Existe uma classe de atores, de uma era clássica do cinema, que se tornaram notáveis por não cederem às pressões de empresários e estúdios, e realmente desempenharem apenas os papéis que queriam, pelo amor à arte. Um bom texto, com bons diálogos, e um bom roteiro aliado a uma direção segura e eficaz: eis o segredo, aliado ao talento natural do intérprete, para todas as grandes atuações que entraram para a história da sétima arte e deixaram suas marcas.
Nada contra os astros que também atuam para pagar seus boletos, aliás. Somos todos humanos, e as necessidades mundanas também falam alto, em certos momentos: Sean Connery, Marlon Brando, Michael Caine, Gene Hackman, Anthony Hopkins etc., são tantos ícones monstruosos da história do cinema que invariavelmente tiveram que se render aos contratos milionários e figurar em um blockbuster aqui, outro ali, de modo a garantir a feira.
O que temos a seguir, no entanto, é uma galeria que se destaca por não ser composta de nomes tão "mega estelares" assim (ok, há exceções), e ao compararmos, o número de escolhas em que esses artistas cederam aos caprichos de seus agentes e de produtores poderosos foi infinitamente menor do que a média comum - principalmente do cinema atual, tão ditado pelas cifras. Em algum momento, um ou outro fez sim algum filme bem famoso e que os tornou em evidência na boca do povo, mas no geral, continuaram presos às diretrizes básicas e rígidas do 'métier', sempre se reciclando em peças de teatro, buscando papéis mais desafiadores a cada novo projeto, e não se importando também em coadjuvar e servir de escada para outros colegas, em obras memoráveis. Em alguns momentos, fizeram pontas e participações em filmes de maior apelo popular, mas de forma a conseguirem o recurso necessário para investirem em projetos pessoais e de cunho mais artístico (John Cassavetes é um exemplo notório).
Não é uma lista taxativa, é óbvio - nunca, jamais poderia ser, sendo que há tanta gente boa por aí que nem tem como citar. Mas serve para dar um gostinho da época em que gerações de atores pareciam buscar maior substância dramática.
Com vocês, portanto, aqueles que não se renderam ao "sistema":
Terence Stamp
Tido como uma das maiores revelações da atuação britânica dos anos 60, Stamp chegou a ser considerado um sex symbol na primeira fase de sua carreira, devido aos seus papéis vigorosos e magnéticos em títulos que marcaram, como no papel do sociopata introspectivo do clássico "O Colecionador" (1965), do sargento debochado de "Longe Deste Insensato Mundo" (1967) e do estranho e jovem sedutor de "Teorema" (1968), do lendário cineasta italiano Pier Paolo Pasolini.
Apesar de tudo, e de ser irmão de simplesmente um dos maiores empresários do rock inglês daqueles tempos, Chris Stamp (o cara que simplesmente promoveu o grupo The Who), ele nunca deixou a fama subir em sua cabeça, e sempre manteve a sua aristocrática fleuma britânica; sendo mais recluso em busca de bons papéis, participava de várias temporadas de peças shakespearianas no tradicional Bristol Old Vic Theatre, de Londres, ao longo das décadas de 1970 e 1980. A maioria do grande público, entretanto, vai sempre se lembrar dele como o impiedoso antagonista do Superman, General Zod, na versão original para os cinemas de "Super-Homem, o filme" (1978), e "Super-Homem 2" (1981). Ainda teve um destaque considerável como uma das drag queens do filme "Priscilla, a Rainha do Deserto" (1994).
John Hurt
Tido até hoje como um dos mais memoráveis atores britânicos de sua geração, Hurt era um desses caras que se entregava ao personagem, com um tipo de técnica parecida com o "método", muito utilizado pelos seus colegas norte-americanos. Atuou em uma infinidade de filmes e séries para a TV baseados nas peças clássicas, e tinha rígida formação shakespeariana. O primeiro grande papel que fez ele ter destaque entre público e crítica, entretanto, é um em que ele jamais seria reconhecido, devido às camadas absurdas de maquiagem com que atuou: foi o papel de John Merrick, um homem nascido com uma terrível deformidade congênita no crânio e em seu rosto, que é explorado por circos de aberrações na Inglaterra do século 19 mas passa a ser reconhecido como dono de uma personalidade incrível, no melancólico "O Homem Elefante" (1980), de David Lynch.
Mais adiante, em 1984, outro grande papel, justamente no filme de mesmo nome, "1984", inspirado na célebre obra do escritor inglês George Orwell, que denunciava o totalitarismo (e onde foi usada pela primeira vez a expressão "big brother" para se referir ao governo do futuro, usando câmeras que vigiariam a população). Mas uma das aparições mais icônicas pela qual Hurt sempre será lembrado é como coadjuvante, que faz parte da tripulação ceifada pelo sanguinário "Alien" (1979), o clássico original de Ridley Scott - é ele o astronauta Kane, de cuja barriga irrompe uma das criaturas após uma bela janta com macarrão, em cima da mesa do refeitório da nave, e ante os olhares apavorados dos outros colegas de missão. Um de seus últimos papéis de destaque foi como o professor enlouquecido de "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" (2008), de Steven Spielberg. Hurt nos deixou em 2017, devido a um câncer no pâncreas.
Klaus Kinski
Se nos anos 60 e 70, você quisesse falar sobre doideira, exibicionismo e esquisitice, em termos de atores de cinema, não precisava ir muito além do nome Klaus Kinski. Ele era um polaco-alemão absurdamente genioso e irreverente, que poderíamos descrever como uma versão europeia do rebelde Marlon Brando, mas bem piorada. Chegou a lutar do lado das forças alemãs na Segunda Guerra Mundial, aos 17 anos. Baleado e preso pelas tropas inglesas, descobriu o seu dom para atuar no campo de prisioneiros, para fugir dos trabalhos forçados e conseguir benefícios. Com o fim da guerra, ao retornar para a Alemanha, resolveu entrar de cabeça no mundo do teatro, mas invariavelmente acabava despedido das companhias em que entrava, devido ao seu comportamento imprevisível e instável. Chegou a tentar estrangular uma colega de quem gostava, por não corresponder a ele, o que o deixou internado durante um certo tempo em um hospital psiquiátrico e com um laudo final de psicopatia. Kinski, devido a toda essa vida pregressa acidentada, custou a engrenar no cinema, mas após o final da década de 1950, e ao longo dos anos 60, começou a ter destaque em centenas de papéis coadjuvantes, em produções europeias da época. Chegou a ter uma ponta no épico "Dr. Jivago" (1965), de David Lean.
E no final da década, seguindo a mesma tendência de um sem número de atores europeus e americanos que ainda não tinham conseguido o sucesso merecido, partiu para a Itália para participar de spaghetti westerns e produções de baixo orçamento. Ali, passou a ter vários contatos com diversos cineastas, e sua estrela começou a firmar - compreensivelmente, interpretando diversos papéis de bandido, como no clássico "Vingador Silencioso", de 1969. A carreira de Kinski realmente toma impulso a partir de suas colaborações com o cineasta alemão Werner Herzog, na década de 70: "Aguirre, Cólera dos Deuses" (1972), "Woyzeck" (1978), e "Nosferatu" (1979), dentre outros, marcaram uma parceria entre ator e diretor tão profícua quanto polêmica e passional (certa vez, quase se mataram no set de filmagens). Kinski é o pai da bela e célebre atriz alemã Nastassja Kinski. Morreu em 1991, de enfarte. E podes crer que muita gente não achou ruim.
Daniel Day-Lewis
Ator irlandês, de origem britânica (nascido em Londres), que chegou a um nível tão elevado de perfeição em suas atuações, que se tornou praticamente impossível ele interpretar papéis menores, a partir de certa altura de sua carreira. Oriundo de uma família com a arte no sangue (seu pai, poeta, e sua mãe, atriz), Daniel atua desde novo, e ainda na adolescência foi admitido no tradicional e prestimoso Bristol Old Vic Theatre School - esse verdadeiro celeiro dos grandes talentos dramáticos ingleses, sempre encenando as grandes peças, as grandes obras. A partir de meados da década de 1980, o seu talento começa a sobressair e agentes passam a contratá-lo para personagens que seriam enriquecidos por suas nuanças: "Minha Adorável Lavanderia" (1985) e "A Insustentável Leveza do Ser" (1988) se destacam. A consagração chega com o primeiro Oscar, pelo papel do jovem deficiente Christy, em "Meu Pé Esquerdo" (1989).
Atuações históricas viriam com "Em Nome do Pai" (1993), "Gangues de New York" (2002) e aquele que é considerado um dos mais arrebatadores de todos os tempos: o do irascível e ambicioso Daniel Plainview em "Sangue Negro" (2007), que lhe concederia o segundo Oscar. Um recorde até hoje não igualado seria quebrado com a condecoração do terceiro Oscar, recebido por sua atuação visceral como o lendário presidente norte-americano em "Lincoln" (2013). Também adepto do "método", Daniel já se aposentou, disse preferir viver uma vida sossegada com sua família na Irlanda de agora em diante, e se despediu do cinema com o filme "Trama Fantasma", em 2017.
William Hurt
Americano de Washington D.C., este outro Hurt se notabilizou como um dos mais excêntricos atores de sua geração, sempre exigente e altamente seletivo com seus roteiros e personagens, algo mais difícil de se ver na seara do cinemão ianque. Foi consagrado com o Oscar pelo marcante papel de um detento homossexual no filme "O Beijo da Mulher Aranha" (1985). Mas além desse, atuou em vários papéis dramáticos intensos, sempre com maneirismos e detalhes que diferenciavam a sua atuação: "Viagens Alucinantes" (1980), "Corpos Ardentes" (1981), "Mistério no Gorki Park" (1983) e "Filhos do Silêncio" (1986) são alguns dos títulos que imortalizaram o nome de William Hurt, mundialmente. Apesar de sempre ter dado preferência a filmes mais fora do circuito comercial, trabalhando com produtores e diretores de fora do mainstream, e procurando alternativas inéditas e interessantes de personagem, Hurt acabou finalizando a sua carreira justamente com alguns 'blockbusters' da Marvel, talvez pelas propostas financeiras irrecusáveis nesse sentido: foi ele quem interpretou, até os últimos filmes dos Vingadores, o papel do Coronel Ross, que persegue o Hulk e tenta controlar os outros heróis com acordos de cooperação do governo americano. Faleceu em 2022, devido a um câncer de próstata.
John Cassavetes
Um dos grandes mitos do cinema independente norte-americano, Cassavetes talvez seja mais reconhecido como um realizador (produtor e diretor) que chegava a usar capital próprio para bancar seus filmes altamente pessoais e com intensas tramas psicológicas, muitos contando com a sua esposa Gena Rowlands como protagonista, e sendo indicado ao Oscar de 1974 pela obra-prima "Uma Mulher sob Influência", no qual além de diretor, também concorreu como ator coadjuvante. Como ator, quando mais jovem, teve as suas duas mais icônicas atuações nos sucessos de bilheteria "Os Doze Condenados" (1967) - ele era o rebelde soldado Victor - e em "O Bebê de Rosemary" (1968), de Polanski, em que faz o papel do egocêntrico e ganancioso marido da protagonista. Uma autêntica lenda, amplamente lembrado e reverenciado pela maioria dos atores e diretores de Hollywood. Falecido em 1989.
Christopher Walken
Respeitado pela comunidade artística norte-americana, Walken fez escolhas arriscadas em sua carreira, sempre indo mais no sentido do personagem anti-herói, mas suas atuações marcantes e caracterizações fortes o levaram a se tornar um dos rostos do movimento 'New Hollywood'. Despontou como o sofrido soldado Nick, no famoso drama de guerra "O Franco Atirador" (1978), do diretor Michael Cimino. Logo em seguida, continuando a parceria com Cimino, fez com ele o polêmico e malfadado faroeste "O Portal do Paraíso" (1980). Em 1983, sob a batuta de David Cronenberg, mais um papel marcante, como o professor que passa a ter poderes paranormais em "A Hora da Zona Morta", baseado na obra de Stephen King. Mais recentemente, Walken tem sido reverenciado pelos cineastas com pontas e papéis coadjuvantes marcantes, como em "Pulp Fiction" (1994), de Quentin Tarantino, e "Prenda-me se for Capaz" (2002), de Steven Spielberg.
Bruce Dern
Egresso de uma turminha da pesada de jovens atores nos anos 60, que incluía Jack Nicholson, Harry Dean Stanton, Dean Stockwell e outros, Dern se tornaria um dos símbolos da contracultura, ao estrelar filmes como "Busca Alucinada" (1968) e "A Noite dos Desesperados" (1969). Ao lado de Peter Fonda, Dennis Hopper e o próprio Nicholson, Dern se estabeleceu como uma das principais caras da Nova Hollywood, indo sempre no sentido de papéis diferentes e não convencionais. Foi homenageado por Tarantino, seu fã, com uma ponta em "Era Uma Vez em Hollywood" (2019), como o cego e esclerosado dono do Spahn Ranch.
Michael York
Atualmente anda meio esquecido, mas York é um ator inglês com um trabalho de grande envergadura ao longo das décadas de 60, 70, 80, e até na atualidade (com alguns pequenos trabalhos em séries e TV). Assim como seus colegas de geração, sempre voltava ao teatro para se reciclar. Teve grande destaque na versão de Franco Zeffireli para "Romeu e Julieta", de 1969, como Logan, na ficção científica "Fuga do Século 23" (1976), e como D'Artagnan, na versão de "Os Três Mosqueteiros" (1977), de Richard Lester.
Malcolm McDowell
O maior êxito da carreira de Malcolm, ainda jovem, basta olharmos para uma certa expressão surtada dele, e logo já sabemos qual é: o delinquente Alex DeLarge na versão cinematográfica aclamadíssima (e polêmica) de "Laranja Mecânica" (1971), do grande Stanley Kubrick. Apesar desse enorme sucesso que o catapultou para a fama, Malcolm se manteve fiel a suas origens, e nunca se preocupou em ficar procurando papéis que o mantivessem naquela mesma linha de interpretação, ou que tentassem forçosamente repetir êxito. Continuou participando de montagens no teatro, e além do filme de Kubrick, ainda teve outros momentos de protagonismo celebrados nas telonas, como no clássico da contracultura "Se..." (1969, rodado antes de 'Laranja'), "Um Homem de Sorte" (1973), na aventura baseada em H.G. Wells sobre viagem no tempo, "Um Século em 43 Minutos" (1978), e em "A Marca da Pantera" (1983). Também se dedicou a diversos projetos e séries na TV inglesa.
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