domingo, 10 de novembro de 2024

O OCASO DE UMA LENDA

 

Phil Spector foi um dos maiores produtores musicais de todos os tempos. 

A sua fenomenal criação, que causou alvoroço nos anos 60 nos EUA, fazendo todo mundo querer gravar com ele dali em diante, era uma "estratégia sonora" produzida em estúdio, apelidada de wall of sound ("parede de som"), e consistia em gravar nos arranjos, como acompanhamento para músicas pop básicas, uma pequena orquestra, formada por músicos tocando as mesmas notas juntos, nos mesmos instrumentos - por exemplo, ao invés de gravar um só piano, três pianistas, tocando juntos três pianos ao mesmo tempo - e ainda engordando esse som com um pouco de câmara de eco e reverberação, o que causava uma atmosfera realmente sensacional nas músicas.

Phil Spector

Para verificar, vide duas das mais famosas produções de Spector a alcançarem o topo das paradas na época: "You've Lost That Lovin' Feeling" (1964), com os Righteous Brothers, e a grandiosa "River Deep, Mountain High" (1966), de Tina Turner.




Durante o período 1962-1968, a sua reputação no mundo da música chegou a um nível tão alto, que não era raro ver, nos discos lançados, o nome dele como produtor, escrito em letras maiores e com maior destaque do que os dos próprios artistas que ele produzia - ele, de certa forma, iniciou no mercado uma tendência nunca antes vista, do produtor superstar. Isso demonstrava também o senso de superioridade que ele mesmo criava em torno de si, numa forma de romper com o seu complexo de inferioridade e traumas advindos do passado, e gerando uma aura de poder, autoridade e dinheiro nos trabalhos em que ele participava.

Mas a carreira dele já havia começado bem antes, como jovem guitarrista e cantor que formava um dos membros do trio The Teddy Bears, lá na época de ouro dos anos 50, emplacando um hit que tocou em tudo quanto é lugar dos States: "To Kknow Him is to Love Him" (1957). Essa música era, inclusive, interpretada pelos Beatles em apresentações ao vivo, conforme consta no álbum deles Live at BBC, e isso nos leva a dizer que tanto eles quanto os Rolling Stones eram grandes fãs do trabalho dele, e em algum momento de suas carreiras se envolveram profissionalmente com a expertise de Spector - os Beatles, especialmente, entregando a Spector as músicas do projeto Get Back para serem todas remixadas por ele, e lançadas no disco Let it Be (1970), e diga-se de passagem, muito a contragosto de Paul McCartney, que não gostou nadinha do resultado "sinfônico" de Spector em suas músicas.

Os Teddy Bears - Spector é o cara da direita, com o ursinho escuro


Mas aqui começam as obscuridades, a parte sinistra. 

"To Know Him is to Love Him" (Conhecê-lo é amá-lo), o título da famosa canção dos Teddy Bears, foi retirado da lápide do pai de Spector, que se suicidou inalando fumaça de escapamento do seu carro, quando ele era ainda bem menino. Isso levou a uma infância traumática para Spector e sua irmã, criados a partir de então com dificuldades pela mãe deles, que para completar, ainda passou a apresentar sérios distúrbios mentais. Assim como a irmã de Spector, que logo depois, em sua juventude, também começou a apresentar quadros de esquizofrenia e bipolaridade.

E as desastrosas e tenebrosas consequências trágicas de toda essa instabilidade, que acabou inevitavelmente afetando Phil Spector e seu psicológico também, são detalhadamente apresentadas em Spector (2022), ótimo documentário presente no catálogo da Disney Plus, e que ainda acompanha minuciosamente o episódio terrível da acusação e prisão de Spector por ter matado com um tiro a bela atriz de filmes B de Hollywood, Lana Clarkson.

Lana Clarkson

Os transtornos de Spector apontavam para um senso de dominação e perfeccionismo nele, que podiam ser preponderantes para o seu sucesso como produtor, mas que desaguariam, futuramente, em um episódio terrível. Ou seja, indícios já existiam para o que ia acontecer, e muito. A série é bem clara nisso, e os depoimentos de várias pessoas que conheceram e conviveram com ele durante a sua vida e carreira dão uma demonstração bem clara da espiral descendente de falta de discernimento de que ele sofria. O grande problema, como em diversos fatos da vida de muita gente, é ter tempo e faro para perceber as coisas que estão erradas e indo mal...

A cantora dos Teddy Bears relata a primeira bronca que sofreu de Spector durante as gravações de "To Know...", justamente quando ela não estava conseguindo atingir uma nota mais alta da música. As girl groups dos anos 60, como The Crystals e The Ronettes, famosas por estourarem com hits pop bobinhos produzidos por Spector, relatam as estranhezas e obsessões do produtor no convívio com elas. E vemos também os casos de artistas que passaram por sufocos mais extremos, já na reta final da carreira de Spector como produtor, como o cantor canadense Leonard Cohen, e os lendários Ramones (com o famoso disco End of the Century, 1980), que chegaram a trabalhar sob a ameaça de armas que Spector apontava para eles, os obrigando a ficar no estúdio e gravar takes e mais takes das músicas, até que ele ficasse satisfeito com o resultado. Spector era um aficionado por armas, organizando uma coleção particular de revólveres e pistolas das mais diversas marcas e calibres desde os anos 60.

As Ronettes e Spector posam para as câmeras, com a participação muito especial de um amigo convidado que estava passando pelo estúdio: George Harrison, dos Beatles (1964)

A situação mental de Spector, já delicada, acabaria sendo muito agravada pelo uso de álcool e drogas, algo que se intensificou bastante para ele na virada dos anos 60 para os 70. É ele, inclusive, o ricaço doidão que aparece no início do clássico filme da contracultura Easy Rider (Sem Destino, 1968), puxando uma "farinha" passada pelo motoqueiro interpretado por Peter Fonda. Uma cena que refletia momentos reais da vida de Spector, na época.

Phil Spector em 'Sem Destino'(1968)

Com uma aposentadoria de luxo por todo o sucesso de suas históricas gravações, o mundo do milionário Phil Spector começou a desabar na noite de 3 de fevereiro de 2003, quando ele saiu para a night com seu motorista (um brasileiro, Adriano de Souza), como costumava fazer, rodando pelos clubes e boates de Los Angeles atrás de encontros com alguma beldade.

Nessa ocasião, ele foi parar na House of Blues, onde Lana Clarkson estava tentando reerguer sua carreira como atendente e recepcionista da casa, refazendo contatos e tentando contratos, após um tempo em que se restabelecia de um acidente com fraturas que a deixou longamente afastada de suas atuações em filmes de baixo orçamento - ela já havia trabalhado em diversas produções de horror, capa e espada e ficção científica, muitas produzidas pelos estúdios do lendário Roger Corman. Nos últimos tempos, Lana tentava a participação em programas de TV, e estava revelando um excelente tino para o stand-up e a comédia.

Lana Clarkson em 'As Amazonas na Lua' (1987), comédia de Joe Dante

Não se sabe bem ao certo o que conversaram naquela noite, mas Lana acabou aceitando um convite de Spector para conhecer a sua casa, a verdadeira réplica de um castelo medieval, localizada em uma das áreas de condomínio mais chiques de L.A. Por volta das onze e meia da noite, levados pelo motorista dele em sua luxuosa limusine, os dois chegavam ao local.

Se passaram algumas horas com eles a sós dentro da enorme propriedade, e já beirava a uma hora da manhã quando o motorista Adriano começou a ouvir barulhos de vozes altas dentro da casa, no tom de uma discussão. Ele fez menção de se aproximar e dar uma olhada no que estava acontecendo, mas o receio não deixou. E de repente, ele simplesmente ouve um estampido - um tiro. 

Spector nos anos 70, e seu perigoso hobbie: ele tinha uma coleção de armas

Após ver o seu patrão sair transtornado da casa, gritando que Lana está morta (e aparentemente dizendo: "acho que a matei"), Adriano liga apavorado para a polícia, que quando chega, encontra um cenário tétrico na sala de estar da casa, bem próximo da entrada: o corpo de Lana Clarkson está desajeitadamente caído em uma poltrona, o revólver calibre 38 utilizado no chão, próximo dos pés dela, e alguns pedaços de seus dentes espalhados por ali. O tiro havia acertado em cheio o seu rosto.

O julgamento se tornou um caos, para não dizer um circo midiático sem proporções. Spector, já escondendo a calvície há alguns anos, aparecia nos julgamentos com visual e perucas espalhafatosas e medonhas, numa cara de louco sem igual. Sua defesa se baseou na tese de que Lana cometera suicídio, por mais estranha que fosse a alegação de uma pessoa se matar mirando a arma para o próprio rosto, e os depoimentos do motorista brasileiro acabaram jogando a favor de Spector, visto que por problemas com a linguagem, ele declarou no tribunal que não havia entendido direito o que Spector falara assim que saiu assustado da casa - a suposta frase "acho que a matei" perdeu seu peso no intenso vai-e-vem dos depoimentos e perícias que se sucederam.

Para o desespero da família de Lana, o primeiro julgamento de Spector resultou em absolvição, devido às robustas estratégias maquinadas pela forte equipe de advogados contratada naquele primeiro momento. Mas a revolta popular, de amigos e familiares, juntamente com a do promotor do caso, foi tão grande, que ele conseguiu a anulação do primeiro julgamento, e pediu um segundo - havia uma cultura reinante na Los Angeles da época, de que nenhuma estrela famosa da mídia era realmente incriminada. E neste segundo julgamento, sim, Spector foi enfim condenado pelo assassinato de Lana Clarkson.

Sentenciado a uma pena de 19 anos de prisão, cuja execução começou em maio de 2009, Spector ainda conseguiu cumprir doze anos, antes de falecer por conta da covid-19, em 2021. Algumas de suas derradeiras fotos, na cadeia, davam até medo de olhar. O cara parecia reduzido a um ser caquético, deformado, um retrato humano de sua própria degeneração e sofrimento. O Smeagol, de "Senhor dos Anéis", perdia para ele.

O triste fim de um cara que sabia, como ninguém, gravar e lançar músicas de sucesso, que marcaram gerações. O autêntico ocaso de uma lenda.


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