terça-feira, 30 de julho de 2024

DYLAN E A MOTO

 

Já começou a ser divulgado em vários cinemas, na semana passada, o trailer de "A Complete Unknown" (ainda sem título nacional, mas que pela lógica, seria "Um Completo Desconhecido"), filme que vai narrar a primeira fase da carreira do mitológico cantor/compositor/poeta Bob Dylan - ganhador do Nobel de literatura, uma autêntica instituição norte-americana e da música pop - e que será vivido por um dos atores do momento, Timotheé Chalamet.

Como a trama inicialmente divulgada do filme se compromete a focar mais na etapa inicial da carreira de Dylan, quando ele era um jovem aspirante a menestrel de folk music, recém chegado do Minesotta para tentar a sorte na grande New York e seus cafés e bares noturnos repletos de beatniks e grupos existencialistas, e provavelmente vai chegar só até o período em que ele faz a polêmica transição para o rock e o som eletrificado, culminando na turbulenta turnê europeia de 1966, acompanhado pelo genial grupo The Band, talvez fique de fora aquele que é, para diversos estudiosos e admiradores da vida e carreira do astro, um dos episódios mais complexos, misteriosos e emblemáticos de sua história: o grave acidente de moto que quase matou Dylan, nos anos 60.

Dylan e The Band, em show em Manchester, Inglaterra (1966)

Ocorrido logo após a tal turnê barulhenta com The Band, o acidente completou agora 58 anos - ocorreu no dia 29 de julho de 1966, e é importante contextualizar o cenário em que Dylan se encontrava para entendermos um pouco a dinâmica e a mística que envolveram esse acontecimento. 

Com apenas duas semanas de descanso para se recuperar da correria da turnê em sua casa na propriedade campestre de Woodstock, Dylan não conseguia se desligar das diversas pressões que o cercavam: o empresário Albert Grossman fechara contrato para uma nova turnê com mais 60 datas para o segundo semestre daquele ano, a rede de TV ABC já tinha pago cem mil dólares para que Dylan preparasse um especial para transmitirem, e além disso, a editora Macmillian ligava insistentemente para o cantor, pois o prazo para ele entregar o livro de poesias que ele devia sob contrato (o futuro Tarantula) estava apertado, chegando ao fim. 

Assim sendo, e pelo fato de todas as circunstâncias do acidente terem sido mantidas sob uma "névoa" pelo próprio Dylan, podemos entender que era uma alma atormentada, e com mil coisas e compromissos na cabeça, que pegou e acelerou aquela moto inglesa Triumph 500, máquina de estimação e que fazia com que seu dono percorresse longos quilômetros pela Striebel Road, emulando o espírito dos teddy boys dos anos 50 que ele admirava, Elvis Presley e James Dean. 

Para extravasar do stress, relaxar, ou simplesmente ir buscar alguma coisa na cidade, Dylan já estava há algum tempo deslizando com a Triumph 500 naquela região próxima de onde morava. 

De qualquer forma, o que houve ali, segundo a versão mais difundida, foi uma derrapada em uma poça de óleo na estrada, que fez a moto perder o controle e atirar para longe o cantor. Resultado: ferimentos graves, com diversos cortes no rosto que quase desfiguraram Dylan, concussão cerebral (fazendo com que ele passasse por longos períodos de amnésia), ferimentos internos diversos, e um pescoço quebrado - que, por diferença de apenas alguns centímetros, poderia ter sido fatal. Por sorte, vindo logo atrás dele na pista naquele dia, em um carro, estava a esposa de Dylan na época, Sara. E isso foi determinante para que o socorro fosse mais rápido.

Dylan, então, após alguns dias no hospital, volta para continuar o tratamento em sua casa em Woodstock, e se torna um recluso durante o período de praticamente um ano. Por se recusar a receber imprensa e uma grande parte de visitas, de forma a evitar virar alvo da curiosidade pública, Dylan acaba se tornando restritivo e lacônico até com os mais próximos. E a sorte variada de impressões das poucas pessoas que conseguem vê-lo nesse período dá origem a um amplo painel de especulações que chegam até mesmo à teoria de que esse acidente... pode nem ter acontecido. 

O poeta beatnik Allen Ginsberg resolve levar alguns livros para Dylan, e o encontra pouco tempo depois do acidente se locomovendo bem, sem parecer ter sofrido muitos ferimentos. Já um dos representantes da editora MacMillan, ao conseguir acesso para visitá-lo, acha Dylan muito abatido e de óculos escuros, reclamando que a sua visão também fora prejudicada pelo acidente (lembre-se que ele tinha prazo para finalizar um livro para a editora, mas agora então...). Já o cineasta D.A. Pennebaker, que registrara o documentário Don't Look Back sobre a turnê na Inglaterra, foi ver Dylan e também não achou ele tão machucado, mas sim, com um mau humor terrível, mais de poucas palavras ainda do que já era, e irritadiço com todo mundo. 

De repente, parecia que cada pessoa tinha uma impressão diferente a respeito do acidente de Dylan com sua moto.

Os jornalistas Clinton Heilyn e Al Aronowitz, que colaboraram com algumas das melhores biografias sobre Bob Dylan, tentaram durante anos jogar luzes sobre o que poderia ser fato e o que poderia ser mito sobre o acontecimento. Detalhes testemunhais revelam, nos textos de Heilyn, que talvez nem tenha sido uma poça de óleo que fez Dylan cair da moto - mas sim, pura distração e descuido em uma curva, comprovando relatos de que Dylan nunca fora um bom motociclista, apesar de sua paixão. Já para Aronowitz, o próprio Dylan anos depois, numa raríssima ocasião em que abordou o assunto, contou que o sol estava forte naquele dia, e com um forte reflexo ofuscando ele na estrada, fez com que se atrapalhasse sem enxergar direito, então acabou freando de forma busca, o que causou um travamento na roda e o arremesso de Dylan para longe - que ainda disse se lembrar de tudo em câmera lenta, e ter a certeza de que iria morrer assim que batesse no chão.

Já para biógrafos como Mark David Epstein, chega a ser cogitado que o acidente pode ter sido simplesmente uma "farsa", mero pretexto para que Dylan simplesmente desse um tempo, conseguisse se livrar de todos os fatigantes compromissos profissionais que o sufocavam, e reajustar o foco - repensar novos rumos para aquela carreira que, até ali, tinha sido tão louca e não tinha dado mais tempo para nada. Ele descobre que, a despeito de Sara Dylan ter falado em chamados de socorro e pelo menos uma semana de internação no hospital da região, Epstein não encontrou um registro oficial sequer do acidente com Dylan - nem nos arquivos de polícia da época, e nem no hospital onde ele teria recebido atendimento.

Para ao bem ou para o mal, e tendo sido um acidente "de fato" ou não, o que importa é que ele foi necessário para Dylan na época - e se tornou um divisor de águas em sua carreira, talvez o primeiro grande. A partir dali, ele reorienta a sua sonoridade, passando a aglutinar uma variedade de estilos, e abraçando melhor o pop, o country, e elementos mais diversificados do rock. Ele passa a valorizar mais o tempo com a família, e a repensar sobre shows e concertos para grande projetos futuros. Ele, afinal, consegue também passar a enxergar e evitar as manobras cruéis do "sistema" ganancioso, por trás das lutas artísticas.

“Quando eu tive aquele acidente… eu acordei, retomei meus sentidos e percebi que eu estava trabalhando para todos esses sanguessugas. E eu não queria aquilo. E também, eu tinha uma família”. (Bob Dylan)



--- x ---

Quer fazer parte do nosso grupo de WhatsApp, e receber nossas postagens e matérias fresquinhas, assim que saem, para ver direto no seu celular? Vem, acho que você vai gostar! 

Aqui:   https://chat.whatsapp.com/L3RhRnX6AlxFFY9SmzsiwS 

domingo, 28 de julho de 2024

BRIAN JONES - UMA PEDRA QUE ROLOU HÁ MUITO TEMPO...

 

Rumores de uma nova turnê dos Rolling Stones começam a pipocar na imprensa, por estes dias. É impressionante, os caras não se cansam. Quanto tudo parece apontar para a definitiva aposentadoria deles, algum anúncio surge, e pronto, eles estão gravando ou tocando mais uma vez.

Por mais longeva que seja a carreira dessa lendária banda, aparentemente eles nunca conseguirão sair, ou escapar, do espectro mítico das primeiras fases de sua trajetória como ícones do rock, lá pelos idos da década de 1960. E quando nos referimos a isso, aos seus dias áureos de ousadia e vigor juvenil, é inevitável enxergá-los sob a aura do seu primeiro integrante de destaque, aquele considerado o grande "avatar" da aventura e rebeldia stonianas, e lembrado como o legítimo fundador do grupo: o esteticamente angelical, mas intrinsecamente problemático, Brian Jones

The Rolling Stones: a formação original, com Brian Jones

Lá se foram 55 anos de sua passagem para o além, ocorrida de forma abrupta em 3 de julho de 1969, e sua etérea figura loira e magnética ainda permeia o imaginário coletivo, de fãs dos Stones e do rock clássico, em geral.

Exímio, irrequieto, inovador e criativo na guitarra, Jones vinha de uma sólida base de admiração pelo blues norte-americano, que fascinava tantos garotos na Inglaterra do pós-guerra, e que o levaria a se juntar com outros que comungavam de tal paixão: Mick, Keith, Charlie e Bill - e que adotariam o nome cunhado pelo próprio Jones para a banda - Rolling Stones, baseado na letra de um blues de Muddy Waters, "Rolling stones gather no moss" (pedras rolantes não criam limo). E foi também sob a orientação musical dele, com seus ritmos e riffs se entrelaçando com os de Keith Richards, num dos primeiros grandes trabalhos de duas guitarras na história do rock, que o som do grupo tomou a sua primeira grande forma original.

Diversas obras - que vão de livros a filmes - já abordaram a sua trajetória errática e de final trágico, e compilam alguns fatores que seriam preponderantes para a sua decadência artística, que vão desde problemas familiares de rejeição dos pais pela sua carreira como músico (eles queriam que ele se dedicasse a algum trabalho sério, ou pelo menos, enveredasse pela música clássica, ao invés do endiabrado rock and roll), uma irrefreável compulsão por se envolver com diferentes mulheres (que o levou a vários relacionamentos conturbados), até a vertiginosa entrega ao vício do álcool e das drogas.

Em um dos mais recentes documentários sobre a sua vida, The Stones and Brian Jones (produzido pela BBC), destaque é dado ao fato de como, nos  primeiros anos de sua rápida carreira, ele era um rapaz fino e calmo, sensível, um autêntico gentleman, mas que com o passar dos anos, sob a influência de diversos fatores ligados à fama, e somados à carência que ele tinha de uma maior atenção de sua família, terminaram por corromper a sua persona original, e o fizeram se afundar cada vez mais e mais na insegurança e nos estupefacientes químicos.

É consenso geral que, no começo de tudo, não tinha pra ninguém: Brian Jones era o chefe e a figura principal dos Rolling Stones. Estiloso e cheio de feeling nos shows ao vivo, era ele quem mais chamava a atenção no grupo. Gradualmente, e muito por conta da entrada do empresário Andrew Loog Oldham na jogada, essa posição vai sendo minimizada e substituída com a ascensão cada vez maior da dupla Mick Jagger e Keith Richards na banda, pois Jones queria manter o formato original de som deles mais dedicado ao blues, e Oldham forçava a manivela para que seguissem uma direção mais pop e de apelo comercial, para produzir mais singles de músicas próprias e disputarem com os Beatles nas paradas.

Jagger e Richards foram induzidos (praticamente obrigados) a compor músicas próprias para o grupo. Jones não compunha nada - talvez por insegurança, talvez porque simplesmente não tivesse vontade. E isso foi determinante para que ele perdesse a sua posição de liderança.

It's Alright (1965)

Durante um determinado período, compreendido entre 1965 e 1967, Jones ainda faz o que pode para garantir certo protagonismo nos Stones, graças à sua tremenda naturalidade e talento como multi-instrumentista: além da guitarra, o cara sabia tocar aparentemente de tudo, e muito bem. É considerada por muitos como a era artisticamente mais rica e inovadora no som do grupo, e Jones explora o mais que pode - saltério na lírica balada medieval "Lady Jane", marimbas no hit "Under My Thumb", flautas e dulcimer na intrincada e semi-erudita "Ruby Tuesday", e cítara em "Paint it Black" - mostrando que ele e George Harrison dos Beatles estavam lado a lado na predileção pelos sons orientais da Índia.

Paint it Black (1966)

Mas o progressivo envolvimento com drogas (culminando na fatídica prisão e problemas com a justiça inglesa, em 1967), aliado à piora de suas condições psicológicas, acabam encaminhando Brian Jones para o fundo do poço. Reclusão, neuroses e mania de perseguição, ataques de pânico, e introspecção cada vez mais severa - os episódios depressivos do músico o levam a se esquecer, faltar ou simplesmente se recusar a comparecer a diversos compromissos com a banda dali em diante. Mudanças bruscas de humor e temperamento - passava a ser cada vez mais agressivo com suas namoradas, ao ponto da violência física e comportamentos abusivos. De repente, no instante seguinte, ele já estava chorando arrependido, rastejando e implorando por desculpas, como se tomado por um autêntico conflito de personalidades, ou até mesmo bipolaridade, algo que na época nem era estudado ou bem compreendido pela sociedade. 

Tudo isso e diversas crises fizeram com que seu destino em relação aos Stones fosse selado.

No sétimo álbum do grupo, lançado em 1968, o lendário Beggar's Banquet, ainda podem ser ouvidas esparsas contribuições de Jones, mas o produtor do disco, Jimmy Miller, se lembra que ele comparecia esporadicamente ao estúdio para gravar as suas partes, e que um dia, ao chegar tão chapado e aéreo que ele simplesmente insistia em gravar cítara em uma música que não tinha nenhum espaço para esse instrumento, Mick Jagger recomendou a Miller que ele fosse isolado em uma cabine do recinto e deixassem ele tocando o que quisesse por lá, fazendo de conta que ele estava sendo gravado, numa das mais cruéis demonstrações de como ele vinha sendo tratado pelos colegas na época. Sem graça com a situação, Miller pergunta a Jagger o que ele faria se Jones descobrisse a "manobra". Ao que o cantor simplesmente responde, friamente: "Fala pra ele parar de encher o saco e manda ele cair fora daqui logo em seguida".

Brian Jones na festa de lançamento de 'Beggar's Banquet', já apresentando sinais de decadência

Na prática, Jones já era um ex-Stone.

Ainda assim, na maravilhosa balada "No Expectations", tida como um dos melhores momentos do álbum, pode ser ouvida a belíssima slide guitar de Jones, uma de suas especialidades, naquele que acabaria sendo de fato o seu último momento mágico na discografia da banda.

1969 chega, e com ele, se agrava a cada vez mais inconstante participação do guitarrista no grupo. Finalmente, em 8 de junho daquele ano, ocorre uma famigerada visita de Mick, Keith e Charlie Watts à propriedade rural onde Jones está morando (Cotchford Farm), para anunciarem que ele está fora da banda, e que os Stones seguirão sem ele. Apesar da tensão inicial do momento, o desligamento é amigável, Jones parecia já prever a situação, e terminam a reunião sorrindo e desejando boa sorte uns aos outros. Por mais louco que parecesse, era isso: o criador dos Rolling Stones fora demitido de sua própria banda.

Apenas alguns dias depois, o jornalista Thomas Beyl, da revista alemã Bravo, consegue aquela que seria a última entrevista de Brian Jones. 


Ele encontra um Jones barbudo, um tanto sombrio e desgrenhado, em Cotchford Farm, uma imagem bem distante daquele jovem cheio de energia e vaidade de alguns anos antes. Conhecido antigo da banda, e ainda incrédulo a respeito da separação deles, Beyl inquire o músico sobre o que aconteceu. "Eu já queria ter saído há uns dois anos, mas Mick que me convenceu a ficar mais. Estou achando esse som dos Stones chato e antiquado, senti vontade de seguir novos caminhos. E quer saber? Para o inferno com os Rolling Stones!". Beyl então tenta puxar para o lado mais sentimental. "Pois bem, mas ouvi falar que os Stones querem sair em nova turnê. Você não acha que os fãs da banda vão sentir muito a sua falta?". Esse é o único momento em que Beyl percebe brilho nos olhos já tristonhos e apagados de Jones, aquela criança interior e carente clamando por atenção. "Oh, você acha que eles vão sentir minha falta?", ao que Beyl responde, "claro que sim".

Jones então se põe na defensiva novamente: "Diga a eles que estou montando uma nova banda. Estrearei um novo projeto. Eles gostarão! Talvez seja algo mais instrumental, talvez eu só produza. Mas é música de verdade, um novo estilo. Dentro dos próximos dias vamos decidir tudo". Ele saca um LP que está numa caixa próxima da sala onde estão conversando - é o lendário Brian Jones Presents the Pipers of Joujouka, uma experiência com músicos e flautistas indianos que ele gravou no ano anterior, em uma visita a Marrakesh. Durante muitos anos, antes da era do CD e da música digital, esse foi um dos discos mais raros e procurados por colecionadores, no mundo inteiro. "Vou compor e lançar minha própria música nesse estilo. Ficarei rico, assim como Mick e Keith estão agora!", fala Jones com um misto de leve empolgação e amargura, enquanto põe o disco para tocar. Durante vinte minutos de flautas e percussões, Jones elogia e fala sobre aquelas tendências. Ele se exalta e acredita no sucesso daquilo. Mas Beyl não. Ele termina a entrevista, agradece, e sai dali triste e cabisbaixo, com uma persistente impressão de que Jones está indo para um lado muito errado...

Enterro de Brian Jones

Em apenas 3 semanas Brian Jones estaria morto, seu corpo encontrado afogado e inerte na piscina dessa sua imensa propriedade rural. Polêmicas, teorias conspiratórias, e muitas acusações ocorrem, em cima da pessoa de um pedreiro, Frank Thorogood, que havia sido contratado para uma reforma no lugar, e com quem Jones teria se desentendido no dia anterior. A verdade definitiva, mediante um laudo feito às pressas, e as tendências autodestrutivas de Jones com seus vícios, nunca saberemos. Assim como nunca saberemos se as ideias e concepções desse genial músico, para os "sons do futuro" que ele estava a bolar, realmente vingariam.

Dois dias depois, os Stones voltam a tocar ao vivo com o concerto grátis no Hyde Park, de Londres, um recorde de público para a época, e resolvem fazê-lo como uma homenagem ao recém-partido Brian Jones. Ali, eles lacram de vez a primeira fase de suas carreiras no caixão com o seu fundador, e se colocam prestes a iniciar um novo capítulo na saga do grupo.

Stones in the Park


--- x ---

Quer fazer parte do nosso grupo de WhatsApp, e receber nossas postagens e matérias fresquinhas, assim que saem, para ver direto no seu celular? Vem, acho que você vai gostar! 

Aqui:   https://chat.whatsapp.com/L3RhRnX6AlxFFY9SmzsiwS 

quarta-feira, 24 de julho de 2024

SOB AS SOMBRAS ETERNAS DO NAZISMO

 

Muito já se falou e se produziu a respeito da Segunda Guerra Mundial e do pesadelo do Holocausto, em diversas e numerosas obras da História, da literatura ou das artes. O material de arquivo é extenso e abrangente, formando um rico painel de como aquele conflito lento, arrasador e compassado, dizimou uma grande parte da raça humana, nos idos de 1939 a 1945.

Mas é muito importante que todos aqueles que possam dispender um tempinho, e que tenham oportunidade, deem a si mesmos uma chance de conhecer um dos melhores e mais pungentes documentários já feitos, que retrata toda a linha de acontecimentos que culminaram naquela tragédia desoladora: o recente Hitler e o Nazismo - Começo, Meio e Fim (2024), dirigido por Joe Berlinger, e disponível na Netflix desde o início deste mês.

Essa muito bem cuidada produção em 6 episódios relata, em diversos pormenores, todo o trajeto pavimentado para que Adolf Hitler saísse de uma juventude miserável e sem perspectivas de sua terra natal, na Áustria, e gradualmente chegasse ao posto de líder político e militar (fuhrer) de toda a Alemanha, passando como um rolo compressor (ou tanque Panzer) por cima de tudo e de todos que estivessem em seu caminho.

Entre farto material com imagens de arquivo, e partes com encenações dramáticas perpetradas por atores com reconstituição de época (assim como em outras produções do gênero), a série da Netflix se esmera em rebuscar detalhes cruciais para o entendimento do conflito.

O que diferencia esta de outras séries documentais que abordam os mesmos fatos históricos é a capacidade de nos colocar absurdamente dentro da narrativa e de todo o clima da época. Isso se deve ao fato de todo o material utilizado se apoiar consistentemente nas experiências do jornalista americano William L. Shirer, que trabalhou como correspondente de guerra para a CBS e outros importantes veículos de imprensa dos EUA. Um dos mais importantes repórteres de seu tempo, e testemunha ocular da fulminante ascensão (e queda) de Hitler e do nazismo na Europa, Shirer tem aqui reproduzidos tanto os seus relatos em gravações históricas das transmissões de rádio sobre os acontecimentos, bem ali, no momento em que ocorriam, como em trechos de seus livros a respeito do holocausto, narrados por sua própria voz, recriada com inteligência artificial para a série.

Outra importantíssima perspectiva que o documentário nos apresenta: a reprodução quase integral de tudo o que ocorreu no célebre Julgamento de Nuremberg (1945-46), em que os criminosos de guerra nazistas foram julgados e condenados pelo primeiro grande tribunal internacional reunido para tal finalidade. São exibidas, pela primeira vez, filmagens originais de várias sessões do julgamento, com reprodução de áudios digitalmente restaurados dos depoimentos, e de argumentações da acusação e defesa - uma preciosidade à parte, para estudiosos e diletantes de História e Ciências Jurídicas.

Mas o que nos remete, imediatamente, ao mais profundo arrepio, misturado a sentimentos de repulsa e indignação, talvez seja o quinto episódio da série (Crimes contra a humanidade), que mostra com crueza extrema, e riqueza de detalhes, como se deu em larga escala o extermínio de milhares de judeus nos campos de concentração nazistas. São cenas feitas para chocar, e que precisam ter esse intuito mesmo.

O emblemático trilho da estrada de ferro, símbolo da fachada do lendário campo de concentração de Aushwitz, retratado na série

A humanidade não pode esquecer o que ocorreu ali. E o que levou para que aquilo acontecesse.

Existem centenas de células neonazistas no mundo atualmente. No Brasil, país de população secularmente miscigenada, supreendentemente a situação não é menos preocupante. Em 2021, foram recebidas e processadas pelo Conselho Nacional de Diretos Humanos nada menos que 14.476 denúncias anônimas de grupos neonazistas, armados ou não, mas disseminadores de manifestações de ódio e violência em redes e grupos sociais. Em dezembro de 2022, quatro pessoas foram mortas por um estudante de 16 anos, trajado de farda militar com as insígnias da suástica nazista, no município de Aracruz (ES).

Só no ano passado (2023), denúncias apontaram que existem 63 grupos devotos dessa ideologia em Blumenau (SC). Só na Grande São Paulo, foram descobertos e denunciados 96. 

Símbolos e adornos apreendidos após autuação de grupo neonazista, no Rio Grande do Sul

Apenas isso já nos dá uma ideia de como o perigo das sombras do nazismo é sempre constante, e paira sobre nós. Se grupos de pessoas comungam desses ideais, e se infiltram em núcleos políticos de poder, aí a coisa se agrava - só Deus sabe até onde a ameaça pode efetivamente sair do campo da teoria, e enfim atingir a prática. E a série da Netflix mostra bem isso: tudo ocorreu muito suavemente, de forma tranquila, como se para as populações do mundo fosse a coisa mais natural e legítima do mundo a ascensão de Hitler e suas ideologias ao poder. Tudo muito calmo e imperceptível. Até que o mal mostrasse seus dentes no momento certo.

William L. Shirer sabiamente avisava, a todos os seus amigos e familiares: "vigiem, sempre. Prestem atenção nos detalhes, não se distraiam". Tudo pode voltar a acontecer. De formas diferentes. Mas pode voltar a acontecer.

Aqui no blog, façamos nossa parte.

Seguem alguns canais de contato e suporte, para denúncias em relação a grupos ou pessoas incitadores de intolerância e ódio, caso alguém que nos lê fique sabendo de alguma coisa suspeita. Divulgue. E lembre-se sempre: você pode ajudar a evitar.

www.canaldeajuda.org.br - Canal on-line para denúncias contra grupos ou indivíduos nazistas, armados e/ou paramilitares.

https://new.safernet.org.br/denuncie - Canal on-line de denúncias da SaferNet Brasil, organização não governamental que atua como orientadora e vigia das boas práticas no uso da internet, com ênfase em denúncias com suspeitas sobre ofensas e ilícitos em fóruns e redes sociais.


--- x ---

Quer fazer parte do nosso grupo de WhatsApp, e receber nossas postagens e matérias fresquinhas, assim que saem, para ver direto no seu celular? Vem, acho que você vai gostar! 

Aqui:   https://chat.whatsapp.com/L3RhRnX6AlxFFY9SmzsiwS 

segunda-feira, 15 de julho de 2024

LOUCOS PROJETOS DE FILMES... NUNCA FILMADOS

 

Na história da sétima arte, existem algumas empreitadas que foram muito buriladas, planejadas e comentadas - mas que, por um ou outro motivo, não vingaram. Em alguns casos, fãs e cinéfilos dos mais variados lamentam a não realização dessas obras, algumas com grande potencial para serem fantásticas ou revolucionárias. Em outros casos, talvez tenha sido melhor mesmo que não fossem para frente... seja pelos egos e complexidade das personas envolvidas, seja pelo absurdo que os projetos aparentemente beiravam em seus conceitos originais. Vejamos aqui alguns casos famosos:


- DRÁCULA, de Ken Russel

Essa adaptação do famigerado cineasta britânico, responsável por obras extravagantes e "fora da casinha", como o musical Tommy (1975, inspirado no álbum do The Who), e Viagens Alucinantes (1980), estava prevista apara acontecer em 1977, e teria o excêntrico Peter O'Toole (de Lawrence da Arábia) no papel do vampirão, e Sarah Miles como sua eterna paixão Mina, mas numa abordagem mais moderninha, transposta para o início do século XX, em que ela seria uma cantora de ópera acometida da leucemia e que, diante do seu encontro com o senhor das trevas, acharia até bacana a ideia de entrar no mundo dos hematófagos, para se tornar uma imortal e assim salvar sua pele... Dados os delírios visuais que Russel gostava de imprimir em suas películas, mais esse enredo bem subvertido da história original, a coisa ia ficar muito doida mesmo. O projeto foi abandonado depois que o estúdio da Columbia Pictures ficou sabendo que uma produção com o mesmo personagem já estava sendo conduzida pela Universal Pictures, com o prestigiado Frank Langella no papel principal, e seguindo os moldes clássicos da obra. Com receio de tentar competir com o outro filme, e perder para o outro "padrão" mais conservador, a Columbia desistiu da ideia de Ken Russel, e o projeto foi abortado, mesmo com o roteiro já pronto e uma boa parte do elenco contratada.

O 'Drácula' de Ken Russel seria descartado mediante a versão lançada em 1978, com Frank Langella 


- SUPERMAN, de Tim Burton, com Nicholas Cage

Essa já entrou para o terreno das lendas urbanas e virtuais, e todo mundo imagina a loucura que ia ser: Cage (que sempre proclamou ser vidrado no Homem de Aço) vestindo capa e cuequinha vermelha, sob a batuta de ninguém menos que Tim Burton. Testes de figurino e elenco foram realizados, fotos disso tudo já foram espalhadas por anos na internet, bem como rascunhos do roteiro original. Só que não vingou, era 1997 e a Warner Bros ficou com medo de embarcar em uma nova releitura do herói, depois do fiasco da última aventura lançada nos cinemas, ainda com Christopher Reeve (Superman IV, 1987). Estavam também numa fase de apostar mais no Batman, após o sucesso da série cinematográfica do morcegão que o próprio Burton havia iniciado em 1989. O mais amargo de tudo isso é que Cage lamentou o fracasso da inciativa, ficou na vontade, e ainda teria o desgosto de ver uma versão malfeita sua, dessa tentativa de filme, produzida em CGI tosco, em uma das mais constrangedoras cenas do malfadado filme do Flash, lançado recentemente, em 2023.




O Superman de Nicholas Cage em dois momentos: acima, nos testes de tela e figurinos originalmente feitos em 1997. A seguir, a deprimente e tosca reprodução em CGI, para o filme The Flash (2023)


- O SENHOR DOS ANÉIS, by The Beatles

Cartaz produzido por fãs de como seria o "Senhor dos Anéis" dos Beatles: 
George seria Gandalf, Paul e Ringo encarnariam Frodo e Sam, e Lennon ficaria como o Gollum! Direção a cargo do mestre Stanley Kubrick

Essa pertenceu ao terreno da lenda durante muito tempo, mas já foi confirmada em algumas biografias do grupo, e mais recentemente, pelo próprio diretor dos filmes épicos da obra, que bateram recordes de bilheteria e ganharam Oscars entre 2001 e 2003 - o renomado Peter Jackson. Foi durante os trabalhos de restauração dele das filmagens da banda em 2022, para o projeto documental Get Back e do filme original Let it Be, de 1970. Devido aos rumores, o próprio diz que sempre teve muita curiosidade de saber o que havia realmente ocorrido na época, e aproveitou a oportunidade para questionar diretamente Paul McCartney. Jackson conta: "Apesar de não se lembrar bem de alguns detalhes, Paul disse que eles realmente tinham a intenção de filmar uma versão musical de Lord of the Rings, após receberem cópias dos livros, para lerem durante o retiro espiritual que fizeram na Índia em 1968, com o Maharishi". O grande problema é que o grupo não obteve a autorização do autor da obra, J.R.R. Tolkien, que torceu a cara para a ideia de ver um grupo pop adaptando a sua obra-prima - ele detestava rock e toda a cultura jovem da época. O que muitos não sabem é que os Beatles, naquele período, ainda estavam presos a um contrato com a United Artists para a produção de mais um último filme, após os sucessos avassaladores de Os Reis do Iê-Iê-Iê (A Hard Day's Night, 1964) e Socorro (Help!, 1965), mas o grupo se sentia pressionado a isso justamente em meio à grande crise que enfrentavam, com a morte do empresário Brian Epstein, a perda dos rumos da banda em novos projetos, e as pesadas críticas em cima de um outro filme, feito por eles em  formato mais "experimental" como um especial para a TV inglesa em 1967, o Magical Mistery Tour. A banda se encontrava em um momento tão atribulado de sua carreira (e que logo acabaria conduzindo ao seu término, dentro de dois anos), que eles simplesmente respiraram aliviados quando concluíram pela ideia de simplesmente produzir um desenho animado com as figuras e as músicas deles, como forma de quitar o contrato (Yellow Submarine, de 1968), e então a ideia de "O Senhor dos Anéis" foi totalmente deixada de lado. Detalhe: para o projeto original do filme, os rapazes de Liverpool simplesmente pensavam em contratar ninguém menos que Stanley Kubrick para a direção.

O psicodélico desenho animado dos Beatles, Yellow Submarine (1968), feito só para quitar contrato


- LARANJA MECÂNICA, by The Rolling Stones

Os Rolling Stones

Mais uma vez o nome de Kubrick estaria envolvido em um projeto cinematográfico mirabolante de banda de rock, mas agora as coisas terminariam um pouco diferentes - ele conseguiria fazer o filme, mas sem nenhum roqueiro. As ideias iniciais para envolver os Rolling Stones em uma versão para as telas do famoso  e polêmico romance Clockwork Orange, de Anthony Burgess, datam ainda de 1965, quando o empresário deles na época, Andrew Loog Oldham, leu e ficou obcecado pelo livro, paixão essa que logo ele passaria também para os integrantes do grupo, tentando coagi-los de que já era momento de expandirem suas carreiras para o cinema, seguindo justamente o exemplo do que os Beatles vinham fazendo (lembra-se da famigerada história de competição entre as duas bandas?). Na verdade, nenhum dos rapazes do grupo ficou muito interessado na proposta, a não ser o vocalista Mick Jagger - que desde essa época, já tinha ambições maiores e pretensões de adentrar a sétima arte. A primeira tentativa não deu certo, pois não conseguiram os direitos da obra, que Burgess já havia vendido. Dois anos depois, em 1967, ocorre uma nova tentativa - mas foi o ano em que a banda, incluindo Jagger e os guitarristas Keith Richards e Brian Jones estavam tão enrolados em problemas com a justiça britânica (por conta das batidas policiais e prisões por porte de drogas que sofreram), e atuar justamente como a gangue de marginais presente na história do livro pegaria tão mal perante a opinião pública, que o assunto foi simplesmente deixado de lado. Em 1970, quando o projeto enfim foi cair no colo de Stanley Kubrick, nenhum dos Stones sequer cogitava mais incursões como estrelas de cinema, a não ser um ainda obcecado Jagger, que já tinha filmado Performance (de Nicholas Roeg, 1969), e estava às voltas com um faroeste obscuro, Ned Kelly, que ele protagonizaria naquele ano. O grande problema é que, apesar de surgir até mesmo uma carta escrita de próprio punho por Jagger, se oferecendo para atuar no filme, Kubrick não tinha muito interesse nele como ator, e não confiava em suas poucas habilidades dramáticas para o papel principal do delinquente Alex DeLarge. Assim sendo, o papel ficou com o excelente Malcolm McDowell, e o filme foi lançado em 1971 conforme idealizado por Kubrick, sem nenhum rolling stone nele - mas se tornando uma de suas maiores obras-primas, e causando tanto alvoroço na mídia quanto os shows dos Stones, na época.

Mick Jagger, e ao lado, Alex DeLarge (desempenhado por Malcolm McDowell), o papel que ele tanto queria - imagine um no lugar do outro. Possível?


- NAPOLEÃO, de Stanley Kubrick

Na internet, fãs e admiradores tentam imaginar como seria o Napoleão de Kubrick, vivido por Jack Nicholson (aqui em trajes típicos, no antigo filme de 1963, "Sombras do Terror")

Kubrick, envolvido em tantos projetos que deram e outros que não deram certo, acabou com o estigma de ser o diretor do "melhor filme jamais feito", e que já adquiriu uma aura mítica ao longo dos anos: nunca saberemos quão fantástica e grande seria a sua tão falada versão de Napoleão, história do ditador francês pela qual ele era obcecado, e que já gerou até livros sobre o tema, reunindo todo o espetacular material literário, fotográfico e de arquivo que Kubrick reuniu durante anos, autêntico pesquisador que era, para utilizar em suas filmagens. Assim que lançou o clássico 2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), Kubrick já pretendia se dedicar ao projeto. Interrupções e imprevistos de diversas ordens (incluindo as recusas dos estúdios em arcar com o orçamento astronômico que Kubrick exigia) foram frustrando seus planos, até que em 1975 ele aproveitou uma grande parte do que já tinha planejado e filmou Barry Lyndon, história baseada em livro de William Makepeace Thackeray e ambientada na Europa, num período próximo ao do império napoleônico. Mas sabemos que o mestre Kubrick já tinha pelo menos ideia para algumas das figuras do elenco: Jack Nicholson, com quem ele posteriormente trabalharia em O Iluminado (The Shining, 1980) era um dos cotados para viver o imperador francês. 

Barry Lyndon (1975)

- KILL BILL 3, de Quentin Tarantino


Após um longo hiato em que o diretor Quentin Tarantino e a atriz Uma Thurman não estiveram muito bem um com o outro - por conta de um ruidoso episódio, durante as filmagens de Kill Bill vol. 2 (2004) em que ela se acidentou de carro, por uma negligência de cuidados dele - eles fizeram as pazes, e ele chegou a cogitar que teria ideias para a realização de um terceiro filme da saga da "Noiva", em que o ciclo de vingança perpetrado por ela seria reiniciado, com novos personagens ligados à antiga gangue de Bill. Thurman também considerou a possibilidade de interpretar novamente a personagem, e especuladores de Hollywood alegam que um esboço de roteiro chegou a ser escrito por Tarantino. Entretanto, o seu envolvimento em outros projetos que despertaram mais o seu interesse, aliado à sua promessa de encerrar a carreira após 10 obras de sua autoria, soterraram de vez as possibilidades de realização desse que poderia ser um belo filme.


- KALEIDOSCOPE, de Alfred Hitchcock

O lendário filme de psicopata serial killer que o mestre do suspense tinha a intenção de realizar, em 1967, e com o qual ele pretendia se reconciliar com o público e crítica, visto que seus filmes mais recentes - Marnie (1964) e Cortina Rasgada (1966) - não haviam sido bem recebidos, e ele vinha sendo apontado como um cineasta em franca decadência. Uma vez que a temática do assassino psicótico era algo que já havia regalado a ele um dos seus maiores êxitos (o clássico Psicose, de 1960), agora ele planejava voltar a essa ambiência, com a narrativa de um fisiculturista de Nova Iorque, que perseguia mulheres e tinha uma fixação por executá-las perto de rios e lagoas (a água como elemento próximo do sangue e morte - referência da icônica cena de chuveiro de Psicose?). A polícia, sem conseguir maiores pistas para prender o assassino, passa a usar uma policial à paisana como isca para atrai-lo. Não chegou a ocorrer pré-produção e nem contratação de ninguém para o elenco, apenas algumas cenas de teste foram rodadas com atores e atrizes iniciantes contratados (footage), para servirem de modelo e apreciação junto com o script inicial do projeto, apresentado a uma audiência de executivos da Universal Studios - mas após a reunião, os produtores do estúdio ficaram chocados. Não foi dada carta verde para Hitchcock seguir adiante, pois acharam que o plot do filme sugeria uma atmosfera "macabra" e com um estilo muito cru e agressivo, não convencional das produções do cineasta - seria um autêntico precursor dos filmes brutais de slasher. Se em obras anteriores, Hitchcock costumava apenas sugerir a violência, pelo que se via nas cenas de teste de Kaleidoscope, o cineasta iria exagerar nas cenas de nudez e sangue explícito, no realismo impresso em cada tomada de assassinatos e esquartejamentos, em um nível que ainda não era imaginado na época. Assim, o projeto foi abandonado - mas elementos dele seriam reaproveitados no filme dele Frenesi, de 1972, também envolvendo um maníaco, mas com menos violência, um roteiro mais contido, e ambientado em Londres. O engraçado é que, imediatamente após o cancelamento do projeto de Hithcock para este filme, por volta do final dos anos 60, a febre dos giallo - os filmes no estilo slasher, com serial killers e cenas sangrentas - passaria a proliferar na Itália, com o sucesso de produções extremamente parecidas com o que Hitchcock estava pensando em fazer.




Cenas footage que fizeram parte do projeto de Kaleidoscope, de Alfred Hitchcock - precursor frustrado dos filmes estilo slasher, de 1967


- DOM QUIXOTE, de Terry Gilliam

Podemos dizer que a história desse projeto, que na verdade acabou conseguindo sim ser filmado (não como seria originalmente, e devido a inacreditáveis e numerosos contratempos), é um exemplo de obstinação e resistência de um homem e sua arte - o incansável Terry Gilliam. 




Acima: o guerreiro Terry Gilliam, em foto recente. Abaixo, jovem, ele está mais à esquerda, com os seus companheiros do grupo Monty Python, na década de 70.

Gilliam foi um dos membros mais prolíficos da célebre trupe britânica de humor Monty Python - além de atuar, era o responsável por aquelas adoráveis sequências de animação absurdas e rasteiras dos clássicos Em Busca do Cálice Sagrado (1974) e A Vida de Brian (1979). Depois que se afastou do grupo, ele firmou uma sólida carreira de cineasta, com títulos marcantes e elogiados, como Bandidos do Tempo (1981) e Brazil - O Filme (1985), em que faz uma versão altamente absurda e pessoal da obra máxima sobre autoritarismo de George Orwell, 1984. Mas o grande sonho de Gilliam, um apaixonado por literatura desde sempre, era filmar o lendário romance de Miguel de Cervantes, Dom Quixote. Em 1999, depois de muitos esforços para captar recursos e conseguir os direitos de filmagem da obra, Gilliam começaria um calvário de praticamente 3 décadas para conseguir seu intento: com locações em Madri, e elenco contando com Johnny Depp, Vanessa Paradis e Jean Rocheford, ele inicia a empreitada. Mas durante todo o ano seguinte de 2000, diversos problemas parecem condenar o diretor a não prosseguir com o projeto - desde Rochefort caindo doente e abandonando a produção, até uma tempestade que destrói todos os cenários, passando por problemas diversos com o elenco e liberação de mais verbas. Em 2002, cansado de passar quase dois anos lutando para reunir toda a equipe para filmar novamente, Gilliam lança parte do material que tem na forma de um documentário, chamado Perdido em La Mancha. Mais 3 anos se passariam e uma nova tentativa de filmar o material original, com Johnny Depp, ocorre em 2005 - mas é forçado a parar as filmagens, pois o uso dos direitos da obra haviam ficado com a produtora anterior. Mais atrasos. Chega 2008, e quando Gilliam consegue reaver os direitos, descobre que Depp não estará mais disponível, pois já havia sido contratado para atuar na série "Piratas do Caribe". Chama Ewan McGregor (de Transpotting e Star Wars) para o seu lugar. Mas descobre que perdeu o financiamento do filme. O dinheiro acaba. De novo as filmagens param... Por volta de 2014, Gilliam consegue um novo aporte de verbas para voltar a filmar. A essa altura, o roteiro já mudou, a história está toda diferente, e o lendário ator britânico John Hurt é contratado para ser o novo Dom Quixote. Mas logo ele descobre que está com câncer, adoece, e abandona o projeto para se tratar (morreria em 2017). 

Gilliam e Johnny Depp no set de filmagens da versão original de Dom Quixote (2000).

Resultado: em 2019, o filme que finalmente chegaria nos cinemas, com o título já mudado para O Homem que Matou Dom Quixote, é uma história muito diferente, com mudanças no roteiro, e um outro enfoque para aquilo que o pobre Terry Gilliam originalmente projetava para a obra. Nos papéis que seriam de Johnny Depp e Jean Rochefort, estão Adam Driver e Jonathan Pryce, e o filme afinal consegue moderada recepção nos festivais de cinema ao redor do mundo.

Adam Driver e Jonathan Pryce, em O Homem que Matou Dom Quixote (2019).


- LENINGRADO, de Sergio Leone

Algum tempo depois do lançamento de seu último filme, Era Uma Vez na América (1984) - que não era um faroeste, mas sim um longo e clássico filme sobre máfia e  gangsters - o mestre dos spaghetti westerns Sergio Leone se preparava para filmar um épico que ele tinha em sua mente, e que seria o seu primeiro filme dentro do gênero "guerra": Leningrado, uma mega produção sobre a invasão de Leningrado pelas tropas nazistas de Hitler, na Segunda Guerra Mundial, e que seria protagonizado por Robert DeNiro. Havia uma previsão de 100 milhões de dólares para o orçamento da produção, e Leone lutava pela captação desses recursos com estúdios e produtoras da época, quando em 30 de abril de 1989, um infarto cessou sua vida e, consequentemente, todos os seus planos.

Robert DeNiro, em Era Uma Vez na América (1984)


- THE CONQUEST OF MEXICO, de Werner Herzog

Nos dizeres do próprio Herzog, o cineasta alemão de obras viscerais como Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), e Fitzcarraldo (1982), esse filme, caso tivesse sido feito na época de sua concepção (início dos anos 1990), seria a sua mais ambiciosa e cara produção, pois só para as grandiosas cenas de batalha que ele tinha em mente, seriam gastos muitos milhões de dólares. O roteiro original de Herzog estava todo pronto, e versa sobre o mítico episódio da conquista do império asteca no Mexico, e sua capital (Tenochtitlan), pelo aventureiro Hernán Cortez (o "Cortez, the Killer", retratado na belíssima canção de Neil Young em 1975). Assim como em diversas outras empreitadas abandonadas no caminho, o problema crucial para Conquest of Mexico era a captação de recursos para a realização de um épico de tal porte, tão denso e que demandaria uma reconstituição de época bem aprimorada. Para os fãs da obra de Herzog, surgiu recentemente um consolo: se não foi possível ver o filme, pelo menos podem lê-lo e concebê-lo mentalmente, em todas as suas nuanças, pois todo o roteiro original criado por Herzog foi lançado na forma de um magistral livro, "Mexico: The Aztec Account of Conquest", de autoria do próprio.




--- x ---

Quer fazer parte do nosso grupo de WhatsApp, e receber nossas postagens e matérias fresquinhas, assim que saem, para ver direto no seu celular? Vem, acho que você vai gostar! 

Aqui:   https://chat.whatsapp.com/L3RhRnX6AlxFFY9SmzsiwS 

AS FACES DO MAL, SEGUNDO FRIEDKIN

Para o icônico diretor de cinema William Friedkin - falecido há pouco mais de um ano, em 7 de agosto de 2023, aos 87 anos - a vida do ser h...