Já começou a ser divulgado em vários cinemas, na semana passada, o trailer de "A Complete Unknown" (ainda sem título nacional, mas que pela lógica, seria "Um Completo Desconhecido"), filme que vai narrar a primeira fase da carreira do mitológico cantor/compositor/poeta Bob Dylan - ganhador do Nobel de literatura, uma autêntica instituição norte-americana e da música pop - e que será vivido por um dos atores do momento, Timotheé Chalamet.
Como a trama inicialmente divulgada do filme se compromete a focar mais na etapa inicial da carreira de Dylan, quando ele era um jovem aspirante a menestrel de folk music, recém chegado do Minesotta para tentar a sorte na grande New York e seus cafés e bares noturnos repletos de beatniks e grupos existencialistas, e provavelmente vai chegar só até o período em que ele faz a polêmica transição para o rock e o som eletrificado, culminando na turbulenta turnê europeia de 1966, acompanhado pelo genial grupo The Band, talvez fique de fora aquele que é, para diversos estudiosos e admiradores da vida e carreira do astro, um dos episódios mais complexos, misteriosos e emblemáticos de sua história: o grave acidente de moto que quase matou Dylan, nos anos 60.
Ocorrido logo após a tal turnê barulhenta com The Band, o acidente completou agora 58 anos - ocorreu no dia 29 de julho de 1966, e é importante contextualizar o cenário em que Dylan se encontrava para entendermos um pouco a dinâmica e a mística que envolveram esse acontecimento.
Com apenas duas semanas de descanso para se recuperar da correria da turnê em sua casa na propriedade campestre de Woodstock, Dylan não conseguia se desligar das diversas pressões que o cercavam: o empresário Albert Grossman fechara contrato para uma nova turnê com mais 60 datas para o segundo semestre daquele ano, a rede de TV ABC já tinha pago cem mil dólares para que Dylan preparasse um especial para transmitirem, e além disso, a editora Macmillian ligava insistentemente para o cantor, pois o prazo para ele entregar o livro de poesias que ele devia sob contrato (o futuro Tarantula) estava apertado, chegando ao fim.
Para extravasar do stress, relaxar, ou simplesmente ir buscar alguma coisa na cidade, Dylan já estava há algum tempo deslizando com a Triumph 500 naquela região próxima de onde morava.
De qualquer forma, o que houve ali, segundo a versão mais difundida, foi uma derrapada em uma poça de óleo na estrada, que fez a moto perder o controle e atirar para longe o cantor. Resultado: ferimentos graves, com diversos cortes no rosto que quase desfiguraram Dylan, concussão cerebral (fazendo com que ele passasse por longos períodos de amnésia), ferimentos internos diversos, e um pescoço quebrado - que, por diferença de apenas alguns centímetros, poderia ter sido fatal. Por sorte, vindo logo atrás dele na pista naquele dia, em um carro, estava a esposa de Dylan na época, Sara. E isso foi determinante para que o socorro fosse mais rápido.
Dylan, então, após alguns dias no hospital, volta para continuar o tratamento em sua casa em Woodstock, e se torna um recluso durante o período de praticamente um ano. Por se recusar a receber imprensa e uma grande parte de visitas, de forma a evitar virar alvo da curiosidade pública, Dylan acaba se tornando restritivo e lacônico até com os mais próximos. E a sorte variada de impressões das poucas pessoas que conseguem vê-lo nesse período dá origem a um amplo painel de especulações que chegam até mesmo à teoria de que esse acidente... pode nem ter acontecido.
O poeta beatnik Allen Ginsberg resolve levar alguns livros para Dylan, e o encontra pouco tempo depois do acidente se locomovendo bem, sem parecer ter sofrido muitos ferimentos. Já um dos representantes da editora MacMillan, ao conseguir acesso para visitá-lo, acha Dylan muito abatido e de óculos escuros, reclamando que a sua visão também fora prejudicada pelo acidente (lembre-se que ele tinha prazo para finalizar um livro para a editora, mas agora então...). Já o cineasta D.A. Pennebaker, que registrara o documentário Don't Look Back sobre a turnê na Inglaterra, foi ver Dylan e também não achou ele tão machucado, mas sim, com um mau humor terrível, mais de poucas palavras ainda do que já era, e irritadiço com todo mundo.
De repente, parecia que cada pessoa tinha uma impressão diferente a respeito do acidente de Dylan com sua moto.
Os jornalistas Clinton Heilyn e Al Aronowitz, que colaboraram com algumas das melhores biografias sobre Bob Dylan, tentaram durante anos jogar luzes sobre o que poderia ser fato e o que poderia ser mito sobre o acontecimento. Detalhes testemunhais revelam, nos textos de Heilyn, que talvez nem tenha sido uma poça de óleo que fez Dylan cair da moto - mas sim, pura distração e descuido em uma curva, comprovando relatos de que Dylan nunca fora um bom motociclista, apesar de sua paixão. Já para Aronowitz, o próprio Dylan anos depois, numa raríssima ocasião em que abordou o assunto, contou que o sol estava forte naquele dia, e com um forte reflexo ofuscando ele na estrada, fez com que se atrapalhasse sem enxergar direito, então acabou freando de forma busca, o que causou um travamento na roda e o arremesso de Dylan para longe - que ainda disse se lembrar de tudo em câmera lenta, e ter a certeza de que iria morrer assim que batesse no chão.
Já para biógrafos como Mark David Epstein, chega a ser cogitado que o acidente pode ter sido simplesmente uma "farsa", mero pretexto para que Dylan simplesmente desse um tempo, conseguisse se livrar de todos os fatigantes compromissos profissionais que o sufocavam, e reajustar o foco - repensar novos rumos para aquela carreira que, até ali, tinha sido tão louca e não tinha dado mais tempo para nada. Ele descobre que, a despeito de Sara Dylan ter falado em chamados de socorro e pelo menos uma semana de internação no hospital da região, Epstein não encontrou um registro oficial sequer do acidente com Dylan - nem nos arquivos de polícia da época, e nem no hospital onde ele teria recebido atendimento.
Para ao bem ou para o mal, e tendo sido um acidente "de fato" ou não, o que importa é que ele foi necessário para Dylan na época - e se tornou um divisor de águas em sua carreira, talvez o primeiro grande. A partir dali, ele reorienta a sua sonoridade, passando a aglutinar uma variedade de estilos, e abraçando melhor o pop, o country, e elementos mais diversificados do rock. Ele passa a valorizar mais o tempo com a família, e a repensar sobre shows e concertos para grande projetos futuros. Ele, afinal, consegue também passar a enxergar e evitar as manobras cruéis do "sistema" ganancioso, por trás das lutas artísticas.
“Quando eu tive aquele acidente… eu acordei, retomei meus sentidos e percebi que eu estava trabalhando para todos esses sanguessugas. E eu não queria aquilo. E também, eu tinha uma família”. (Bob Dylan)
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