Saiu este mês, na Netflix, o documentário O Retorno do Rei - A Queda e Ascensão de Elvis Presley (2024). Dirigido por Jason Hehir, é uma excelente e bem conduzida produção, dessas que nos deleita com preciosas e raras imagens de arquivo, e que prima por fazer algo que sempre cai bem em documentários sobre personalidades históricas com longas trajetórias: faz um recorte detalhado de determinado período marcante na vida do astro. O filme pincela fatos determinantes da origem e do início da fama de Elvis, também fazendo relações com o contexto social e fatos da época, mas não enrola e vai direto ao ponto, cumprindo bem com a sua finalidade.
O documentário foca o momento conturbado em que Elvis sentiu que deveria 'reinventar' a sua imagem e dar novo rumo à sua carreira, que estava soterrada por contratos intermináveis de filmes chatos e de baixo orçamento, e gravações insípidas que já não conquistavam ninguém nas paradas. Tudo resultado de uma condução pra lá de equivocada de sua carreira nos anos 60, a cargo do seu empresário mala, o raposão velho Coronel Tom Parker.
Movido por um intenso desejo de voltar a ser relevante para as novas gerações de então, que já se viam capturadas pela energia de um novo tipo de música jovem que surgiu na época - primeiro, com as bandas inglesas, Beatles e Rolling Stones, e logo mais no final da década, a ousadia psicodélica de The Doors, Jimi Hendrix e outros - Elvis tomou para si uma oportunidade única de transformação: um singelo especial de Natal, programado para ir ao ar em dezembro de 1968 pela rede de televisão NBC, e que o Coronel Tom Parker queria que seguisse o seu esquema, no ritmo de sketches e quadros musicais que praticamente imitavam o que Elvis já vinha fazendo naqueles filmes bobinhos.
Elvis resolve então, após conversas com os produtores da atração, mudar radicalmente o seu direcionamento, colocar plateia e palco na coisa toda para voltar a se apresentar ao vivo, e chama para tocar com ele novamente os velhos companheiros de sua banda original, de quando começou, na década anterior - estão lá os lendários Scotty Moore, na guitarra, e D.J. Fontana, baterista, caras que estiveram na gênese daquela febre revolucionária que incendiou os EUA e o restante do mundo, e se chamava rock and roll. Essa parte do show que foi ao ar mostrava um Elvis esbelto, bronzeado, e revigorado após um período de regime e preparação física, vestido de couro preto como os grandes rebeldes da motocicleta no cinema, empunhando seu violão e arregaçando nos vocais de clássicos como "Hound Dog", "Heartbreak Hotel", "Trying to Get to You", entre tantas outras, com sua banda de frente para uma pequena e extasiada plateia, que parecia nem acreditar no que estava vendo - uma lenda, um ícone, ressurgindo das cinzas com força total.
Tal apresentação é de um poder inigualável, e além de sugerir uma provável inspiração para muitos dos shows acústicos intimistas e mais improvisados, que se tornariam moda com os projetos Unplugged, da MTV (nos anos 90), mostra como ele ainda era relevante, ousado, e hipnótico como artista. Esse era Elvis - mais uma vez visionário, precursor, e incomparável.
Mas não era só isso, e a inovação não parava por aí: sob influência da intensa atmosfera política do final dos anos 60, repleta de movimentos sociais e contestações da juventude, com Martin Luther King, Bob Kennedy e as revoltas contraculturais, Elvis sentia a necessidade de se pronunciar sobre algo mais significativo, socialmente falando. É dessa forma que ele resolve gravar, como gran finale para o especial, a canção "If I Can Dream", verdadeiro hino da música de protesto composto por Walter Earl Brown, e encomendada pelo produtor geral do especial de TV, Steve Binder.
Binder, aliás, é figura importantíssima na concepção do especial, que viria a se chamar Elvis Comeback Special '68 - e provavelmente, essa é uma das maiores falhas do documentário da Netflix, que dá pouco destaque à sua importância para que as coisas saíssem do jeito que Elvis realmente queria, e não vai muito a fundo na importância de "If I Can Dream" para aquela ocasião. "Pedi a Earl que simplesmente escrevesse 'a melhor música do mundo', totalmente baseado nas conversas que eu e Elvis tivemos a respeito do assassinato de Luther King, e usando aquele mote do célebre discurso dele, 'I have a dream' (eu tenho um sonho), e o que Earl fez foi simplesmente fantástico, uma das melhores letras para Elvis, e que refletia exatamente a sua filosofia e pensamento... Elvis era muito ligado nas questões sociais, mas não se expunha muito por causa do Coronel".
O filme de Baz Luhrman em 2022 é que acabou retratando melhor a emoção e a importância que essa parceria entre Elvis e o produtor Steve Binder tiveram, para a criação do musical - e reza a lenda que, já na primeira tomada, Elvis cantou "If I Can Dream" com uma performance tão perfeita e incontida, que membros da banda simplesmente ficaram emocionados e com os olhos cheios de lágrimas assim que terminou. Mesmo assim, o rei teve um surto de perfeccionismo com a gravação, e fez vários takes, sendo que o último, considerado o definitivo, foi feito no estúdio com as luzes apagadas, e Elvis se entregando de forma vigorosa e física à interpretação, chegando a ficar de joelhos no chão.
Interessantíssimas são também as participações, no documentário, de gente do ramo artístico que é super por dentro de várias fases da trajetória de Elvis, como os cantores Bruce Springsteen e Billy Corgan (da banda Smashing Pumpkins)eles acrescentam análises certeiras e apaixonadas sobre essa fase do rei do rock, bem como Baz Luhrman, diretor da mais recente e bem sucedida cinebiografia dele (Elvis, de 2022, com Austin Butler no papel principal), e da própria viúva de Elvis, a famosa Priscilla Presley. Sensacional a cena em que ela e Luhrman assistem o trecho de um dos filmecos de Elvis nos anos 60, e comentam que é um crime o que fizeram com a carreira dele naquela fase.
Em suma, O Retorno do Rei é uma belíssima homenagem a um dos momentos mais notáveis e brilhantes da carreira de Elvis Presley. Foi uma situação excepcional, em que ele retomou as rédeas do seu próprio destino, e conseguiu novamente ser o cara inovador, criativo e instintivo que era antes, dotado de um dom natural e um talento inigualável para a música legítima e de raiz: os verdadeiros blues, country e rock n' roll que ele tanto dominava, se distanciando de falsos apelos comerciais e danosos para o seu nome. Foi o momento em que ele voltou a ser autêntico novamente, o verdadeiro Elvis!
É uma pena que esse impulso durou tão pouco. Tivesse ele realmente conseguido se livrar da dependência (e da ingenuidade) que tinha em relação ao seu nocivo e dominador empresário, sabe lá Deus que grandes obras ele ainda teria legado à humanidade. Fica aqui um alerta para muita gente que continua presa a vida inteira em relacionamentos tóxicos...
Como Elvis sentiu de novo a emoção da volta aos palcos, devido ao especial de TV, sabemos que logo depois ele quis emendar uma turnê empolgante de retorno aos shows ao vivo em vários lugares dos EUA, a partir do ano seguinte (1969), e que se estenderia pela década de 70. Isso fez com que abandonasse definitivamente a sua carreira no cinema, e voltasse a se dedicar integralmente à música e aos discos. Mas, novamente ludibriado pelas artimanhas matreiras de Tom Parker, ele acabou sendo confinado em uma longa e interminável série de shows em hotéis e cassinos de Las Vegas, que além de se comprovar exaustiva e enfadonha - talvez até pior do que a sua temporada de filmes nos anos 60 - terminou por minar a saúde do rei do rock, preso em uma série de contratos que, hoje sabemos, tinham o intuito de saldar as exorbitantes dívidas de jogo do seu empresário.
E assim se deu a fase final da carreira de Elvis, nos anos 70.
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