terça-feira, 5 de novembro de 2024

O NINHO DE LENDAS DA GUITARRA

 

Quando se fala de mestres da guitarra elétrica, que moldaram o som do instrumento no que ele é, e representa na área do rock e da música pop, até hoje (descontando Jimi Hendrix, diga-se), é notório para muitos que não há como se deixar de falar em um grupo britânico essencial, dos anos 60 do século XX: The Yardbirds.

Isso porque é uma banda que teve a incomparável primazia de ter abrigado - e obviamente, propulsionado a carreira - de 3 grandes gênios da guitarra: ninguém menos que Eric Clapton (em recente tour pelo Brasil, que tem emocionado todo mundo que assistiu aos shows), Jeff Beck (brilhantíssimo, já falecido), e Jimmy Page (esse, todos sabem né, "apenas" o papai do Led Zeppelin).

Os Yardbirds começaram na Londres de 1962 como The Metropolitan Blues Quartet, essencialmente um grupo de blues bem básico, que ia na linha de vários outros combos de garotos da época, fascinados pelo som do blues americano de Chicago e Mississipi - o som de caras como Muddy Waters, Elmore James, Howlin' Wolf  e John Lee Hooker, que cruzava o Atlântico nos discos importados dos EUA, disputados a tapa pela molecada inglesa. Inicialmente, eram apenas o vocalista loirinho Keith Relf, com seus amigos Paul Samwell Smith no baixo, Chris Dreja na guitarra, e Jim McCarthy na bateria, formando o tal quarteto. Mas com a entrada do primeiro guitarrista solista do grupo, Anthony 'Top' Topham, viraram um quinteto, e em pouco tempo mudariam o nome do grupo para Yardbirds - uma gíria da época para "pássaros perdidos" ou "vagabundos", "andarilhos", saída de um trecho do lendário livro On the Road, de Jack Kerouac. Topham ficaria pouco tempo com o grupo, e sairia por conta de outros interesses, deixando a vaga para que o desfile de mestres começasse a passar pelo grupo... E se o nome da banda remetia a "pássaros", então podemos inferir que se tratou de verdadeiro ninho para aqueles que estavam predestinados a voar no som das seis cordas. E bem alto.

Cada um desses três espetaculares músicos (Clapton, Back e Page) deixou a marca de sua passagem pela banda com fases bem distintas, e é isso que passamos a analisar a partir de agora.


Fase Eric 'Slowhand' Clapton (1963 - 1965)

Da esquerda p/ direita: 
Keith Relf, Chris Dreja, Jim McCarthy, Paul Samwell Smith, e um bem jovem Eric Clapton

Com Eric Clapton, os Yardbirds ganharam notoriedade no circuito sessentista do blues de Londres, pois o então jovem guitarrista era um reverente e dedicado estudioso do estilo, e a sua forma precisa, mas ao mesmo tempo manhosa e cheia de feeling em soltar acordes e solar (ainda que de forma bem tímida na época, iniciante) abrilhantava o som da banda, e lhe rendeu um apelido curioso, criado pelo empresário do grupo, Giorgio Gomelski: slowhand ("mão lenta"), um jeito irônico de se referir à sagacidade do músico em tocar o instrumento. 

Esses foram os tempos em que eles desbravaram o circuito de casas noturnas famosas, como o Marquee (onde os Rolling Stones haviam começado) e o Crawdaddy Club, de onde saiu o histórico registro de uma pequena turnê onde acompanharam, como banda de apoio, o mítico bluesman americano Sonny Boy Williamson - de quem se diz ter sido parça de ninguém menos que o lendário Robert Johnson. 

São também dessa época as gravações dos primeiros singles da banda, que se tornaram sucesso: "I Wish You Would", "Good Morning Little Schooolgirl" e "I Ain't Got You" (esta com um dos primeiros grandes solos de Eric Clapton) - todos de 1964. 

I Ain't Got You (1964)

No início de 1965, por insistência de Gomelski (o empresário), acaba acontecendo uma tentativa de virada na carreira da banda, e como consequência disso, a primeira grande ruptura: uma composição de um renomado artista pop da época, Graham Goudlman, é encaminhada para o grupo gravar. Se trata de "For Your Love". Uma guinada mais para o lado do som pop romântico, com uma espalhafatosa introdução tocada num órgão estilo cravo (harpsichord). Gomelski, vendo o sucesso de outros grupos ingleses (como os Beatles, Rolling Stones e Animals) ocorrer cada vez mais com a adaptação deles a outros estilos de som, mais pop e com menos influências ásperas do blues, passa a insistir para que os Yardbirds mudem também o seu direcionamento, visando lugares mais altos nas paradas. E isso desagradou em cheio uma figura, diretamente: Eric Clapton.

Sobre a turbulência desse período, ele declararia anos mais tarde: "Como o bom purista do blues que eu era, eu tinha uma ilusão de ser o salvador do mundo, de mostrar e divulgar esse som a todos, como uma espécie de porta-voz. Continuar fazendo parte do jogo, com aquela gravação de 'For Your Love', soava como uma traição para mim, e representava uma pura e simples conversão de apelo comercial para a banda, isso praticamente me obrigava a sair e continuar minha missão fora dali, longe daqueles holofotes". 

For Your Love (1965)

Em outras palavras: os incomodados que se retirem. E assim fez Clapton.

"For Your Love" é gravada e lançada em março de 1965, e como esperado pelo empresário deles, foi um sucesso estrondoso - o primeiro, de fato, a realmente ressoar o nome do grupo através do Atlântico, levando eles a serem ouvidos por muitos na América, pela primeira vez. Mas apenas em pequenos trechos se ouve a guitarra de Clapton, fazendo o ritmo - nas partes da ponte (virada) e do refrão. Foi o máximo que ele topou participar, e assim que terminaram as sessões, pediu sua demissão do grupo. Os outros membros também gravaram a coisa meio a contragosto, cientes de que era um tiro no escuro, um passo em falso que talvez estivessem dando, por insistência de gravadora e executivos. O vocalista Keith Relf, um dos mais apegados ao estilo original do grupo, também ficou meio cabreiro, e foi um dos que mais sentiu a partida de Clapton.

Mesmo assim, seguiram adiante. O futuro era muito incerto, a partir de agora. 

O que fazer sem o guitarrista que estava levantando o nome do grupo, e era um de seus músicos mais admirados e bem conceituados? Logo em seguida, Clapton buscaria se aprofundar ainda mais nas raízes, fazendo parte da banda de blues de John Mayall, e lançando com eles, naquele 1965, um dos mais festejados discos do ano, John Mayall and the Bluesbreakers - com o qual a fama de Clapton chegaria ao ponto dele figurar em pichações feitas por fãs nos muros de Londres que diziam, simplesmente, Clapton is God ("Clapton é Deus").

Aquilo era o tipo de coisa que deixava os Yardbirds com uma tremenda cara de tacho. Mas, de repente, surgiria do nada uma incrível luz no fim do túnel.


Fase Jeff Beck (1965 - 1967) 

Jeff Beck

A solução para a saída de Clapton veio através de contatos de estúdio com outro jovem guitarrista que estava sendo bastante elogiado em suas apresentações com um grupo da parte oeste de Londres, The Tridents: Jeff Beck

Acontece que Beck também vinha fazendo alguns bicos como músico contratado de estúdio, e o mais curioso de tudo isso é que os Yardbirds inicialmente foram convidar o mais renomado guitarrista de estúdio da época, que vinha gravando com praticamente todo mundo do pop rock inglês durante o período 1964-1967: um incansável, tímido e sorridente rapaz magrinho, chamado Jimmy Page. Page não se interessou pela oferta do grupo, mas prontamente indicou aquele colega seu, Jeff Beck, dizendo que tinha um pressentimento de que o estilo dele cairia como uma luva no som da banda. Mal imaginava ele que, pouco tempo depois, estaria novamente às voltas com os Yardbirds...

Foi Beck entrar nos Yardbirds, e em questão de poucos dias, parecia que um novo mundo de possibilidades havia começado para o grupo. De repente, soava como uma outra banda. Ele realmente mexeu com todas as estruturas - o que Clapton tinha de conservador, conciso e mais temente aos ritmos e solos do blues, Beck tinha de inovador, experimental, cioso de explorar sonoridades mais inóspitas da guitarra e incorporar mais peso e efeitos, caprichando no uso de pedais fuzz, microfonia e distorções, e desafiando a banda a ousar nos arranjos e ritmos para acompanhá-lo.

Arrasando ao vivo com Jeff Beck (o segundo, da esquerda para a direita)

Ele, de certa forma, amplificou e melhorou uma tendência dos Yardbirds que havia se tornado marca registrada da banda: o célebre rave up, que pode ser descrito como uma progressão rítmica, presente em várias das canções deles, onde todos os instrumentos vão sendo tocados com uma batida que vai se acelerando e ficando cada vez mais alta, num crescendo arrebatador e vibrante, até estourar com uma grande nota - esse tipo de som pode ser ouvido nas várias versões da banda para "I'm a Man" (cover de Bo Diddley), bem como no início do clássico hit "Shapes of Things" (1966).

Exibicionista e extremamente seguro de si, Beck logo fez a cabeça de todos no grupo para que "subvertessem" o conceito de bandinha pop que o empresário Giorgio Gomelski queria incutir neles (o que, obviamente, já causou alguns atritos entre eles), e foi o guitarrista que acompanhou eles na primeira turnê norte-americana do grupo, evento desbravador e muito importante por conta de 2 grandes fatores: primeiro, tocando nos EUA, eles influenciaram por lá um sem número de futuras bandas de garagem que, ao verem o barulho que os Yardbirds estavam fazendo, com aquele fantástico guitarrista, trataram de seguir e aprimorar tal pegada, formando aquela que poderia ser conhecida como a geração nuggets, ou a primeira onda de bandas punk de garagem dos Estados Unidos: gente como Blues Magoos, The Chocolate Watchband, Amboy Dukes, e um pouco depois, The Stooges e MC5. 

E segundo: assim como os Rolling Stones já haviam feito, os Yardbirds invadiram os estúdios onde clássicos dos pioneiros do rock americano já haviam trabalhado, em busca de um ambiente propício para gravarem seus novos sons, e dali saíram com dois petardos memoráveis, que se tornariam standards de seus shows dali para sempre. Nos EUA, durante o mês de setembro de 1965, gravaram essas obras-primas: sua versão avassaladora de "The Train Kept-a Rolling", e a épica "You're a Better Man Than I".

Voltando para a Inglaterra, mais sessões de gravação, e mais hits matadores: "Evil Hearted You", "Still I'm Sad", e uma das músicas mais famosas do grupo, "Heart Full of Soul", onde o genial Beck emula o som de uma cítara na guitarra que comanda a canção. Fecham o ano com mais uma revolução captada em estúdio: a já citada "Shapes of Things", gravada em dezembro e que sairia no comecinho de 1966, com uma enxurrada de feedbacks e solos hipnóticos de Beck nunca antes ouvida em qualquer outra banda, e que aliada a uma batida marcial e certeira do grupo, moldam a base para um monte de coisas que viriam a ser feitas na seara do hard rock alguns anos adiante.

Heart Full of Soul (1965)



Shapes of Things (1966)

Os Yardbirds estavam simplesmente naquela que é considerada por muitos como a sua melhor fase. Voando bem alto. O problema seria se manter no ar por mais tempo daquele jeito...


Fase Jimmy Page (1966 - 1968)

Jimmy Page

1966 começa para a banda com fôlego total, entre agendas de shows e datas de estúdio. Novas ideias para canções surgem, e um punhado delas irá compor o próximo álbum dos Yardbirds, que será gravado nos estúdios Advision, em Londres, entre abril e junho  de 1966: o memorável Roger, the Engineer, cuja capa representa a fina ironia da pop art inglesa da época, com uma lendária caricatura de um dos engenheiros de som do estúdio (Roger Cameron), desenhada pelo próprio guitarrista rítmico Chris Dreja, e que ficou famosa. 

Disco 'Roger The Engineer', de 1966

Nos EUA, o disco sairia com uma capa diferente, e intitulado com o nome de uma de suas mais marcantes canções: Over Under Sideways Down. O som tonitruante e enérgico do grupo se faz presente num conjunto de músicas que incluem a já citada faixa, "Lost Woman", "He's Always There", "What Do You Want", "Nazz Are Blue" (com vocais de Jeff Beck), além de momentos mais experimentais, como "Turn Into Earth" e "Hot House of Omagararshid".

Logo, o futuro do grupo começaria a ser redefinido, com uma situação casual que ocorreu durante um concerto deles em Oxford, na provável data de 12 de junho de 1966. Nesse dia, Jimmy Page foi assistir ao show dos Yardbirds, que estavam fazendo sensação e sendo muito elogiados com as músicas novas. Depois da apresentação, aproveitou para ir aos bastidores cumprimentar e parabenizar os amigos, e qual não foi sua surpresa ao se deparar com um clima meio estranho.

Yardbirds com a clássica formação de Jimmy Page e Jeff Beck juntos

Page flagra o exato momento em que o baixista Paul Samwell-Smith está anunciando que vai deixar a banda. Cansado da vida na estrada, ele pretende partir para uma carreira mais discreta como arranjador e produtor de estúdio. O sempre irrequieto Jeff Beck começa a dar umas olhadas para Page enquanto ouvem a conversa. Logo, ele puxa Page para um canto. Ele sabe que um dos principais problemas de Page, que o impediam de seguir uma carreira na estrada, e se entregar logo ao sonho de se tornar um rockstar, eram os seus problemas de saúde quando mais jovem: as constantes infecções de garganta, febres, os problemas respiratórios - mas agora, depois de um tratamento intensivo que ele havia feito com um renomado médico de Londres, parecia estar bem, e livre dos seus males.

"Mas e se voltar, e se eu ficar mal novamente?", reclama um inseguro Page. 

"Não vai voltar. Você está bem, vai ficar bem. Olha pro Keith - o cara tem praticamente só um pulmão funcionando, vive com bombinha de asma, tem dia que está com problemas terríveis com a garganta e cantando mal pra burro, mas vive gravando e se apresentando!" - retruca Beck, que sempre citava e ficava impressionado com a garra do vocalista dos Yardbirds, Keith Relf. 

"Anda. Entra logo pra banda. Vamos tocar juntos." - Beck força a manivela.

"Mas baixo? Vou entrar substituindo o baixista? Meu negócio não é o baixo, você sabe..." - Page argumenta. De fato, era estranho pra ele.

"Por enquanto, vai ser mais só pras apresentações ao vivo. Mas isso muda. A gente dá um jeito. Logo vai mudar. Vamos comandar juntos as guitarras."

Page em seu primeiro show com os Yardbirds, pegando o jeito no baixo...

Dito e feito. Após o discurso persuasivo de Beck - e dos outros caras, que também gostavam muito dele e de suas ideias criativas - Jimmy Page entrou para os Yardbirds.

Já no comecinho de julho daquele ano, os Yardbirds adentram o estúdio para as gravações do single "Happenings Ten Years Time Ago", com o novo line-up, e exatamente durante essa fase de produção, Page passa a contribuir com tantas ideias para guitarra na nova música, que o outro guitarrista Chris Dreja, intimidado, simplesmente chega para ele e propõe assumir o baixo dali em diante, confessando, apesar disso, que precisaria de um tempinho para treinar e se adaptar ao novo instrumento, de forma que Page e Beck ficassem só com as guitarras, se revezando entre solos e ritmos. 

Nesse momento, segundo muitos historiadores da banda, é que já começa a surgir a cabeça gerenciadora de Page, passando a lentamente influenciar e tomar as rédeas do grupo, num movimento que futuramente direcionaria para a definitiva criação do Led Zeppelin: compreensivo, ele chega a um acordo com Dreja, se compromete a continuar segurando o baixo nos shows ao vivo, enquanto Dreja se aprimora no instrumento, e em estúdio, ele já assume as guitarras junto com Jeff Beck, e chama para tocar baixo nas gravações um colega seu, que colaborava em várias sessões de outros artistas quando ele precisava. Somente um cara galeguinho e boa pinta chamado John Paul Jones... É dele o baixo que ouvimos em "Happenings".

Com uma lendária e possante formação com dois guitarristas do calibre de Page e Beck, solando e se revezando no ritmo juntos, sai então em outubro de 1966 o compacto "Happenings Ten Years Time Ago" / "Psycho Daisies", que é um daqueles momentos brilhantes e mitológicos que não mais se repetiriam, duas pedradas em forma de som que contem, nos dizeres da crítica da época, um "apocalipse de guitarras".

Coincidindo com o lançamento do single, os Yardbirds comparecem nos sets de gravação de um filme que o conceituado cineasta italiano Michelangelo Antonioni está rodando em Londres, o icônico Blow Up - Depois Daquele Beijo. Antonioni havia convidado o grupo para uma participação especial em um momento chave da trama, quando o protagonista está perseguindo pistas e suspeitos durante um concerto de rock, e para o qual a banda The Who havia sido chamada, mas que por problemas de agenda, não puderam comparecer.

Cena de 'Blow Up' (1966), com os Yardbirds

Este momento eternizado em celuloide contém Page tocando o baixo defronte as câmeras, pois nos shows a plateia ainda estava acostumada a vê-lo nessa posição, e é interessante vê-lo rindo sem parar do absurdo das cenas, pois Antonioni queria porque queria um daqueles momentos típicos dos shows do Who, em que Pete Townshend terminava despedaçando sua guitarra. Como não tinha Townshend nem The Who, a quebradeira sobrou pros Yardbirds e Jeff Beck... que filmou a cena meio sem jeito, mas utilizou um modelo barato da Hofner Senator, e acabou cumprindo o que o contrato pedia para a tal sequência do show. Detalhe: a música tocada era a mesma "Train Kept-a Rollin'" que a banda tanto executava, mas por motivos de direitos autorais, Keith Relf escreveu correndo uma outra letra, e rebatizou a canção como "Stroll On". E tremei: essa versão que ouvimos, gravada em estúdio poucos dias antes, continha também a avalanche de guitarras faiscantes de Page e Beck, duelando nos solos.


Em novembro de 1966, tem início uma nova turnê do grupo pelos EUA. É quando acontece justamente o que muitos não esperavam (mas alguns mais próximos já imaginavam): a saída de Jeff Beck.

Existe uma conjunção de fatores para Beck ter largado os Yardbirds - que, na verdade, largaram ele! Na prática, Jeff Beck foi demitido do grupo, numa decisão anunciada pelo empresário, por conta de uma alegada má vontade em continuar acompanhando os Yardbirds nas turnês. Já se falou muito em um histórico atraso no avião que ele ia tomar separado dos outros durante a turnê, e que acabou não chegando ao seu destino, fazendo com que desmarcassem shows. Também muito se falou na época sobre o guitarrista não estar em boas condições de saúde, e assim ficar trancado em quartos de hotéis, enquanto a banda o esperava para passagens de som que nem acabavam acontecendo.

Mas a verdade concreta, para a maioria dos biógrafos do saudoso guitarrista, é o simples fato de que, excêntrico e intenso, sempre querendo ir além e explorar mais, atrás de novas sonoridades, Beck já estava se cansando da combinação que os Yardbirds faziam, e já vinha pensando em sair e montar o seu próprio projeto havia algum tempo (o que viria a ser o Jeff Beck Group, com Rod Stewart e Ronnie Wood em suas fileiras). Isso, aliado ao fato dele sempre querer extravasar e alongar os seus solos ao vivo - o que deixava o empresário Gomelski furioso, por sempre querer forçá-los a um sonzinho mais convencional e comportado, e a banda em um autêntico estado de tensão - acabou levando todas as partes a uma situação de ruptura inevitável. E os Yardbirds adentrariam o ano de 1967, então, de volta à situação de fundação da banda: tornaram-se um quarteto novamente, com apenas um guitarrista.

Os Yardbirds da era Jimmy Page: Dreja, McCarthy, Page e Relf - um quarteto novamente

Os dias finais: Se você pensa que para o astuto Jimmy Page era um problema estar sozinho e ser agora o único guitarrista do conjunto, tendo que segurar a barra tanto nos ritmos quanto solando, posso apenas te dizer: ledo engano! Exímio instrumentista, capaz de se desdobrar de várias formas nas apresentações, e talentoso e obstinado conhecedor de técnicas e maneiras incríveis de abordar a guitarra também em estúdio, com toda a sua experiência acumulada, agora sim, o homem estava mais fominha do que tudo para subverter os Yardbirds em algo que ele pensava que a "banda perfeita" deveria ser. 

Page já idealizava o que viria a se tornar o Led Zeppelin, ainda nos Yardbirds, imediatamente após a saída de Beck. Julgava ter então o terreno livre para colocar em prática suas experimentações, e pensava em ele mesmo produzir os próximos discos do grupo, alterando sua sonoridade para aquilo que ele planejava. Mas... havia alguns obstáculos no caminho. E grandes.

A banda com Page num de seus últimos shows, em 1968

O primeiro deles era a colher de pau de empresário e executivos de gravadoras, que ainda teimavam em ter uma visão conservadora dos Yardbirds, e continuavam esperando que eles cedessem aos caprichos de soar como mais uma bandinha pop e comercialóide, com canções que atendessem as convenções da época e fossem feitas no formato certinho de single com refrões grudentos e fórmulas mágicas para grudar nas rádios. Ou seja, exatamente o que afastou Clapton do grupo na época de "For Your Love", estava rondando e continuava a acontecer. O segundo fator, e este sim talvez o mais grave, é que a cada ensaio, gravação ou apresentação que se passava, mais Page ficava convencido de que sim, talvez Beck realmente estivesse certo, aqueles caras eram meio quadrados demais e não iriam conseguir "furar a bolha", ousar, tentar novas texturas e estruturas sonoras, estariam sempre presos demais num tipo de sonoridade mais antiquada que logo estaria condenada ao esquecimento, com a evolução do peso, da psicodelia em ascensão, e das novas vertentes progressivas que passavam a surgir em vários grupos da época. Bandas emergentes daquele período, como o Jimi Hendrix Epxerience, e o Cream (com ele de novo humilhando, Clapton!) deixavam os pacatos Yardbirds a anos luz no quesito ousadia, comendo poeira.

Além de tudo, Page inevitavelmente pensava: os vocais de Relf não são realmente tão fortes, se ele tivesse alguém que realmente conseguisse "rasgar" o blues na garganta; McCarthy tenta, mas ele não tem aquele peso, aquela batida violenta que seria a ideal na bateria; e o Dreja, poxa, esforçado também, mas seu baixo não sai do mesmo, não tem aquela atmosfera e criatividade, se no lugar dele estivesse um cara como o Jonesy (John Paul Jones), hum...

'Dazed and Confused', com os Yardbirds (1968)

As ideias para o revolucionário som de sua futura banda já borbulhavam na cabeça de Page, e algumas das músicas que seriam trabalhadas por ele na fase final dos Yardbirds eram prova inconteste disso: "Dazed and Confused", em uma versão já bem próxima do que se tornaria, fez parte do repertório dos shows do grupo durante toda aquela época; "White Summer", demonstração instrumental do guitarrista de suas práticas acústicas folk no violão, com inspirações indianas, depois se converteria em "Black Mountain Side" no primeiro disco do Zeppelin; a belíssima canção "Tangerine" já existia como "Knowing That I'm Losing You", mas com letra original e diferente de Keith Relf, apesar de não ter sido lançada oficialmente pela banda; e vários solos em músicas de Page com os Yardbirds, como "Think About It" e 'Puzzles", seriam reaproveitados quase que nota por nota, em músicas com a galera Plant/Jones/Bonham.

'Knowing That I'm Losing You' (Tangerine), 1968

Uma das últimas grandes decepções de Page com os Yardbirds (e dos próprios, afinal), infelizmente, foi o lançamento do único álbum com o guitarrista à frente da banda - o seu derradeiro da discografia clássica oficial, Little Games, de 1967. A produção totalmente equivocada de um cara como Mickie Most, extremamente careta e autoritário, desagradou Page profundamente.

Não é um disco ruim, de forma alguma - mas se esperava mais do mesmo, em grande parte devido ao fato de, na época, o grupo ainda ser considerado um ato bombástico em suas apresentações ao vivo - eles soavam mais pesados devido às orientações de Page, e ele já estava usando efeitos doidos na guitarra com arco de violino.

O que prejudicou a banda, mais uma vez, foi um pretenso direcionamento no sentido de uma música mais pop e inofensiva, e que já não trazia mais tanto impacto face a outros grupos e performances da época. A música-título era boa, mas esbarrava nessa impressão, ao passo que "Goodnight Sweet Josephine" (lançada como compacto em duas mixagens diferentes, uma para a Inglaterra e outra para agradar mais ao mercado americano) soava como um pastiche. Outros momentos, como "Only the Black Rose" e "Tinker, Tailor, Soldier, Sailor" eram mais instigantes, mas teimavam em se ater a estruturas previsíveis. Bom mesmo era quando o grupo voltava às suas raízes mais blues, chacoalhando com "Drinking Muddy Water", uma releitura da tradicional "Rollin' and Tumblin'".

A recepção morna ao disco foi o prego final no caixão dos Yardbirds, cujos membros já demonstravam cansaço em continuar com a proposta da banda, e começavam a se interessar por empreitadas diferentes. Já no início de 1968, a banda resolve se separar. Dreja, seguindo suas tendências de apego às artes visuais, acabou se aprofundando no mundo da fotografia profissional. Já Relf e o baterista McCarthy, grandes amigos, formariam inicialmente um duo, chamado Together, com uma proposta mais folk e lírica, mas que não daria muito certo - o que estimulou Relf a chamar sua irmã Jane, e montar uma banda progressiva que faria história, nada menos que o Renaissance, onde ele iria cantar junto com ela e também tocar guitarra, mas isso já é uma outra história...

E Page? Bem, Page ficou com os escombros dos Yardbirds... que se resumiam a um monte de datas a cumprir ainda, na Europa. Giorgio Gomelski havia caído fora, já era, foi procurar outras bandas para agenciar, agora que ele vira que não iria faturar mais nem um centavo com os Yardbirds. Para a sorte de Page, ele deixou em seu lugar seu assistente, um brutamontes que faria uma sólida amizade com Page, e que seria responsável por muuuita coisa dali em diante, um tal de Peter Grant. E Page foi caçando talentos para reformular o grupo, que seria chamado de New Yardbirds a partir de então, e cairia na estrada para realizar os tais shows. Primeiramente, chamou o admirado baixista John Paul Jones, já conhecido seu, e ele querendo experimentar esse negócio de ser membro de uma banda de verdade, de cara topou, chega de ser o rapazinho do estúdio. Tentou alguns vocalistas, tentou alguns bateristas. Queria Keih Moon, que andava brigado com The Who - mas logo Moon fez as pazes e voltou. Caça daqui, caça dali. Nada.

Então, um belo dia, ele ouve falar de uns caras, de uma banda riponga meio doida, chamada Band of Joy, de Birmingham. Chama eles para fazer um teste, conferir se os elogios sobre eles podem mesmo ser comprovados. Esses caras são Robert Plant (voz) e John 'Bonzo' Bonham (bateria).

Junto com Jones, Page chama eles para ensaiar numa pequena sala, num bloco de apartamentos próximos de um estúdio onde já havia tocado. A música inicial de teste é "The Train Kept-a Rolling". O grupo começa a "descer a lenha" no volume máximo, e...



Sabemos que os New Yardbirds não iriam utilizar esse nome.


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