sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

FLEETWOOD MAC E OS MENINOS DE DEUS

 

Era 15 de fevereiro de 1971, quando o cultuado grupo britânico Fleetwood Mac chegou a Los Angeles para uma apresentação que fariam de noite, no famoso clube Whiskey A-Go-Go. A banda estava passando por uma fase de transição, desde a saída de seu mais importante membro original e mentor, o guitarrista Peter Green, no ano anterior, e mudando elementos de seu som original, o blues, para texturas mais pop e variadas. Restara para os outros dois guitarristas remanescentes, Jeremy Spencer e Danny Kirwan, segurar a barra.

Da dupla, o mais interessante era Spencer. Excêntrico e introvertido, podia ser realmente brilhante em vários momentos, especialmente no palco, quando engatilhavam covers de seu ídolo Buddy Holly, que ele sabia emular tão bem, ou nas estendidas jams de blues das antigas, onde ele viajava nos solos. Mas Spencer vinha se tornando cada vez mais estranho e distante à medida que o Fleetwood Mac progredia em novos e diferentes passos em sua trajetória. Com a entrada recente da cantora e tecladista Christine McVie (que logo iria se firmar como uma das figuras principais da nova formação e tomar a dianteira), Spencer se tornara arredio, parecia sentir saudades dos tempos pioneiros do grupo, de quando as coisas eram mais simples e não havia tantas trocas de membros, e começou a falar sobre pressentimentos e cismas, dizendo que sentia "nuvens negras" se aproximando da banda. Óbvio que as substâncias lisérgicas, uma constante a partir dos primeiros êxitos da banda, já estava também deixando suas marcas nele, uma alma sensível e muito reflexiva.

Jeremy Spencer, na época do Fleetwood Mac

A gota d'água ocorrera um pouco antes dessa nova turnê americana do Fleetwood, quando um grande terremoto originado da famosa falha de San Andreas atingiu Los Angeles. Spencer - ainda perturbado devido a uma bad trip de mescalina que tivera algumas semanas antes, segundo membros da banda - não só reclamava que não conseguia mais cantar e tocar bem como antigamente, como alertava seus companheiros de que deveriam cancelar tudo, todos os shows, pois aquele era um sinal de que eles iriam morrer caso prosseguissem com a tour.

O cara estava, definitivamente, em um frágil e delicado estado mental.

Naquele dia do show no Whiskey, Spencer saiu do hotel em que estavam, avisando a equipe da banda que iria dar uma olhada em uma livraria de que ele ouvira falar na Hollywood Boulevard, e ainda voltaria a tempo da passagem de som. Mas ele desapareceu. O show daquela noite teve que ser cancelado e membros da banda, junto com o empresário Clifford Davis, iniciaram uma desesperada busca pelo guitarrista, notificando a polícia e comunidade local, pensando que o pior pudesse ter acontecido.

Spencer reapareceria apenas alguns dias depois, já totalmente mudado e absolutamente decidido a não mais acompanhar o Fleetwood Mac. Cortara os longos cabelos e tinha agora um visual despojado, com roupas velhas e gastas, visto que doara as suas garbosas vestimentas de roqueiro e os 200 dólares que ele tinha na carteira para os seus "novos amigos". Ele alegara que, ao sair para a livraria, fora abordado por um rapaz chamado Apollos, que com uma conversa envolvente e angelical, repleta de simbologias bíblicas, o convidou para conhecer um grupo de pessoas, em uma missão próxima dali. Mal imaginava ele que estaria prestes a entrar em contato com os Meninos de Deus (Children of God).

Momento de louvor do Children of God, nos anos setenta

Hoje conhecidos como The Family International, o Children of God é um movimento religioso (para muitos, seita) criado em 1968, pelo seu mentor original, David Berg. Inicialmente derivado de discussões sobre como o amor de Jesus era a gênese do conceito de flores e paz divulgado pelos hippies, atraiu centenas de jovens desse segmento social em sua origem.

Segregacionistas e bastante polêmicos, eles começaram como um grupo evangélico nos moldes tradicionais, com pregações da Bíblia, teorias sobre apocalipse, fim do mundo e salvação, assim como em outras agremiações. Num primeiro momento, você poderia se referir a eles como "os crentes hippies". Se referiam ao governo e à sociedade tradicional, as pessoas de fora, como "o sistema", criando uma bolha de membros que foram se isolando em comunidades e residências fechadas, e assim cultivando o sentimento de se tornarem uma autêntica "família". 

O guru David Berg, em pose pronta para executar a "missão"

O problema é que, ao longo dos anos 70, isso desembocou nas práticas que tornariam os Meninos de Deus tão famigerados: o sexo entre seus membros passa a se tornar super estimulado, com forte incentivo e indução às relações incestuosas, e como forma de atrair novos fieis, o grupo passa a utilizar a chamada "prostituição religiosa", com a prática do flirty fishing: a "pescaria do amor", em que geralmente mulheres do grupo seduziam e buscavam a conversão de novos fieis através do sexo. David Berg, o fundador, editava e enviava para todos os lares comunitários do grupo as 'Cartas de Mo' - publicações com preceitos e regras básicas que, com o tempo, se transformaram em verdadeiros manuais ilustrados pornográficos, pregando a liberalidade sexual de uma forma chocante para os padrões habituais. Para eles, o sexo livre e sem fronteiras era da obra de Deus.

Página de uma das 'Cartas de Mo', passando a palavra: "Cheguem junto, garotos! Se divirtam!"

Em 2007, Noah Thomson, jovem dissidente criado no Meninos de Deus, filmou o documentário Children of God: Lost and Found, atualmente disponível na HBO Max (assista enquanto puder, pois o streaming vai passar por mudanças). É um registro revelador de como funciona uma lavagem cerebral religiosa, intensa e devastadora. Através dele, sabemos que diversos ex-membros desenvolveram depressão e distúrbios psicológicos ao saírem. Também pagaram um alto preço em suas vidas pessoais e profissionais, pois como eram todos criados em um regime comunitário fechado e exclusivo, não tiveram uma formação escolar e acadêmica necessária para desenvolverem boas carreiras. Tentaram seguir e criar famílias fora da "Família", mas o peso de suas lembranças com abusos sexuais infantis e situações ofensivas levaram muitos ao ato extremo do suicídio. É o que aconteceu com o jovem Abe, aos 27 anos, deixando mulher e 2 filhos. Outro caso terrível, exibido na película, mostra que o próprio enteado do fundador David Berg, Davidito, alguns anos depois de ter abandonado o Meninos de Deus, desenvolveu uma psicose maníaco-depressiva tão séria, que procurou a sua ex-babá na seita (Angela Smith), e a matou com requintes de crueldade, para logo em seguida dar cabo de sua própria vida, com um tiro na cabeça.

Noah Thomson no lançamento de seu documentário sobre o Children of God

O realizador do filme, Noah, mostra ele mesmo tentando diversas vezes marcar um encontro com a sua mãe, para conversarem sobre a influência do culto em suas vidas. Tentativas infrutíferas, que pioram quando ela fica sabendo que ele está rodando um documentário sobre o Children of God. Noah fica desolado, a sua própria mãe o segrega e recrimina, pois agora ele é "de fora", e pode prejudicar a imagem do grupo. É de dar dó. 

E detalhe: o Meninos de Deus acabou criando inúmeros grupos e ramificações na Ásia e na América do Sul a partir do final dos anos 1970 e década de 1980, que foi a época em que as primeiras denúncias contra o grupo começaram a pipocar na Justiça americana, e várias de suas comunidades foram se evadindo para além dos EUA. O próprio Noah passou grande parte de sua infância numa comunidade do Brasil, e mostra no documentário uma malfadada tentativa sua de reencontrar seus remanescentes por aqui, indo até parar no Rio de Janeiro...

Após alguns anos de polêmicas na Justiça norte-americana, com uma série de pesadas acusações contra o Meninos de Deus por todas as situações envolvendo abusos de menores e assédios, a cúpula mais recente do grupo se comprometeu a seguir preceitos mais moderados, e "excomunicar" (ou excomungar) membros antigos envolvidos em tais práticas, sob a alegação de que foram entendimentos equivocados e desvirtuados, originados apenas de uma parte deu seus fieis. Assim, permanece sendo um movimento religioso que, a despeito de benefícios e obras sociais de grande importância já realizadas, que ajudaram milhares de pessoas carentes, acabou tendo a imagem manchada, ao longo das décadas, por episódios sinistros.

Jeremy Spencer, em foto de 2012


Jeremy Spencer and The Children: disco lançado em 1972

É de se imaginar o sofrimento e caos mental que Jeremy Spencer estava passando, naquele fatídico dia de 1971, para ter se agarrado ferrenhamente ao culto, a ponto de ter largado toda a sua vida pregressa para se apoiar e ficar nele. Chegou a montar uma nova banda ('Jeremy Spencer & the Children'), que não fez muito sucesso fora dos círculos do grupo, mas criou família, viajou o mundo ajudando a "pregar a palavra", e pelo menos se tornou um homem feliz, até hoje tocando sua guitarra e fazendo alguns shows por aí em nome da crença, como um autêntico missionário. Já morou até no Brasil durante o período 1975-77 e tocou por aqui com seu grupo, algumas vezes! Naquele ano, uma versão brasileira da banda, apropriadamente chamada Meninos de Deus, fez bastante sucesso com a música "Aleluia", que chegou a ser exibida no programa musical Globo de Ouro, da Rede Globo. Apesar de não ter Jeremy Spencer na apresentação, ele era citado pelo grupo como um dos seus arranjadores. Veja só:


E pra terminar, a título de curiosidade, confira aqui uma reportagem cavernosa do Fantástico de 1978, sobre a detenção de alguns membros do Meninos de Deus na Bahia, naquele ano, por conta da apreensão de material gráfico da seita, considerado pornográfico e ofensivo pelas autoridades da época, após uma denúncia. Saca só o olhar vidrado de alguns dos fieis entrevistados e... bem, tire as suas próprias conclusões.



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