidamente bilateral assim é querer ceder a uma ilusão que, ainda hoje, é financeira e sociologicamente muito bem utilizada pela classe política e seus partidos. Sim, exatamente isso que eu disse: financeiramente (uso do dinheiro alheio) e sociologicamente (manipulação, "entrar na mente", fazer a cabeça das pessoas).

Me arrisco a dizer que, caso não existissem as redes sociais de hoje, e a tecnologia não tivesse evoluído as mídias de comunicação e interação entre os humanos da forma que fez e vem fazendo - agora, um pouquinho mais amplificada e acentuada com a participação dos robozinhos IA - provavelmente, não teríamos o embate tão acirrado que ainda se vê entre as correntes ideológicas do capitalismo e do comunismo.

A recente vitória de Donald Trump para presidente, nas últimas eleições nos EUA, agitou as mídias sociais e veio a recender, ainda que em uma menor escala, algumas pequenas grandes discussões que já andavam um pouco apagadas aqui no Brasil, há uns tempos atrás. Agora, volta-se a falar no predomínio de uma ideologia aqui, em detrimento de uma ideologia acolá.

O mundo virtual empolga até os mais retraídos, estimula falas, opiniões e discussões (ainda que sejam as piores possíveis), e transforma em verdades as mais loucas crenças, teorias e percepções. Florescem os debates e se intensificam as animosidades. Vigiai: interesses, dos mais ocultos, geralmente estão na gênese de todas elas.

A tal rivalidade entre direita e esquerda se tornou a cartilha pela qual partidos políticos organizam as suas diretrizes para arrebanhar mais filiados e eleitores. Na maioria das vezes, não é preciso nem declarar tão diretamente a referida orientação: tendências e expressões como "progressismo" ou "liberalismo" já entregam a vinculação de políticos e legendas a uma determinada corrente. 

Mas, ainda que estejamos imersos em tantos ideais nesse mundo das ilusões, atentem: nada disso é motivo para o fim de amizades antigas ou rupturas familiares; nada disso deve levar a violências, insultos ou agressões de qualquer natureza. O que vemos acontecer no cotidiano, infelizmente, vai na contramão disso. A polarização vem se tornando a arma utilizada por setores da classe política para manipular interesses, racionais ou não.

Pois tudo se trata, tão somente, de uma dualidade que se convencionou natural no mundo, desde a criação de linhas específicas do pensamento sócio-político e econômico, no desenvolvimento das nações, a partir de certo ponto da história da humanidade. Mas linhas que se embaralharam de uma tal forma, nos dias atuais, que muito ainda ocorrerá de subversão e alteração das ordens já estabelecidas.

Basta prestar atenção, que não existe mais direita sem uma certa contaminação da esquerda - assim como não existe mais esquerda sem contaminação da direita. Os extremistas do capitalismo e do livre mercado tomaram para si as falas iradas típicas das revoltas de classe e indignação com as autoridades, tão caras antes aos bolcheviques, cubanos de Guevara e outros que levantavam a bandeira vermelha do martelo e da foice, usam essa revolta e essa fala de indignação das massas para arrebatar votos, para conquistar pessoas humildes, para deliberar teorias do "Estado ladrão", da queda das taxas e impostos e do lucro da salvação, quando na maioria das vezes não conseguem desinchar o Estado tecnocrata que eles mesmos alimentaram com acordos escusos entre os poderes instituídos (sem falar no quarto poder, especialíssimo, que é a imprensa). Por outro lado, os esquerdistas que chegam ao poder se desvirtuam, se banham nas delícias da soberba, da ostentação e do consumismo, esquecem ou renegam seu passado e suas bases de luta, são como sindicalistas pelegos, estão às voltas com as nababescas reuniões e jantares nas távolas longas e suntuosas de empresários dos mais diversos ramos, empreiteiros e banqueiros. Envergam e se inclinam nos mesmos vícios daqueles antes tão criticados por eles.

E não estou falando que só no Brasil que é assim.

Pensar na perfeição utópica de um regime puro, seja ele de direita ou de esquerda, que funcione na prática, já era de uma ingenuidade estupenda há décadas atrás; hoje, é se inebriar de um engodo quase mortal.

Na democracia, a esquerda e a direita são as duas pernas que andam, e sustentam o corpo. Quando se desarmonizam de tal forma, que o desequilíbrio ameaça tudo, a queda ocorre, o corpo cai e padece. A realidade que a sociedade tem que passar a encarar é essa: cada corrente deve ter seu valor e autonomia, e uma depende da outra para ser o que é, se autenticar, bem como para manter um mínimo de coerência, observação, crítica e oposição nas coisas do Estado, sem radicalismos. Absolutismo corrói a ordem e as instituições. Uma perna que não anda no mesmo passo que a outra faz o corpo mancar, e tombar - isso causa dor e sofrimento, as consequências são inevitáveis.

Existem áreas nefastas e tenebrosas do poder público, onde ocorre justamente o citado anteriormente acerca da tal 'contaminação' das ideologias: são os intestinos da politicalha. Não da verdadeira política. Mas da politicalha - porca, suja e indecente, cheia de interesses corrosivos da coletividade, onde os conchavos mais sórdidos são fechados, e as fatias do bolo são repartidas com opulência e individualismo, sem nenhuma reserva moral.

Como uma forma de confirmar todas essas coisas, segue uma entrevista recente, em um canal de podcast, de alguém que é do próprio meio, mas que em nosso entendimento, já possui uma certa independência para realizar certas afirmações, bem como uma aparente repulsa de certas práticas presenciadas, em sua vivência como parlamentar - estamos falando de Alexandre Frota.

Ele declara que vai encerrar o seu mandato como deputado federal na Câmara em Brasília, pois foi eleito vereador de Cotia, no interior do Estado de São Paulo, nas últimas eleições municipais, e compareceu no podcast Chupim, da Rádio Metropolitana (SP), no dia 31/10/2024, para fazer um relato dessa experiência, e conversar um pouco sobre o panorama político da atualidade.

Veja o que ele fala, especialmente, entre os 25 e 38 minutos do vídeo, e que norteia muito do que está sendo comentado aqui:

Você pode não gostar do indivíduo, pode até achar que se trata de hipocrisia, e que ele não deveria falar assim de um meio no qual ele conviveu durante um bom tempo, aquela fauna toda de Brasília. Mas Frota passa uma impressão de estar sendo sincero, e descompromissado com todo o "castelo de cartas" pelo qual passou em seu último mandato. Ele tem uma visão ácida e aguçada no que relata sobre as reuniões de acordos de seus colegas do Distrito Federal, e que acreditamos ser uma realidade crua, vil, e lamentável. E que mostra que, para uma grande parte de nossos representantes eleitos, existe um elemento diante do qual, de fato, não sobrevive nenhuma ideologia, seja ela qual for: $$$.

Em espírito mesmo...


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domingo, 10 de novembro de 2024

O OCASO DE UMA LENDA

 

Phil Spector foi um dos maiores produtores musicais de todos os tempos. 

A sua fenomenal criação, que causou alvoroço nos anos 60 nos EUA, fazendo todo mundo querer gravar com ele dali em diante, era uma "estratégia sonora" produzida em estúdio, apelidada de wall of sound ("parede de som"), e consistia em gravar nos arranjos, como acompanhamento para músicas pop básicas, uma pequena orquestra, formada por músicos tocando as mesmas notas juntos, nos mesmos instrumentos - por exemplo, ao invés de gravar um só piano, três pianistas, tocando juntos três pianos ao mesmo tempo - e ainda engordando esse som com um pouco de câmara de eco e reverberação, o que causava uma atmosfera realmente sensacional nas músicas.

Phil Spector

Para verificar, vide duas das mais famosas produções de Spector a alcançarem o topo das paradas na época: "You've Lost That Lovin' Feeling" (1964), com os Righteous Brothers, e a grandiosa "River Deep, Mountain High" (1966), de Tina Turner.




Durante o período 1962-1968, a sua reputação no mundo da música chegou a um nível tão alto, que não era raro ver, nos discos lançados, o nome dele como produtor, escrito em letras maiores e com maior destaque do que os dos próprios artistas que ele produzia - ele, de certa forma, iniciou no mercado uma tendência nunca antes vista, do produtor superstar. Isso demonstrava também o senso de superioridade que ele mesmo criava em torno de si, numa forma de romper com o seu complexo de inferioridade e traumas advindos do passado, e gerando uma aura de poder, autoridade e dinheiro nos trabalhos em que ele participava.

Mas a carreira dele já havia começado bem antes, como jovem guitarrista e cantor que formava um dos membros do trio The Teddy Bears, lá na época de ouro dos anos 50, emplacando um hit que tocou em tudo quanto é lugar dos States: "To Kknow Him is to Love Him" (1957). Essa música era, inclusive, interpretada pelos Beatles em apresentações ao vivo, conforme consta no álbum deles Live at BBC, e isso nos leva a dizer que tanto eles quanto os Rolling Stones eram grandes fãs do trabalho dele, e em algum momento de suas carreiras se envolveram profissionalmente com a expertise de Spector - os Beatles, especialmente, entregando a Spector as músicas do projeto Get Back para serem todas remixadas por ele, e lançadas no disco Let it Be (1970), e diga-se de passagem, muito a contragosto de Paul McCartney, que não gostou nadinha do resultado "sinfônico" de Spector em suas músicas.

Os Teddy Bears - Spector é o cara da direita, com o ursinho escuro


Mas aqui começam as obscuridades, a parte sinistra. 

"To Know Him is to Love Him" (Conhecê-lo é amá-lo), o título da famosa canção dos Teddy Bears, foi retirado da lápide do pai de Spector, que se suicidou inalando fumaça de escapamento do seu carro, quando ele era ainda bem menino. Isso levou a uma infância traumática para Spector e sua irmã, criados a partir de então com dificuldades pela mãe deles, que para completar, ainda passou a apresentar sérios distúrbios mentais. Assim como a irmã de Spector, que logo depois, em sua juventude, também começou a apresentar quadros de esquizofrenia e bipolaridade.

E as desastrosas e tenebrosas consequências trágicas de toda essa instabilidade, que acabou inevitavelmente afetando Phil Spector e seu psicológico também, são detalhadamente apresentadas em Spector (2022), ótimo documentário presente no catálogo da Disney Plus, e que ainda acompanha minuciosamente o episódio terrível da acusação e prisão de Spector por ter matado com um tiro a bela atriz de filmes B de Hollywood, Lana Clarkson.

Lana Clarkson

Os transtornos de Spector apontavam para um senso de dominação e perfeccionismo nele, que podiam ser preponderantes para o seu sucesso como produtor, mas que desaguariam, futuramente, em um episódio terrível. Ou seja, indícios já existiam para o que ia acontecer, e muito. A série é bem clara nisso, e os depoimentos de várias pessoas que conheceram e conviveram com ele durante a sua vida e carreira dão uma demonstração bem clara da espiral descendente de falta de discernimento de que ele sofria. O grande problema, como em diversos fatos da vida de muita gente, é ter tempo e faro para perceber as coisas que estão erradas e indo mal...

A cantora dos Teddy Bears relata a primeira bronca que sofreu de Spector durante as gravações de "To Know...", justamente quando ela não estava conseguindo atingir uma nota mais alta da música. As girl groups dos anos 60, como The Crystals e The Ronettes, famosas por estourarem com hits pop bobinhos produzidos por Spector, relatam as estranhezas e obsessões do produtor no convívio com elas. E vemos também os casos de artistas que passaram por sufocos mais extremos, já na reta final da carreira de Spector como produtor, como o cantor canadense Leonard Cohen, e os lendários Ramones (com o famoso disco End of the Century, 1980), que chegaram a trabalhar sob a ameaça de armas que Spector apontava para eles, os obrigando a ficar no estúdio e gravar takes e mais takes das músicas, até que ele ficasse satisfeito com o resultado. Spector era um aficionado por armas, organizando uma coleção particular de revólveres e pistolas das mais diversas marcas e calibres desde os anos 60.

As Ronettes e Spector posam para as câmeras, com a participação muito especial de um amigo convidado que estava passando pelo estúdio: George Harrison, dos Beatles (1964)

A situação mental de Spector, já delicada, acabaria sendo muito agravada pelo uso de álcool e drogas, algo que se intensificou bastante para ele na virada dos anos 60 para os 70. É ele, inclusive, o ricaço doidão que aparece no início do clássico filme da contracultura Easy Rider (Sem Destino, 1968), puxando uma "farinha" passada pelo motoqueiro interpretado por Peter Fonda. Uma cena que refletia momentos reais da vida de Spector, na época.

Phil Spector em 'Sem Destino'(1968)

Com uma aposentadoria de luxo por todo o sucesso de suas históricas gravações, o mundo do milionário Phil Spector começou a desabar na noite de 3 de fevereiro de 2003, quando ele saiu para a night com seu motorista (um brasileiro, Adriano de Souza), como costumava fazer, rodando pelos clubes e boates de Los Angeles atrás de encontros com alguma beldade.

Nessa ocasião, ele foi parar na House of Blues, onde Lana Clarkson estava tentando reerguer sua carreira como atendente e recepcionista da casa, refazendo contatos e tentando contratos, após um tempo em que se restabelecia de um acidente com fraturas que a deixou longamente afastada de suas atuações em filmes de baixo orçamento - ela já havia trabalhado em diversas produções de horror, capa e espada e ficção científica, muitas produzidas pelos estúdios do lendário Roger Corman. Nos últimos tempos, Lana tentava a participação em programas de TV, e estava revelando um excelente tino para o stand-up e a comédia.

Lana Clarkson em 'As Amazonas na Lua' (1987), comédia de Joe Dante

Não se sabe bem ao certo o que conversaram naquela noite, mas Lana acabou aceitando um convite de Spector para conhecer a sua casa, a verdadeira réplica de um castelo medieval, localizada em uma das áreas de condomínio mais chiques de L.A. Por volta das onze e meia da noite, levados pelo motorista dele em sua luxuosa limusine, os dois chegavam ao local.

Se passaram algumas horas com eles a sós dentro da enorme propriedade, e já beirava a uma hora da manhã quando o motorista Adriano começou a ouvir barulhos de vozes altas dentro da casa, no tom de uma discussão. Ele fez menção de se aproximar e dar uma olhada no que estava acontecendo, mas o receio não deixou. E de repente, ele simplesmente ouve um estampido - um tiro. 

Spector nos anos 70, e seu perigoso hobbie: ele tinha uma coleção de armas

Após ver o seu patrão sair transtornado da casa, gritando que Lana está morta (e aparentemente dizendo: "acho que a matei"), Adriano liga apavorado para a polícia, que quando chega, encontra um cenário tétrico na sala de estar da casa, bem próximo da entrada: o corpo de Lana Clarkson está desajeitadamente caído em uma poltrona, o revólver calibre 38 utilizado no chão, próximo dos pés dela, e alguns pedaços de seus dentes espalhados por ali. O tiro havia acertado em cheio o seu rosto.

O julgamento se tornou um caos, para não dizer um circo midiático sem proporções. Spector, já escondendo a calvície há alguns anos, aparecia nos julgamentos com visual e perucas espalhafatosas e medonhas, numa cara de louco sem igual. Sua defesa se baseou na tese de que Lana cometera suicídio, por mais estranha que fosse a alegação de uma pessoa se matar mirando a arma para o próprio rosto, e os depoimentos do motorista brasileiro acabaram jogando a favor de Spector, visto que por problemas com a linguagem, ele declarou no tribunal que não havia entendido direito o que Spector falara assim que saiu assustado da casa - a suposta frase "acho que a matei" perdeu seu peso no intenso vai-e-vem dos depoimentos e perícias que se sucederam.

Para o desespero da família de Lana, o primeiro julgamento de Spector resultou em absolvição, devido às robustas estratégias maquinadas pela forte equipe de advogados contratada naquele primeiro momento. Mas a revolta popular, de amigos e familiares, juntamente com a do promotor do caso, foi tão grande, que ele conseguiu a anulação do primeiro julgamento, e pediu um segundo - havia uma cultura reinante na Los Angeles da época, de que nenhuma estrela famosa da mídia era realmente incriminada. E neste segundo julgamento, sim, Spector foi enfim condenado pelo assassinato de Lana Clarkson.

Sentenciado a uma pena de 19 anos de prisão, cuja execução começou em maio de 2009, Spector ainda conseguiu cumprir doze anos, antes de falecer por conta da covid-19, em 2021. Algumas de suas derradeiras fotos, na cadeia, davam até medo de olhar. O cara parecia reduzido a um ser caquético, deformado, um retrato humano de sua própria degeneração e sofrimento. O Smeagol, de "Senhor dos Anéis", perdia para ele.

O triste fim de um cara que sabia, como ninguém, gravar e lançar músicas de sucesso, que marcaram gerações. O autêntico ocaso de uma lenda.


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terça-feira, 5 de novembro de 2024

O NINHO DE LENDAS DA GUITARRA

 

Quando se fala de mestres da guitarra elétrica, que moldaram o som do instrumento no que ele é, e representa na área do rock e da música pop, até hoje (descontando Jimi Hendrix, diga-se), é notório para muitos que não há como se deixar de falar em um grupo britânico essencial, dos anos 60 do século XX: The Yardbirds.

Isso porque é uma banda que teve a incomparável primazia de ter abrigado - e obviamente, propulsionado a carreira - de 3 grandes gênios da guitarra: ninguém menos que Eric Clapton (em recente tour pelo Brasil, que tem emocionado todo mundo que assistiu aos shows), Jeff Beck (brilhantíssimo, já falecido), e Jimmy Page (esse, todos sabem né, "apenas" o papai do Led Zeppelin).

Os Yardbirds começaram na Londres de 1962 como The Metropolitan Blues Quartet, essencialmente um grupo de blues bem básico, que ia na linha de vários outros combos de garotos da época, fascinados pelo som do blues americano de Chicago e Mississipi - o som de caras como Muddy Waters, Elmore James, Howlin' Wolf  e John Lee Hooker, que cruzava o Atlântico nos discos importados dos EUA, disputados a tapa pela molecada inglesa. Inicialmente, eram apenas o vocalista loirinho Keith Relf, com seus amigos Paul Samwell Smith no baixo, Chris Dreja na guitarra, e Jim McCarthy na bateria, formando o tal quarteto. Mas com a entrada do primeiro guitarrista solista do grupo, Anthony 'Top' Topham, viraram um quinteto, e em pouco tempo mudariam o nome do grupo para Yardbirds - uma gíria da época para "pássaros perdidos" ou "vagabundos", "andarilhos", saída de um trecho do lendário livro On the Road, de Jack Kerouac. Topham ficaria pouco tempo com o grupo, e sairia por conta de outros interesses, deixando a vaga para que o desfile de mestres começasse a passar pelo grupo... E se o nome da banda remetia a "pássaros", então podemos inferir que se tratou de verdadeiro ninho para aqueles que estavam predestinados a voar no som das seis cordas. E bem alto.

Cada um desses três espetaculares músicos (Clapton, Back e Page) deixou a marca de sua passagem pela banda com fases bem distintas, e é isso que passamos a analisar a partir de agora.


Fase Eric 'Slowhand' Clapton (1963 - 1965)

Da esquerda p/ direita: 
Keith Relf, Chris Dreja, Jim McCarthy, Paul Samwell Smith, e um bem jovem Eric Clapton

Com Eric Clapton, os Yardbirds ganharam notoriedade no circuito sessentista do blues de Londres, pois o então jovem guitarrista era um reverente e dedicado estudioso do estilo, e a sua forma precisa, mas ao mesmo tempo manhosa e cheia de feeling em soltar acordes e solar (ainda que de forma bem tímida na época, iniciante) abrilhantava o som da banda, e lhe rendeu um apelido curioso, criado pelo empresário do grupo, Giorgio Gomelski: slowhand ("mão lenta"), um jeito irônico de se referir à sagacidade do músico em tocar o instrumento. 

Esses foram os tempos em que eles desbravaram o circuito de casas noturnas famosas, como o Marquee (onde os Rolling Stones haviam começado) e o Crawdaddy Club, de onde saiu o histórico registro de uma pequena turnê onde acompanharam, como banda de apoio, o mítico bluesman americano Sonny Boy Williamson - de quem se diz ter sido parça de ninguém menos que o lendário Robert Johnson. 

São também dessa época as gravações dos primeiros singles da banda, que se tornaram sucesso: "I Wish You Would", "Good Morning Little Schooolgirl" e "I Ain't Got You" (esta com um dos primeiros grandes solos de Eric Clapton) - todos de 1964. 

I Ain't Got You (1964)

No início de 1965, por insistência de Gomelski (o empresário), acaba acontecendo uma tentativa de virada na carreira da banda, e como consequência disso, a primeira grande ruptura: uma composição de um renomado artista pop da época, Graham Goudlman, é encaminhada para o grupo gravar. Se trata de "For Your Love". Uma guinada mais para o lado do som pop romântico, com uma espalhafatosa introdução tocada num órgão estilo cravo (harpsichord). Gomelski, vendo o sucesso de outros grupos ingleses (como os Beatles, Rolling Stones e Animals) ocorrer cada vez mais com a adaptação deles a outros estilos de som, mais pop e com menos influências ásperas do blues, passa a insistir para que os Yardbirds mudem também o seu direcionamento, visando lugares mais altos nas paradas. E isso desagradou em cheio uma figura, diretamente: Eric Clapton.

Sobre a turbulência desse período, ele declararia anos mais tarde: "Como o bom purista do blues que eu era, eu tinha uma ilusão de ser o salvador do mundo, de mostrar e divulgar esse som a todos, como uma espécie de porta-voz. Continuar fazendo parte do jogo, com aquela gravação de 'For Your Love', soava como uma traição para mim, e representava uma pura e simples conversão de apelo comercial para a banda, isso praticamente me obrigava a sair e continuar minha missão fora dali, longe daqueles holofotes". 

For Your Love (1965)

Em outras palavras: os incomodados que se retirem. E assim fez Clapton.

"For Your Love" é gravada e lançada em março de 1965, e como esperado pelo empresário deles, foi um sucesso estrondoso - o primeiro, de fato, a realmente ressoar o nome do grupo através do Atlântico, levando eles a serem ouvidos por muitos na América, pela primeira vez. Mas apenas em pequenos trechos se ouve a guitarra de Clapton, fazendo o ritmo - nas partes da ponte (virada) e do refrão. Foi o máximo que ele topou participar, e assim que terminaram as sessões, pediu sua demissão do grupo. Os outros membros também gravaram a coisa meio a contragosto, cientes de que era um tiro no escuro, um passo em falso que talvez estivessem dando, por insistência de gravadora e executivos. O vocalista Keith Relf, um dos mais apegados ao estilo original do grupo, também ficou meio cabreiro, e foi um dos que mais sentiu a partida de Clapton.

Mesmo assim, seguiram adiante. O futuro era muito incerto, a partir de agora. 

O que fazer sem o guitarrista que estava levantando o nome do grupo, e era um de seus músicos mais admirados e bem conceituados? Logo em seguida, Clapton buscaria se aprofundar ainda mais nas raízes, fazendo parte da banda de blues de John Mayall, e lançando com eles, naquele 1965, um dos mais festejados discos do ano, John Mayall and the Bluesbreakers - com o qual a fama de Clapton chegaria ao ponto dele figurar em pichações feitas por fãs nos muros de Londres que diziam, simplesmente, Clapton is God ("Clapton é Deus").

Aquilo era o tipo de coisa que deixava os Yardbirds com uma tremenda cara de tacho. Mas, de repente, surgiria do nada uma incrível luz no fim do túnel.


Fase Jeff Beck (1965 - 1967) 

Jeff Beck

A solução para a saída de Clapton veio através de contatos de estúdio com outro jovem guitarrista que estava sendo bastante elogiado em suas apresentações com um grupo da parte oeste de Londres, The Tridents: Jeff Beck

Acontece que Beck também vinha fazendo alguns bicos como músico contratado de estúdio, e o mais curioso de tudo isso é que os Yardbirds inicialmente foram convidar o mais renomado guitarrista de estúdio da época, que vinha gravando com praticamente todo mundo do pop rock inglês durante o período 1964-1967: um incansável, tímido e sorridente rapaz magrinho, chamado Jimmy Page. Page não se interessou pela oferta do grupo, mas prontamente indicou aquele colega seu, Jeff Beck, dizendo que tinha um pressentimento de que o estilo dele cairia como uma luva no som da banda. Mal imaginava ele que, pouco tempo depois, estaria novamente às voltas com os Yardbirds...

Foi Beck entrar nos Yardbirds, e em questão de poucos dias, parecia que um novo mundo de possibilidades havia começado para o grupo. De repente, soava como uma outra banda. Ele realmente mexeu com todas as estruturas - o que Clapton tinha de conservador, conciso e mais temente aos ritmos e solos do blues, Beck tinha de inovador, experimental, cioso de explorar sonoridades mais inóspitas da guitarra e incorporar mais peso e efeitos, caprichando no uso de pedais fuzz, microfonia e distorções, e desafiando a banda a ousar nos arranjos e ritmos para acompanhá-lo.

Arrasando ao vivo com Jeff Beck (o segundo, da esquerda para a direita)

Ele, de certa forma, amplificou e melhorou uma tendência dos Yardbirds que havia se tornado marca registrada da banda: o célebre rave up, que pode ser descrito como uma progressão rítmica, presente em várias das canções deles, onde todos os instrumentos vão sendo tocados com uma batida que vai se acelerando e ficando cada vez mais alta, num crescendo arrebatador e vibrante, até estourar com uma grande nota - esse tipo de som pode ser ouvido nas várias versões da banda para "I'm a Man" (cover de Bo Diddley), bem como no início do clássico hit "Shapes of Things" (1966).

Exibicionista e extremamente seguro de si, Beck logo fez a cabeça de todos no grupo para que "subvertessem" o conceito de bandinha pop que o empresário Giorgio Gomelski queria incutir neles (o que, obviamente, já causou alguns atritos entre eles), e foi o guitarrista que acompanhou eles na primeira turnê norte-americana do grupo, evento desbravador e muito importante por conta de 2 grandes fatores: primeiro, tocando nos EUA, eles influenciaram por lá um sem número de futuras bandas de garagem que, ao verem o barulho que os Yardbirds estavam fazendo, com aquele fantástico guitarrista, trataram de seguir e aprimorar tal pegada, formando aquela que poderia ser conhecida como a geração nuggets, ou a primeira onda de bandas punk de garagem dos Estados Unidos: gente como Blues Magoos, The Chocolate Watchband, Amboy Dukes, e um pouco depois, The Stooges e MC5. 

E segundo: assim como os Rolling Stones já haviam feito, os Yardbirds invadiram os estúdios onde clássicos dos pioneiros do rock americano já haviam trabalhado, em busca de um ambiente propício para gravarem seus novos sons, e dali saíram com dois petardos memoráveis, que se tornariam standards de seus shows dali para sempre. Nos EUA, durante o mês de setembro de 1965, gravaram essas obras-primas: sua versão avassaladora de "The Train Kept-a Rolling", e a épica "You're a Better Man Than I".

Voltando para a Inglaterra, mais sessões de gravação, e mais hits matadores: "Evil Hearted You", "Still I'm Sad", e uma das músicas mais famosas do grupo, "Heart Full of Soul", onde o genial Beck emula o som de uma cítara na guitarra que comanda a canção. Fecham o ano com mais uma revolução captada em estúdio: a já citada "Shapes of Things", gravada em dezembro e que sairia no comecinho de 1966, com uma enxurrada de feedbacks e solos hipnóticos de Beck nunca antes ouvida em qualquer outra banda, e que aliada a uma batida marcial e certeira do grupo, moldam a base para um monte de coisas que viriam a ser feitas na seara do hard rock alguns anos adiante.

Heart Full of Soul (1965)



Shapes of Things (1966)

Os Yardbirds estavam simplesmente naquela que é considerada por muitos como a sua melhor fase. Voando bem alto. O problema seria se manter no ar por mais tempo daquele jeito...


Fase Jimmy Page (1966 - 1968)

Jimmy Page

1966 começa para a banda com fôlego total, entre agendas de shows e datas de estúdio. Novas ideias para canções surgem, e um punhado delas irá compor o próximo álbum dos Yardbirds, que será gravado nos estúdios Advision, em Londres, entre abril e junho  de 1966: o memorável Roger, the Engineer, cuja capa representa a fina ironia da pop art inglesa da época, com uma lendária caricatura de um dos engenheiros de som do estúdio (Roger Cameron), desenhada pelo próprio guitarrista rítmico Chris Dreja, e que ficou famosa. 

Disco 'Roger The Engineer', de 1966

Nos EUA, o disco sairia com uma capa diferente, e intitulado com o nome de uma de suas mais marcantes canções: Over Under Sideways Down. O som tonitruante e enérgico do grupo se faz presente num conjunto de músicas que incluem a já citada faixa, "Lost Woman", "He's Always There", "What Do You Want", "Nazz Are Blue" (com vocais de Jeff Beck), além de momentos mais experimentais, como "Turn Into Earth" e "Hot House of Omagararshid".

Logo, o futuro do grupo começaria a ser redefinido, com uma situação casual que ocorreu durante um concerto deles em Oxford, na provável data de 12 de junho de 1966. Nesse dia, Jimmy Page foi assistir ao show dos Yardbirds, que estavam fazendo sensação e sendo muito elogiados com as músicas novas. Depois da apresentação, aproveitou para ir aos bastidores cumprimentar e parabenizar os amigos, e qual não foi sua surpresa ao se deparar com um clima meio estranho.

Yardbirds com a clássica formação de Jimmy Page e Jeff Beck juntos

Page flagra o exato momento em que o baixista Paul Samwell-Smith está anunciando que vai deixar a banda. Cansado da vida na estrada, ele pretende partir para uma carreira mais discreta como arranjador e produtor de estúdio. O sempre irrequieto Jeff Beck começa a dar umas olhadas para Page enquanto ouvem a conversa. Logo, ele puxa Page para um canto. Ele sabe que um dos principais problemas de Page, que o impediam de seguir uma carreira na estrada, e se entregar logo ao sonho de se tornar um rockstar, eram os seus problemas de saúde quando mais jovem: as constantes infecções de garganta, febres, os problemas respiratórios - mas agora, depois de um tratamento intensivo que ele havia feito com um renomado médico de Londres, parecia estar bem, e livre dos seus males.

"Mas e se voltar, e se eu ficar mal novamente?", reclama um inseguro Page. 

"Não vai voltar. Você está bem, vai ficar bem. Olha pro Keith - o cara tem praticamente só um pulmão funcionando, vive com bombinha de asma, tem dia que está com problemas terríveis com a garganta e cantando mal pra burro, mas vive gravando e se apresentando!" - retruca Beck, que sempre citava e ficava impressionado com a garra do vocalista dos Yardbirds, Keith Relf. 

"Anda. Entra logo pra banda. Vamos tocar juntos." - Beck força a manivela.

"Mas baixo? Vou entrar substituindo o baixista? Meu negócio não é o baixo, você sabe..." - Page argumenta. De fato, era estranho pra ele.

"Por enquanto, vai ser mais só pras apresentações ao vivo. Mas isso muda. A gente dá um jeito. Logo vai mudar. Vamos comandar juntos as guitarras."

Page em seu primeiro show com os Yardbirds, pegando o jeito no baixo...

Dito e feito. Após o discurso persuasivo de Beck - e dos outros caras, que também gostavam muito dele e de suas ideias criativas - Jimmy Page entrou para os Yardbirds.

Já no comecinho de julho daquele ano, os Yardbirds adentram o estúdio para as gravações do single "Happenings Ten Years Time Ago", com o novo line-up, e exatamente durante essa fase de produção, Page passa a contribuir com tantas ideias para guitarra na nova música, que o outro guitarrista Chris Dreja, intimidado, simplesmente chega para ele e propõe assumir o baixo dali em diante, confessando, apesar disso, que precisaria de um tempinho para treinar e se adaptar ao novo instrumento, de forma que Page e Beck ficassem só com as guitarras, se revezando entre solos e ritmos. 

Nesse momento, segundo muitos historiadores da banda, é que já começa a surgir a cabeça gerenciadora de Page, passando a lentamente influenciar e tomar as rédeas do grupo, num movimento que futuramente direcionaria para a definitiva criação do Led Zeppelin: compreensivo, ele chega a um acordo com Dreja, se compromete a continuar segurando o baixo nos shows ao vivo, enquanto Dreja se aprimora no instrumento, e em estúdio, ele já assume as guitarras junto com Jeff Beck, e chama para tocar baixo nas gravações um colega seu, que colaborava em várias sessões de outros artistas quando ele precisava. Somente um cara galeguinho e boa pinta chamado John Paul Jones... É dele o baixo que ouvimos em "Happenings".

Com uma lendária e possante formação com dois guitarristas do calibre de Page e Beck, solando e se revezando no ritmo juntos, sai então em outubro de 1966 o compacto "Happenings Ten Years Time Ago" / "Psycho Daisies", que é um daqueles momentos brilhantes e mitológicos que não mais se repetiriam, duas pedradas em forma de som que contem, nos dizeres da crítica da época, um "apocalipse de guitarras".

Coincidindo com o lançamento do single, os Yardbirds comparecem nos sets de gravação de um filme que o conceituado cineasta italiano Michelangelo Antonioni está rodando em Londres, o icônico Blow Up - Depois Daquele Beijo. Antonioni havia convidado o grupo para uma participação especial em um momento chave da trama, quando o protagonista está perseguindo pistas e suspeitos durante um concerto de rock, e para o qual a banda The Who havia sido chamada, mas que por problemas de agenda, não puderam comparecer.

Cena de 'Blow Up' (1966), com os Yardbirds

Este momento eternizado em celuloide contém Page tocando o baixo defronte as câmeras, pois nos shows a plateia ainda estava acostumada a vê-lo nessa posição, e é interessante vê-lo rindo sem parar do absurdo das cenas, pois Antonioni queria porque queria um daqueles momentos típicos dos shows do Who, em que Pete Townshend terminava despedaçando sua guitarra. Como não tinha Townshend nem The Who, a quebradeira sobrou pros Yardbirds e Jeff Beck... que filmou a cena meio sem jeito, mas utilizou um modelo barato da Hofner Senator, e acabou cumprindo o que o contrato pedia para a tal sequência do show. Detalhe: a música tocada era a mesma "Train Kept-a Rollin'" que a banda tanto executava, mas por motivos de direitos autorais, Keith Relf escreveu correndo uma outra letra, e rebatizou a canção como "Stroll On". E tremei: essa versão que ouvimos, gravada em estúdio poucos dias antes, continha também a avalanche de guitarras faiscantes de Page e Beck, duelando nos solos.


Em novembro de 1966, tem início uma nova turnê do grupo pelos EUA. É quando acontece justamente o que muitos não esperavam (mas alguns mais próximos já imaginavam): a saída de Jeff Beck.

Existe uma conjunção de fatores para Beck ter largado os Yardbirds - que, na verdade, largaram ele! Na prática, Jeff Beck foi demitido do grupo, numa decisão anunciada pelo empresário, por conta de uma alegada má vontade em continuar acompanhando os Yardbirds nas turnês. Já se falou muito em um histórico atraso no avião que ele ia tomar separado dos outros durante a turnê, e que acabou não chegando ao seu destino, fazendo com que desmarcassem shows. Também muito se falou na época sobre o guitarrista não estar em boas condições de saúde, e assim ficar trancado em quartos de hotéis, enquanto a banda o esperava para passagens de som que nem acabavam acontecendo.

Mas a verdade concreta, para a maioria dos biógrafos do saudoso guitarrista, é o simples fato de que, excêntrico e intenso, sempre querendo ir além e explorar mais, atrás de novas sonoridades, Beck já estava se cansando da combinação que os Yardbirds faziam, e já vinha pensando em sair e montar o seu próprio projeto havia algum tempo (o que viria a ser o Jeff Beck Group, com Rod Stewart e Ronnie Wood em suas fileiras). Isso, aliado ao fato dele sempre querer extravasar e alongar os seus solos ao vivo - o que deixava o empresário Gomelski furioso, por sempre querer forçá-los a um sonzinho mais convencional e comportado, e a banda em um autêntico estado de tensão - acabou levando todas as partes a uma situação de ruptura inevitável. E os Yardbirds adentrariam o ano de 1967, então, de volta à situação de fundação da banda: tornaram-se um quarteto novamente, com apenas um guitarrista.

Os Yardbirds da era Jimmy Page: Dreja, McCarthy, Page e Relf - um quarteto novamente

Os dias finais: Se você pensa que para o astuto Jimmy Page era um problema estar sozinho e ser agora o único guitarrista do conjunto, tendo que segurar a barra tanto nos ritmos quanto solando, posso apenas te dizer: ledo engano! Exímio instrumentista, capaz de se desdobrar de várias formas nas apresentações, e talentoso e obstinado conhecedor de técnicas e maneiras incríveis de abordar a guitarra também em estúdio, com toda a sua experiência acumulada, agora sim, o homem estava mais fominha do que tudo para subverter os Yardbirds em algo que ele pensava que a "banda perfeita" deveria ser. 

Page já idealizava o que viria a se tornar o Led Zeppelin, ainda nos Yardbirds, imediatamente após a saída de Beck. Julgava ter então o terreno livre para colocar em prática suas experimentações, e pensava em ele mesmo produzir os próximos discos do grupo, alterando sua sonoridade para aquilo que ele planejava. Mas... havia alguns obstáculos no caminho. E grandes.

A banda com Page num de seus últimos shows, em 1968

O primeiro deles era a colher de pau de empresário e executivos de gravadoras, que ainda teimavam em ter uma visão conservadora dos Yardbirds, e continuavam esperando que eles cedessem aos caprichos de soar como mais uma bandinha pop e comercialóide, com canções que atendessem as convenções da época e fossem feitas no formato certinho de single com refrões grudentos e fórmulas mágicas para grudar nas rádios. Ou seja, exatamente o que afastou Clapton do grupo na época de "For Your Love", estava rondando e continuava a acontecer. O segundo fator, e este sim talvez o mais grave, é que a cada ensaio, gravação ou apresentação que se passava, mais Page ficava convencido de que sim, talvez Beck realmente estivesse certo, aqueles caras eram meio quadrados demais e não iriam conseguir "furar a bolha", ousar, tentar novas texturas e estruturas sonoras, estariam sempre presos demais num tipo de sonoridade mais antiquada que logo estaria condenada ao esquecimento, com a evolução do peso, da psicodelia em ascensão, e das novas vertentes progressivas que passavam a surgir em vários grupos da época. Bandas emergentes daquele período, como o Jimi Hendrix Epxerience, e o Cream (com ele de novo humilhando, Clapton!) deixavam os pacatos Yardbirds a anos luz no quesito ousadia, comendo poeira.

Além de tudo, Page inevitavelmente pensava: os vocais de Relf não são realmente tão fortes, se ele tivesse alguém que realmente conseguisse "rasgar" o blues na garganta; McCarthy tenta, mas ele não tem aquele peso, aquela batida violenta que seria a ideal na bateria; e o Dreja, poxa, esforçado também, mas seu baixo não sai do mesmo, não tem aquela atmosfera e criatividade, se no lugar dele estivesse um cara como o Jonesy (John Paul Jones), hum...

'Dazed and Confused', com os Yardbirds (1968)

As ideias para o revolucionário som de sua futura banda já borbulhavam na cabeça de Page, e algumas das músicas que seriam trabalhadas por ele na fase final dos Yardbirds eram prova inconteste disso: "Dazed and Confused", em uma versão já bem próxima do que se tornaria, fez parte do repertório dos shows do grupo durante toda aquela época; "White Summer", demonstração instrumental do guitarrista de suas práticas acústicas folk no violão, com inspirações indianas, depois se converteria em "Black Mountain Side" no primeiro disco do Zeppelin; a belíssima canção "Tangerine" já existia como "Knowing That I'm Losing You", mas com letra original e diferente de Keith Relf, apesar de não ter sido lançada oficialmente pela banda; e vários solos em músicas de Page com os Yardbirds, como "Think About It" e 'Puzzles", seriam reaproveitados quase que nota por nota, em músicas com a galera Plant/Jones/Bonham.

'Knowing That I'm Losing You' (Tangerine), 1968

Uma das últimas grandes decepções de Page com os Yardbirds (e dos próprios, afinal), infelizmente, foi o lançamento do único álbum com o guitarrista à frente da banda - o seu derradeiro da discografia clássica oficial, Little Games, de 1967. A produção totalmente equivocada de um cara como Mickie Most, extremamente careta e autoritário, desagradou Page profundamente.

Não é um disco ruim, de forma alguma - mas se esperava mais do mesmo, em grande parte devido ao fato de, na época, o grupo ainda ser considerado um ato bombástico em suas apresentações ao vivo - eles soavam mais pesados devido às orientações de Page, e ele já estava usando efeitos doidos na guitarra com arco de violino.

O que prejudicou a banda, mais uma vez, foi um pretenso direcionamento no sentido de uma música mais pop e inofensiva, e que já não trazia mais tanto impacto face a outros grupos e performances da época. A música-título era boa, mas esbarrava nessa impressão, ao passo que "Goodnight Sweet Josephine" (lançada como compacto em duas mixagens diferentes, uma para a Inglaterra e outra para agradar mais ao mercado americano) soava como um pastiche. Outros momentos, como "Only the Black Rose" e "Tinker, Tailor, Soldier, Sailor" eram mais instigantes, mas teimavam em se ater a estruturas previsíveis. Bom mesmo era quando o grupo voltava às suas raízes mais blues, chacoalhando com "Drinking Muddy Water", uma releitura da tradicional "Rollin' and Tumblin'".

A recepção morna ao disco foi o prego final no caixão dos Yardbirds, cujos membros já demonstravam cansaço em continuar com a proposta da banda, e começavam a se interessar por empreitadas diferentes. Já no início de 1968, a banda resolve se separar. Dreja, seguindo suas tendências de apego às artes visuais, acabou se aprofundando no mundo da fotografia profissional. Já Relf e o baterista McCarthy, grandes amigos, formariam inicialmente um duo, chamado Together, com uma proposta mais folk e lírica, mas que não daria muito certo - o que estimulou Relf a chamar sua irmã Jane, e montar uma banda progressiva que faria história, nada menos que o Renaissance, onde ele iria cantar junto com ela e também tocar guitarra, mas isso já é uma outra história...

E Page? Bem, Page ficou com os escombros dos Yardbirds... que se resumiam a um monte de datas a cumprir ainda, na Europa. Giorgio Gomelski havia caído fora, já era, foi procurar outras bandas para agenciar, agora que ele vira que não iria faturar mais nem um centavo com os Yardbirds. Para a sorte de Page, ele deixou em seu lugar seu assistente, um brutamontes que faria uma sólida amizade com Page, e que seria responsável por muuuita coisa dali em diante, um tal de Peter Grant. E Page foi caçando talentos para reformular o grupo, que seria chamado de New Yardbirds a partir de então, e cairia na estrada para realizar os tais shows. Primeiramente, chamou o admirado baixista John Paul Jones, já conhecido seu, e ele querendo experimentar esse negócio de ser membro de uma banda de verdade, de cara topou, chega de ser o rapazinho do estúdio. Tentou alguns vocalistas, tentou alguns bateristas. Queria Keih Moon, que andava brigado com The Who - mas logo Moon fez as pazes e voltou. Caça daqui, caça dali. Nada.

Então, um belo dia, ele ouve falar de uns caras, de uma banda riponga meio doida, chamada Band of Joy, de Birmingham. Chama eles para fazer um teste, conferir se os elogios sobre eles podem mesmo ser comprovados. Esses caras são Robert Plant (voz) e John 'Bonzo' Bonham (bateria).

Junto com Jones, Page chama eles para ensaiar numa pequena sala, num bloco de apartamentos próximos de um estúdio onde já havia tocado. A música inicial de teste é "The Train Kept-a Rolling". O grupo começa a "descer a lenha" no volume máximo, e...



Sabemos que os New Yardbirds não iriam utilizar esse nome.


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