Quando morreu o cineasta norte-americano Richard Donner (1930 - 2021), um crítico de cinema de que gosto escreveu em uma coluna online que eu lia muito, algo mais ou menos assim, do tipo "se vai um dos maiores operários padrão do cinema americano".
Os filmes de Donner carregam sim, a sua marca. Talvez, não de uma forma tão direta e contundente, ou até mesmo espalhafatosa, como os de outros diretores, que sempre se preocuparam mais com "estilo". Mas o cinema de Donner é feito de coisas que você percebe no esmero técnico da filmografia. A busca pelos melhores close-ups. Os enquadramentos perfeitos. A quase que matematicamente estudada e analisada condução dos atores nas expressões corporais perfeitamente encenadas, em confluência com a condução do roteiro. Ele era um autêntico "esteta da arte de filmar", buscando a perfeição da narrativa, o seu casamento com a imagem perfeita, por mais simples e mundana que a cena fosse. Mas sempre um autêntico esteta. Operário padrão? Prefiro argumentar que estava além disso, um pouco mais acima. Arquiteto de sonhos.
Podemos dizer, no entanto, que estava mais para "arquiteto de pesadelos", quando começou: vindo do sempre acirrado mercado das séries de televisão, sua carreira começou a deslanchar mesmo na sétima arte quando, ainda verde na coisa, topou o desafio do produtor Harvey Bernhard de adaptar para as telonas, um enredo no qual o roteirista David Seltzer vinha trabalhando desde 1972, baseado em leituras bíblicas, e que se tornaria um dos mais clássicos e lembrados filmes de terror de todos os tempos - A Profecia (The Omen, 1976).
Unindo cantos gregorianos a uma atmosfera lúgubre, sufocante e quase gótica, em uma grande parte da ambientação do filme, Donner conseguiu criar uma das mais pessimistas e aterradoras alegorias do niilismo típico dos anos 70, filmando com capricho o início da sanguinária e diabólica trajetória de Damien, o menino da marca da besta gravada na cabeça, o vindouro anticristo que surgia para comandar a humanidade e anunciar o seu fim, e aperfeiçoando o clima que envolveria futuras tramas assustadoras, como A Entidade (2012) e a série Premonição (2000 a 2011), que bebem deslavadamente de sua fonte.
O excelente resultado nas bilheterias chamou imediatamente a atenção dos executivos dos estúdios da Warner Brothers - e também por causa que a chance de filmar e lançar 'A Profecia' havia lhes escorrido por entre os dedos, o projeto havia sido inicialmente oferecido a eles mas ficaram enrolando para aceitar, então veio a 20th Century Fox e levou a melhor. Mas agora eles iriam pelo menos pegar o seu diretor.
Desde 1973, vinha perambulando por vários estúdios uma ideia para se adaptar, de uma forma diferente e mais portentosa, um dos grandes super-heróis de todos os tempos. O flerte entre cinema e quadrinhos era antigo - vinha das velhas cine-séries dos anos 1940 e 50 que já traziam, de uma maneira ainda que simplificada, personagens como Batman, Zorro, Capitão América, e o hoje esquecido Fantasma. Mas, um deles, que já havia sido seriado de cinema, e depois de televisão, continuava instigando todos como o maior dos desafios para ser filmado com realismo e emoção condizentes com as HQs: o Super-Homem.
Em 1975, os produtores poloneses Alexander e Ilya Salkind (pai e filho), mais Pierre Spengler, adquirem da DC Comics os direitos para o cinema do personagem. Um ano depois, o celebrado escritor Mario Puzo (de O Poderoso Chefão) já está contratado e começa a escrever um pré-roteiro para um filme com o personagem. E então em 1977, com a Warner Bros. na parada, entrando com tudo para injetar todo o dinheiro necessário, resolvem chamar aquele diretor de 'A Profecia' para encarar e dirigir aquela loucura. Richard Donner estava, finalmente, no projeto. Com 55 milhões de dólares no orçamento, Superman - O Filme, estava a caminho.
Vários documentários já mostraram isso: a palavra chave para o projeto capitaneado por Donner era verossimilhança. Ele não queria nada menos do que um genuíno senso de realidade na história do Homem de Aço, que fizesse com que todos que assistissem o filme acreditassem de cara que aquilo que estava nas telas estava realmente acontecendo. Os efeitos especiais tinham que ser os melhores possíveis. As cenas de vôo do herói - uma barreira técnica que hoje chega a parecer piada, com tantos efeitos digitais de que o cinema dispõe - tinham que ser as mais perfeitas e fieis possíveis, utilizando apenas efeitos práticos de cabos, câmeras e chroma key, mas criando a sensação instantânea de um vôo real. Dentro disso, nasceu o mote, a frase de efeito que marcaria o lançamento do filme: "Você vai acreditar que o homem pode voar".
E quem era esse Super-Homem? Mais uma vez, nossos créditos a Donner - queriam super astros da época para interpretar o herói. Queriam Redford, queriam Newman. Queriam Travolta! Até Clint Eastwood e a estrela em ascensão Sylvester Stallone, pasmem, foram cogitados. Mas Donner bateu o pé: tinha que ser alguém desconhecido, cujo rosto não lembrasse nenhum outro papel no cinema, e tinha que ter o tom do herói. O carisma, a expressão de esperança e bom mocismo de alguém que nasceu para fazer o bem... E que ao mesmo tempo que poderia ser esse paladino moral, poderia ser também um patético e desastrado repórter, como o alter-ego Clark Kent. Bola dentro na escolha do quase estreante Christopher Reeve, vindo de pequenas participações em filmes e séries de TV. Até hoje, é tido como a mais leal encarnação do Homem de Aço nas telas do cinema.
Sabendo driblar com maestria todas as dificuldades de um elenco megaestelar - que tinha Gene Hackman com o arqui-inimigo Lex Luthor, e o difícil Marlon Brando como o pai biológico do Superman, Jor-El, em um dos polêmicos papéis mais curtos e bem pagos da história da sétima arte - Donner levantou a moral da equipe, soube comandar um espetáculo de mirabolantes efeitos visuais e trilha sonora épica (do mago John Williams), e criou uma atmosfera de sonho que, apesar de realista, é ao mesmo tempo um dos mais bem feitos contos de fantasia em celuloide da era moderna, que consegue de fato remeter os fãs ao clima das velhas histórias em quadrinhos. Lançado em dezembro de 1978, Superman estourou nas bilheterias, e se tornou rapidamente um clássico do cinema de ação e aventura, abrindo definitivamente o filão dos filmes de heróis.
Só por essas duas obras-primas setentistas (A Profecia e Superman), o nome de Donner já estaria eternamente inscrito na galeria dos grandes diretores. Mas de forma alguma ele parou por aí. Fez mais, muito mais.
Fez o filme mais Spielberg que Steven Spielberg jamais fez (apesar de ter o próprio como produtor), Os Goonies (1984), fantasia infanto-juvenil de caça ao tesouro embalada pela música de Cindy Lauper, que é uma das pérolas dos anos 80, referência direta de tudo que a garotada da época considerava filme jovem e legal. Brincou com o gênero capa-e-espada e magia medieval, unindo o trio mais improvável de atores da época (Rutger Hauer, Matthew Broderick e Michelle Pfeiffer), no inesquecível Ladyhawke - O Feitiço de Áquila (1985), onde mais uma vez prova que sabia construir histórias encantadas em ritmo de sonhos.
E os fãs de George Miller que me perdoem, mas que Mad Max, que nada, isso era coisa lá da época australiana: quem realmente ergueu a carreira de Mel Gibson no cinemão, como um super-astro americano e mundial, milionário e plenamente reconhecido, foi Richard Donner, graças à impagável série de filmes policiais Máquina Mortífera (Lethal Weapon, de 1987 a 1998).
Nesses filmes, Gibson foi eternizado como o aloprado detetive Martin Riggs, veterano do Vietnam com tendências maníacas, que se junta ao quase aposentado tenente Roger Murtaugh (Danny Glover, magistral), em casos para lá de perigosos e literalmente explosivos. A parceria Riggs/Murtaugh é uma das químicas mais incríveis e engraçadas que o cinema já urdiu, a sintonia entre Gibson e Glover é uma daquelas coisas que só acontecem cerca de uma vez por década, e esses filmes elevaram a carreira de Mel Gibson a um nível tão alto e prestigiado, que ele nunca teria sido o que se tornou, sem Donner. A colaboração entre ambos ainda se repetiria no divertido faroeste Maverick (1994, com Jodie Foster), e no thriller Teoria da Conspiração (1997, com Julia Roberts).
Em todos esses filmes, e vários outros de sua prolífica trajetória, Donner era sim um diretor distinto, e que marcou sua obra com um bom gosto e apuro técnico formidáveis. Só para terminar, fica aqui a seguir, de homenagem, um dos mais belos registros de sua incomparável direção de atores e uso certeiro das câmeras e enquadramentos: a famosa cena, em Superman - O Filme, em que o herói travestido de Clark se solta, tenta revelar para a amada Lois a sua verdadeira identidade, mas acaba perdendo a coragem e voltando a ser Clark Kent. Maravilha de cena.
Palmas para Chris Reeve. E palmas para o grande Richard Donner. 👏👏👏
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