quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

DONNER: OPERÁRIO PADRÃO... ARQUITETO DE SONHOS!

 

Quando morreu o cineasta norte-americano Richard Donner (1930 - 2021), um crítico de cinema de que gosto escreveu em uma coluna online que eu lia muito, algo mais ou menos assim, do tipo "se vai um dos maiores operários padrão do cinema americano". 

Donner, que nos deixou aos 91, tinha a seu favor o legado de uma carreira produtivíssima, e se formos analisar a grosso modo, sim, ele era o típico diretor de cinemão industrial e comercial, linha de produção, talvez num estilo meio antítese do que vários outros diretores de sua geração eram, aqueles mais "cabeça" e "autorais" (Scorcese, Coppola, DePalma e Friedkin, só pra citar alguns). Ei, então você está querendo nos dizer que a obra de Donner não tinha a sua marca, a sua "cara"? Ele não era um verdadeiro 'autor'? Olha... não é bem assim.

Os filmes de Donner carregam sim, a sua marca. Talvez, não de uma forma tão direta e contundente, ou até mesmo espalhafatosa, como os de outros diretores, que sempre se preocuparam mais com "estilo". Mas o cinema de Donner é feito de coisas que você percebe no esmero técnico da filmografia. A busca pelos melhores close-ups. Os enquadramentos perfeitos. A quase que matematicamente estudada e analisada condução dos atores nas expressões corporais perfeitamente encenadas, em confluência com a condução do roteiro. Ele era um autêntico "esteta da arte de filmar", buscando a perfeição da narrativa, o seu casamento com a imagem perfeita, por mais simples e mundana que a cena fosse. Mas sempre um autêntico esteta. Operário padrão? Prefiro argumentar que estava além disso, um pouco mais acima. Arquiteto de sonhos.

A Profecia (1976)

Podemos dizer, no entanto, que estava mais para "arquiteto de pesadelos", quando começou: vindo do sempre acirrado mercado das séries de televisão, sua carreira começou a deslanchar mesmo na sétima arte quando, ainda verde na coisa, topou o desafio do produtor Harvey Bernhard de adaptar para as telonas, um enredo no qual o roteirista David Seltzer vinha trabalhando desde 1972, baseado em leituras bíblicas, e que se tornaria um dos mais clássicos e lembrados filmes de terror de todos os tempos - A Profecia (The Omen, 1976).

Unindo cantos gregorianos a uma atmosfera lúgubre, sufocante e quase gótica, em uma grande parte da ambientação do filme, Donner conseguiu criar uma das mais pessimistas e aterradoras alegorias do niilismo típico dos anos 70, filmando com capricho o início da sanguinária e diabólica trajetória de Damien, o menino da marca da besta gravada na cabeça, o vindouro anticristo que surgia para comandar a humanidade e anunciar o seu fim, e aperfeiçoando o clima que envolveria futuras tramas assustadoras, como A Entidade (2012) e a série Premonição (2000 a 2011), que bebem deslavadamente de sua fonte.

O excelente resultado nas bilheterias chamou imediatamente a atenção dos executivos dos estúdios da Warner Brothers - e também por causa que a chance de filmar e lançar 'A Profecia' havia lhes escorrido por entre os dedos, o projeto havia sido inicialmente oferecido a eles mas ficaram enrolando para aceitar, então veio a 20th Century Fox e levou a melhor. Mas agora eles iriam pelo menos pegar o seu diretor.

Desde 1973, vinha perambulando por vários estúdios uma ideia para se adaptar, de uma forma diferente e mais portentosa, um dos grandes super-heróis de todos os tempos. O flerte entre cinema e quadrinhos era antigo - vinha das velhas cine-séries dos anos 1940 e 50 que já traziam, de uma maneira ainda que simplificada, personagens como Batman, Zorro, Capitão América, e o hoje esquecido Fantasma. Mas, um deles, que já havia sido seriado de cinema, e depois de televisão, continuava instigando todos como o maior dos desafios para ser filmado com realismo e emoção condizentes com as HQs: o Super-Homem. 

Em 1975, os produtores poloneses Alexander e Ilya Salkind (pai e filho), mais Pierre Spengler, adquirem da DC Comics os direitos para o cinema do personagem. Um ano depois, o celebrado escritor Mario Puzo (de O Poderoso Chefão) já está contratado e começa a escrever um pré-roteiro para um filme com o personagem. E então em 1977, com a Warner Bros. na parada, entrando com tudo para injetar todo o dinheiro necessário, resolvem chamar aquele diretor de 'A Profecia' para encarar e dirigir aquela loucura. Richard Donner estava, finalmente, no projeto. Com 55 milhões de dólares no orçamento, Superman - O Filme, estava a caminho.

Superman, o filme (1978)

Vários documentários já mostraram isso: a palavra chave para o projeto capitaneado por Donner era verossimilhança. Ele não queria nada menos do que um genuíno senso de realidade na história do Homem de Aço, que fizesse com que todos que assistissem o filme acreditassem de cara que aquilo que estava nas telas estava realmente acontecendo. Os efeitos especiais tinham que ser os melhores possíveis. As cenas de vôo do herói - uma barreira técnica que hoje chega a parecer piada, com tantos efeitos digitais de que o cinema dispõe - tinham que ser as mais perfeitas e fieis possíveis, utilizando apenas efeitos práticos de cabos, câmeras e chroma key, mas criando a sensação instantânea de um vôo real. Dentro disso, nasceu o mote, a frase de efeito que marcaria o lançamento do filme: "Você vai acreditar que o homem pode voar".

Donner dirige Margot Kidder e Christopher Reeve em cena de Superman (1978)

E quem era esse Super-Homem? Mais uma vez, nossos créditos a Donner - queriam super astros da época para interpretar o herói. Queriam Redford, queriam Newman. Queriam Travolta! Até Clint Eastwood e a estrela em ascensão Sylvester Stallone, pasmem, foram cogitados. Mas Donner bateu o pé: tinha que ser alguém desconhecido, cujo rosto não lembrasse nenhum outro papel no cinema, e tinha que ter o tom do herói. O carisma, a expressão de esperança e bom mocismo de alguém que nasceu para fazer o bem... E que ao mesmo tempo que poderia ser esse paladino moral, poderia ser também um patético e desastrado repórter, como o alter-ego Clark Kent. Bola dentro na escolha do quase estreante Christopher Reeve, vindo de pequenas participações em filmes e séries de TV. Até hoje, é tido como a mais leal encarnação do Homem de Aço nas telas do cinema.

Gene Hackman e Christopher Reeve em cena de Superman (1978)

Sabendo driblar com maestria todas as dificuldades de um elenco megaestelar - que tinha Gene Hackman com o arqui-inimigo Lex Luthor, e o difícil Marlon Brando como o pai biológico do Superman, Jor-El, em um dos polêmicos papéis mais curtos e bem pagos da história da sétima arte - Donner levantou a moral da equipe, soube comandar um espetáculo de mirabolantes efeitos visuais e trilha sonora épica (do mago John Williams), e criou uma atmosfera de sonho que, apesar de realista, é ao mesmo tempo um dos mais bem feitos contos de fantasia em celuloide da era moderna, que consegue de fato remeter os fãs ao clima das velhas histórias em quadrinhos. Lançado em dezembro de 1978, Superman estourou nas bilheterias, e se tornou rapidamente um clássico do cinema de ação e aventura, abrindo definitivamente o filão dos filmes de heróis.

Cartaz de lançamento na época: "Você vai acreditar que um homem pode voar"

Só por essas duas obras-primas setentistas (A Profecia e Superman), o nome de Donner já estaria eternamente inscrito na galeria dos grandes diretores. Mas de forma alguma ele parou por aí. Fez mais, muito mais.

Fez o filme mais Spielberg que Steven Spielberg jamais fez (apesar de ter o próprio como produtor), Os Goonies (1984), fantasia infanto-juvenil de caça ao tesouro embalada pela música de Cindy Lauper, que é uma das pérolas dos anos 80, referência direta de tudo que a garotada da época considerava filme jovem e legal. Brincou com o gênero capa-e-espada e magia medieval, unindo o trio mais improvável de atores da época (Rutger Hauer, Matthew Broderick e Michelle Pfeiffer), no inesquecível Ladyhawke - O Feitiço de Áquila (1985), onde mais uma vez prova que sabia construir histórias encantadas em ritmo de sonhos. 

Os Goonies (1984)



O Feitiço de Áquila (1985)

E os fãs de George Miller que me perdoem, mas que Mad Max, que nada, isso era coisa lá da época australiana: quem realmente ergueu a carreira de Mel Gibson no cinemão, como um super-astro americano e mundial, milionário e plenamente reconhecido, foi Richard Donner, graças à impagável série de filmes policiais Máquina Mortífera (Lethal Weapon, de 1987 a 1998). 

Nesses filmes, Gibson foi eternizado como o aloprado detetive Martin Riggs, veterano do Vietnam com tendências maníacas, que se junta ao quase aposentado tenente Roger Murtaugh (Danny Glover, magistral), em casos para lá de perigosos e literalmente explosivos. A parceria Riggs/Murtaugh é uma das químicas mais incríveis e engraçadas que o cinema já urdiu, a sintonia entre Gibson e Glover é uma daquelas coisas que só acontecem cerca de uma vez por década, e esses filmes elevaram a carreira de Mel Gibson a um nível tão alto e prestigiado, que ele nunca teria sido o que se tornou, sem Donner. A colaboração entre ambos ainda se repetiria no divertido faroeste Maverick (1994, com Jodie Foster), e no thriller Teoria da Conspiração (1997, com Julia Roberts).

Danny Glover e Mel Gibson, em Máquina Mortífera (1987)

Em todos esses filmes, e vários outros de sua prolífica trajetória, Donner era sim um diretor distinto, e que marcou sua obra com um bom gosto e apuro técnico formidáveis. Só para terminar, fica aqui a seguir, de homenagem, um dos mais belos registros de sua incomparável direção de atores e uso certeiro das câmeras e enquadramentos: a famosa cena, em Superman - O Filme, em que o herói travestido de Clark se solta, tenta revelar para a amada Lois a sua verdadeira identidade, mas acaba perdendo a coragem e voltando a ser Clark Kent. Maravilha de cena.

Palmas para Chris Reeve. E palmas para o grande Richard Donner. 👏👏👏



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sábado, 17 de fevereiro de 2024

UM GUITARRISTA INJUSTIÇADO

 

Em inúmeras listas de melhores guitarristas de todos os tempos, é muito comum você encontrar nomes icônicos como Jeff Beck, Eric Clapton, Jimmy Page, David Gilmour e vários outros. Jimi Hendrix e Eddie Van Halen então... esses eu nem falo, estão lá no topo dos topos para muita gente.

Mas tem um nome que, caso você faça parte de um grupo mais seleto e com predileções musicais rebuscadas, não pode nunca (mas nunca mesmo) faltar. É o lendário mestre irlandês Rory Gallagher.

Nascido em 2 de março de 1948, em Ballyshannon, desde cedo se mostrou prodigioso e contagiado pela música, e como tantos de sua geração, mais especificamente os puros sons do blues de americanos como Elmore James, Muddy Waters e Howlin' Wolf. Aos 9 anos de idade, comprou seu primeiro violão. Com 12, venceu uma competição de jovens talentos na cidade de Cork, e com o dinheiro ganho comprou sua primeira guitarra elétrica. Mas aos 15, iria se deparar com a sua grande paixão, que iria o acompanhar por toda a sua vida: uma Fender Stratocaster usada, de segunda mão, mas que segundo Rory, tinha o som e o timbre com os quais ele sempre havia sonhado. 

Resultado: sim, ele nunca mais se separaria dela e, apesar de ocasionalmente utilizar uma ou outra guitarra, era sempre com a sua velha Fender, toda gasta e descascada, que ele sempre 'viajava' em desvairados riffs e solos em todos os seus shows ao vivo e gravações. Você pode vê-la nas fotos acima - e vai vê-la também na quase totalidade das fotos e filmagens com Rory tocando. Eram inseparáveis.

O mais impressionante de tudo era que a sonoridade flamejante e altamente criativa de Rory nas seis cordas não tinha nenhum pedal ou console de efeitos por trás: era simplesmente ele, a guitarra e um bom amplificador, com um bom volume e alguma distorção natural e valvulada. Pode parecer mentira, mas toda a sonzeira que você ouve espirrando da guitarra de Rory (velha e simples, ainda por cima) vinha de estruturas de acordes e solos inventivos que produziam um efeito natural, vindo da própria inspiração do guitarrista.

A banda que projetou Rory para o cenário mundial, os mais velhos devem saber, foi o lendário Taste, um power trio pesadaço de músicos irlandeses, no melhor estilo do Cream (de Eric Clapton), e que Rory formou, inicialmente com Eric Kitteringham (baixo) e Norman Damery (bateria), depois substituídos por Richard McCracken (baixo) e John Wilson (bateria). Com o grupo, gravou dois espetaculares álbuns de estúdio ('Taste', de 1969, e 'On the Boards', de 1970), excursionaram por toda a Europa, também abrindo shows para o Blind Faith em 1969, e tiveram o seu grande momento de glória no lendário Festival da Ilha de Wight, em 1970, um pouco antes de se separarem. Confira essa magistral performance de "What's Goin' On", que é desse evento:


Como se pode perceber, ao contrário da maioria de outros grandes guitarristas, Rory era também um magistral cantor, dono de um tom de voz enérgico e rasgado, e repleto daquela rouquidão blueseira que soa tão bem em suas músicas.

Richard McCracken (baixo), John Wilson (bateria) e Rory Gallagher (guitarra): a formação mais famosa do Taste

A partir de 1971, ele monta a sua própria banda, a Rory Gallagher Band, que apesar de diversas formações ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, sempre tem como parceiro fixo o baixista Gerry McAvoy, que se tornaria um dos melhores amigos de Rory, e que daria um dos melhores testemunhos sobre quem foi o cara: "Permaneci tocando com Rory durante tanto tempo porque tínhamos uma conexão incrível enquanto tocávamos, como se estivéssemos sempre adivinhando o que estava na mente do outro. Apesar de perfeccionista, ele sempre foi um ser humano amável, muito humilde, e que despertava um entrosamento bom com a maioria dos músicos com quem tocava."

Taste c/ Rory Gallagher: Morning Sun

Realmente, um cara simples: até na indumentária, Rory não se parecia em nada com um "rock star" convencional e, a despeito de sempre ter usado cabelo grande, não era chegado em figurinos espalhafatosos e nada que chamasse muito a atenção. Assim como em relação a sua guitarra, nunca abandonou o guarda roupa básico que poderia até servir de inspiração para a futura geração "grunge': muitos jeans velhos, camisas de manga listadas, com ou sem flanela, e jaquetas e coletes baratos.

Vários petardos memoráveis foram gravados por Rory na principal etapa de sua carreira, como os discos 'Tattoo' (1973), ou 'Calling Card' (1976), mas se você perguntar para todos os seus admiradores qual foi um de seus maiores momentos, poucos deixarão de lado as performances ao vivo e matadoras de Rory, das quais o icônico álbum 'Irish Tour', de 1974, se constitui num dos mais perfeitos documentos da genialidade desse artista. Em músicas como "Too Much Alcohol" e a fantástica "Walk on Hot Coals", Rory parece singrar para outros mundos, outras dimensões, tamanho é o impacto sensorial que seus solos inebriantes promovem no ouvinte. 

Incansável, continuou produzindo bastante e prolificamente, até meados dos anos 90, quando em 1994, legítimo irlandês fã de um bom "caneco" que era, passa a padecer de problemas no fígado, que já estava pedindo arrego. Uma cirurgia de transplante marcada para abril do ano seguinte, 1995, acaba terminando com o resultado final que ninguém gostaria: Rory, já muito debilitado, não resiste a complicações da intervenção após algumas semanas internado, e parte desse mundo, deixando para trás toda uma legião de seguidores e sua querida Fender Stratocaster. No enterro, realizado em Cork em 15 de junho de 1995, pessoas da Irlanda inteira lotam a cerimônia do funeral para ovacionar Rory. Ele se torna praticamente um símbolo cultural irlandês.

Para quem gosta de um belo trabalho de guitarra, e não resiste a solos lancinantes e cheios de emoção, é compulsório que ouça e se delicie com o trabalho de Rory Gallagher, pelo menos alguma vez nessa vida.

Vamos terminando por aqui, deixando mais alguns registros para você testemunhar, e uma frase desse monstro das seis cordas, se justificando para um repórter, em 1982, sobre porque ele nunca trocou de guitarra e preferia ainda a sua velha e surrada Fender:

"Trocar para que se sempre foi minha boa companheira? Em time que está ganhando não se mexe, não é esse o ditado? Meus concertos e discos sempre foram ótimos com ela. Então... não, muito obrigado, prefiro continuar com a minha Fender mesmo."

Rory Gallagher - Laudromat (1971)



Rory Gallagher - Do You Read Me (1979)


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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

BOWIE IN BRAZIL*

 

Não é segredo pra ninguém, especialista ou estudioso sobre o mundo artístico pop, que a década dos anos 1970 foi "a década" de um rapaz loirinho e magricelo, com as pupilas diferentes de um olho para o outro por causa de uma briga de escola na adolescência, e que simplesmente reinventou o modo de se expressar, apresentar e personificar as mudanças de uma nova era que ali estava: David Robert Jones, mais conhecido como David Bowie (1947 - 2016).

Por mais que tenha tido os gigantes do rock pauleira caminhando sobre a terra (Led Zeppelin), os progressivos megalomaníacos da vida (Pink Floyd e outros), e as revoluções do punk e da disco music (Sex Pistols e Bee Gees, quase que lado a lado no mesmo período, abalando as estruturas), não há como negar: para muitos sobreviventes daqueles loucos anos, quando se pergunta "os anos 70 tem cara de que?", milhares vão falar: "cara de David Bowie".

Bowie se inventou, reinventou, e se reciclou diversas vezes ao longo da carreira, a ponto de merecer melhor do que ninguém a alcunha de "camaleão do rock", mas há um consenso geral de que a essência, o período mais prolífico de sua trajetória, foi mesmo nos anos 70, quando ele descobriu que podia ser vários 'personagens' (e ninguém, ao mesmo tempo), incorporando essas mudanças tanto musicalmente (as diversas mudanças de rota em sua música, ao longo dos anos), bem como poeticamente (as letras, inóspitas e viscerais, que continham observações certeiras sobre as mudanças sociais e de comportamento de toda uma geração).

E aí o interessante é quando a gente contrasta essa figura histórica e icônica com "o lado de baixo do lado de cá", o nosso pedação de planeta tropicaliente, pradarias brazucas, o Brasilzão... Você sabia que, apesar de nos anos 60, a febre dos Beatles (a Beatlemania) ter sido tão forte por aqui quanto em outros países lá fora, já nos anos 70, a Bowiemania - um intenso momento convulsivo pop, de grande alarde e avassalador, tanto nos EUA quanto na Europa - não foi tão lá essas coisas aqui entre nós?

Existem algumas hipóteses plausíveis para isso, hoje analisadas à luz do tempo, e além de pontuarmos algumas circunstâncias sobre a questão, vamos ainda comentar sobre as duas únicas vindas de Bowie ao Brasil para shows ao vivo. Nosso país ainda teve, pelo menos, o privilégio de receber o camaleão em duas oportunidades (1990 e 1997), antes de sua partida para outro plano, em 2016.


A repressão militar

Quando Bowie alcançou o megaestrelato, com o sucesso mundial do personagem e disco 'Ziggy Stardust' (1972 - para o Brasil, 1973, ano em que saiu por aqui), versando sobre a história de um alienígena que chega a Terra e se torna um rockstar - um verdadeiro fenômeno que poderia ser considerado o primeiro evento multimídia do rock, com shows que se misturavam a performances teatrais dele e de sua banda -devemos nos lembrar que o Brasil atravessava o período mais casca grossa da ditadura militar. Naquela época, "furar a bolha", ainda mais com um visual tão andrógino e transgressor como o que ele apresentava, com o seu personagem alienígena "que tocava guitarra com a mão canhota", era coisa para os fortes, bem tensa mesmo. Tinha que rolar um apoio fortíssimo da mídia, que nem sempre era condescendente. Para se ter uma ideia, o grupo Secos e Molhados, talvez um dos nossos maiores sucessos pop rock daqueles tempos, só conseguiu se impor graças a uma massiva divulgação da Rede Globo de Televisão, com clipes e a exposição do grupo na abertura original do programa Fantástico. Mesmo assim, sumidades como o falecido apresentador Chacrinha se manifestavam contra aquele visual e aquelas atitudes (danças e gestos considerados obscenos, e de tendências homossexuais). Em sua coluna em um jornal da época: "Esses garotos do Secos e Molhados, especialmente aquele cantor deles (Ney Matogrosso) tem um visual muito do bichano". O preconceito e o conservadorismo, aliados à confusão da própria gravadora (como veremos logo adiante), atrapalharam um pouco o lançamento e a divulgação do primeiro trabalho mais vigoroso e consistente de Bowie como artista, por aqui.


A desorganização das gravadoras

'The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars', o LP que catapultou Bowie, apareceu lá fora em 16 de junho de 1972. Aqui, houve um atrasinho... só de uns 6 meses! A versão nacional, pela gravadora RCA brasileira, vê a luz do dia apenas em janeiro de 1973, quando o burburinho sobre a Bowiemania já está comendo solta na Inglaterra e se proliferando cada vez mais nos EUA. Dali em diante, pelo menos, toda a discografia, seguindo com 'Alladin Sane' (1973), 'Diamond Dogs' (1974) e discos posteriores, sairia normalmente no Brasil, ainda que com alguns atrasinhos, ou pequenas alterações nas mixagens brazucas, que deixavam com a pulga atrás da orelha quem ouvia algum disco nas versões importadas. Mas alguns dos discos icônicos pré-era Ziggy do cantor, como o doidaço 'The Man Who Sold the World' (1970) e 'Hunky Dory' (1971, que continha as belíssimas "Changes" e "Life on Mars") nem tiveram cheiro de lançamento por aqui, a não ser já nos anos 1990, quando finalmente foram oficialmente lançados no Brasil, como parte de um pacote comemorativo da carreira de Bowie, pela Rykodisc. Antes disso, há apenas o registro do lançamento modesto de um compacto de Bowie em 1970, com aquele que foi seu primeiro hit comercial, "Space Oddity" - mas nem sinal do LP que continha a música, 'Man of Words/Man of Music'. Isso era o Brasil dos anos 70, onde nem se imaginava, nos delírios mais loucos, o que um dia poderia ser a internet! A partir de 1976, **a Rede Globo começa a incluir algumas músicas da fase soul de Bowie, mais dançantes, tanto na trilha sonora da novela Duas Vidas ("Golden Years") quanto em um dos discos da série de coletâneas 'Sua Paz Mundial', promovida pela Rádio Mundial AM, pertencente ao sistema Globo ("Sound and Vision") - e essas sim estouram nas paradas, tornando essa fase do artista muito mais reconhecida, no Brasil, do que as anteriores.

Sound and Vision (1977)


Golden Years (1976)

A "primeira turnê" frustrada

Bowie quase veio se apresentar no Brasil, em uma de suas fases áureas! Era para ter sido em 1974, época do trabalho de divulgação de seu álbum 'Diamond Dogs' e do hit "Rebel Rebel", e registros em suas biografias e diários mostram que realmente aconteceram negociações sérias para isso, mas que, infelizmente, não foram para frente. Ao invés disso, quem é que veio naquele ano? Alice Cooper, com suas cobras amestradas e show de horrores, no palco do Anhembi... no primeiro grande show internacional de rock em terras brasileiras. E acabou ficando mais popular do que Bowie por aqui. Talvez, se Bowie tivesse realmente vindo, fosse diferente. Mas... passada mais uma década, na outra finalmente o camaleão aportaria aqui.



Bowie in Brazil

Vamos colocar os pingos nos "i's": para toda uma geração mais recente, ali a partir da década dos anos 1980, David Bowie seria sinônimo de um artista com estilo mais dançante e technopop - o seu LP de maior vendagem comercial no Brasil seria, durante muitos e muitos anos, o 'Let's Dance' (1983), que é um disco de apelo extremamente pop, e que consagra Bowie como o padrinho e mentor de toda uma geração new wave que estará dominando as paradas até o finalzinho da década, gente como Duran Duran, Depeche Mode e Soft Cell inclusos. Era apenas mais uma das encarnações do cantor, que constantemente se reinventava, mas deixava ofuscada aquela imagem andrógina e roqueira dele que estourou com Ziggy Stardust e outras personas, lá nos anos setenta. Uma grande parte de seu trabalho mais contundente de eras anteriores ficaria perdida, e sobrevivendo apenas na memória dos fãs mais aguerridos (ou "das fãs" aliás, visto que no Brasil, por uma questão visual e de costumes, durante muito tempo Bowie tinha mais fãs mulheres do que homens). Tirando um ou outro sucesso de trilha de novela da Globo (como as já citadas "Golden Years" e "Sound and Vision"), ou o êxito impactante e irresistível que foi "Heroes", em 1977, a visão de Bowie que o grande público brasileiro tinha, no comecinho dos anos 1990, quando foi anunciada a primeira grande turnê de revival do cara (a Sound and Vision Tour), era a de um artista pop de alguns hits isolados, e simplesmente isso. E foi essa turnê que trouxe Bowie ao Brasil para se apresentar pela primeira vez, em setembro de 1990.

A primeira apresentação foi na Praça da Apoteose, no Rio de Janeiro, seguida então de três shows em São Paulo: dois no Parque Antártica e um no extinto Olympia. É interessante notar que, nessa época, o grupo brasileiro de rock Nenhum de Nós havia estourado nas rádios justamente com uma versão para a clássica canção de Bowie, "Starman", do álbum 'Ziggy Stardust', rebatizada por eles de "Astronauta de Mármore". Alguém se lembra?

Como o Bowie de eras mais passadas era mais desconhecido por aqui, e o setlist da turnê se baseava maciçamente em sua fase mais setentista, foi interessante quando ele anunciou em um dos shows de SP, mediante a reação morna da plateia a vários sucessos mais antigos: "Agora essa que vou cantar vocês conhecem em português", e emendou com "Starman". Que coisa braba.

Além dessa, o repertório dos shows dispensava sucessos mais recentes do camaleão, em prol de uma saraivada de clássicos e obras-primas que vinham da fase mais catártica de Bowie: "Jean Genie", "Rebel Rebel", "Station to Station", "Rock and Roll Suicide", "Heroes", e várias outras. Quem conhecia, e sabia o que era, aproveitou - foi a tirada de atraso perfeita dos shows que o cara poderia ter realizado antes aqui, nos anos 70. Um desses shows, o da Apoteose no Rio, foi apresentado pela Rede Globo na época, numa versão editada, e está disponível ainda no YouTube, num link que disponibilizamos aqui no final da matéria.

Bowie no Brasil ao vivo, em 1997

E então, lá por volta de 1997, promovendo a tour do álbum 'Earthling', o cara vem de novo, só que dessa vez, com um repertório mais variado e azeitado de novidades e músicas dos discos mais recentes. O público, também, já reagia de outra forma: sete anos depois, de avanços do compartilhamento de músicas na web, MP3 e internet, deram uma turbinada na galera mais jovem, e reavivaram a memória dos mais velhos, que a partir daí já estavam todos a par da verdadeira fileira de hits e pérolas consagradas de Bowie. Dessa vez, foram três apresentações durante novembro daquele ano, em Curitiba, São Paulo e Rio.

Foi a última vez que ele pisou por aqui, e fez história. 



* - Gostaríamos aqui de agradecer e citar o autor e blogueiro Emílio Pacheco, um especialista em David Bowie no Brasil, e sem o qual diversas informações nesta postagem não teriam sido possíveis. Visitem aí o blog dele: http://emiliopacheco.blogspot.com/

** - Errata apontada pelo Emílio Pacheco, antes havíamos citado que ambas as músicas haviam feito parte de trilhas sonoras de novelas da Rede Globo. Valeu pelo toque, Emílio!


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domingo, 4 de fevereiro de 2024

...E ELES NÃO SE RENDERAM AO SISTEMA!

John Hurt, em cena do filme "1984"

Existe uma classe de atores, de uma era clássica do cinema, que se tornaram notáveis por não cederem às pressões de empresários e estúdios, e realmente desempenharem apenas os papéis que queriam, pelo amor à arte. Um bom texto, com bons diálogos, e um bom roteiro aliado a uma direção segura e eficaz: eis o segredo, aliado ao talento natural do intérprete, para todas as grandes atuações que entraram para a história da sétima arte e deixaram suas marcas. 

Nada contra os astros que também atuam para pagar seus boletos, aliás. Somos todos humanos, e as necessidades mundanas também falam alto, em certos momentos: Sean Connery, Marlon Brando, Michael Caine, Gene Hackman, Anthony Hopkins etc., são tantos ícones monstruosos da história do cinema que invariavelmente tiveram que se render aos contratos milionários e figurar em um blockbuster aqui, outro ali, de modo a garantir a feira.

O que temos a seguir, no entanto, é uma galeria que se destaca por não ser composta de nomes tão "mega estelares" assim (ok, há exceções), e ao compararmos, o número de escolhas em que esses artistas cederam aos caprichos de seus agentes e de produtores poderosos foi infinitamente menor do que a média comum - principalmente do cinema atual, tão ditado pelas cifras. Em algum momento, um ou outro fez sim algum filme bem famoso e que os tornou em evidência na boca do povo, mas no geral, continuaram presos às diretrizes básicas e rígidas do 'métier', sempre se reciclando em peças de teatro, buscando papéis mais desafiadores a cada novo projeto, e não se importando também em coadjuvar e servir de escada para outros colegas, em obras memoráveis. Em alguns momentos, fizeram pontas e participações em filmes de maior apelo popular, mas de forma a conseguirem o recurso necessário para investirem em projetos pessoais e de cunho mais artístico (John Cassavetes é um exemplo notório).

Não é uma lista taxativa, é óbvio - nunca, jamais poderia ser, sendo que há tanta gente boa por aí que nem tem como citar. Mas serve para dar um gostinho da época em que gerações de atores pareciam buscar maior substância dramática.

Com vocês, portanto, aqueles que não se renderam ao "sistema":


Terence Stamp

Tido como uma das maiores revelações da atuação britânica dos anos 60, Stamp chegou a ser considerado um sex symbol na primeira fase de sua carreira, devido aos seus papéis vigorosos e magnéticos em títulos que marcaram, como no papel do sociopata introspectivo do clássico "O Colecionador" (1965), do sargento debochado de "Longe Deste Insensato Mundo" (1967) e do estranho e jovem sedutor de "Teorema" (1968), do lendário cineasta italiano Pier Paolo Pasolini.

Apesar de tudo, e de ser irmão de simplesmente um dos maiores empresários do rock inglês daqueles tempos, Chris Stamp (o cara que simplesmente promoveu  o grupo The Who), ele nunca deixou a fama subir em sua cabeça, e sempre manteve a sua aristocrática fleuma britânica; sendo mais recluso em busca de bons papéis, participava de várias temporadas de peças shakespearianas no tradicional Bristol Old Vic Theatre, de Londres, ao longo das décadas de 1970 e 1980. A maioria do grande público, entretanto, vai sempre se lembrar dele como o impiedoso antagonista do Superman, General Zod, na versão original para os cinemas de "Super-Homem, o filme" (1978), e "Super-Homem 2" (1981). Ainda teve um destaque considerável como uma das drag queens do filme "Priscilla, a Rainha do Deserto" (1994).

Em "Priscilla, a Rainha do Deserto" (1994)





John Hurt

Tido até hoje como um dos mais memoráveis atores britânicos de sua geração, Hurt era um desses caras que se entregava ao personagem, com um tipo de técnica parecida com o "método", muito utilizado pelos seus colegas norte-americanos. Atuou em uma infinidade de filmes e séries para a TV baseados nas peças clássicas, e tinha rígida formação shakespeariana. O primeiro grande papel que fez ele ter destaque entre público e crítica, entretanto, é um em que ele jamais seria reconhecido, devido às camadas absurdas de maquiagem com que atuou: foi o papel de John Merrick, um homem nascido com uma terrível deformidade congênita no crânio e em seu rosto, que é explorado por circos de aberrações na Inglaterra do século 19 mas passa a ser reconhecido como dono de uma personalidade incrível, no melancólico "O Homem Elefante" (1980), de David Lynch. 

Na emocionante atuação de "O Homem Elefante" (1980)

Mais adiante, em 1984, outro grande papel, justamente no filme de mesmo nome, "1984", inspirado na célebre obra do escritor inglês George Orwell, que denunciava o totalitarismo (e onde foi usada pela primeira vez a expressão "big brother" para se referir ao governo do futuro, usando câmeras que vigiariam a população). Mas uma das aparições mais icônicas pela qual Hurt sempre será lembrado é como coadjuvante, que faz parte da tripulação ceifada pelo sanguinário "Alien" (1979), o clássico original de Ridley Scott - é ele o astronauta Kane, de cuja barriga irrompe uma das criaturas após uma bela janta com macarrão, em cima da mesa do refeitório da nave, e ante os olhares apavorados dos outros colegas de missão. Um de seus últimos papéis de destaque foi como o professor enlouquecido de "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" (2008), de Steven Spielberg. Hurt nos deixou em 2017, devido a um câncer no pâncreas.

Em "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" (2008)


"Alien" (1979)


Klaus Kinski

Se nos anos 60 e 70, você quisesse falar sobre doideira, exibicionismo e esquisitice, em termos de atores de cinema, não precisava ir muito além do nome Klaus Kinski. Ele era um polaco-alemão absurdamente genioso e irreverente, que poderíamos descrever como uma versão europeia do rebelde Marlon Brando, mas bem piorada. Chegou a lutar do lado das forças alemãs na Segunda Guerra Mundial, aos 17 anos. Baleado e preso pelas tropas inglesas, descobriu o seu dom para atuar no campo de prisioneiros, para fugir dos trabalhos forçados e conseguir benefícios. Com o fim da guerra, ao retornar para a Alemanha, resolveu entrar de cabeça no mundo do teatro, mas invariavelmente acabava despedido das companhias em que entrava, devido ao seu comportamento imprevisível e instável. Chegou a tentar estrangular uma colega de quem gostava, por não corresponder a ele, o que o deixou internado durante um certo tempo em um hospital psiquiátrico e com um laudo final de psicopatia. Kinski, devido a toda essa vida pregressa acidentada, custou a engrenar no cinema, mas após o final da década de 1950, e ao longo dos anos 60, começou a ter destaque em centenas de papéis coadjuvantes, em produções europeias da época. Chegou a ter uma ponta no épico "Dr. Jivago" (1965), de David Lean. 

Na pele do perturbado explorador "Aguirre" (1972)

E no final da década, seguindo a mesma tendência de um sem número de atores europeus e americanos que ainda não tinham conseguido o sucesso merecido, partiu para a Itália para participar de spaghetti westerns e produções de baixo orçamento. Ali, passou a ter vários contatos com diversos cineastas, e sua estrela começou a firmar - compreensivelmente, interpretando diversos papéis de bandido, como no clássico "Vingador Silencioso", de 1969. A carreira de Kinski realmente toma impulso a partir de suas colaborações com o cineasta alemão Werner Herzog, na década de 70: "Aguirre, Cólera dos Deuses" (1972), "Woyzeck" (1978), e "Nosferatu" (1979), dentre outros, marcaram uma parceria entre ator e diretor tão profícua quanto polêmica e passional (certa vez, quase se mataram no set de filmagens). Kinski é o pai da bela e célebre atriz alemã Nastassja Kinski. Morreu em 1991, de enfarte. E podes crer que muita gente não achou ruim.

Kinski como o vampirão "Nosferatu"


Daniel Day-Lewis

Ator irlandês, de origem britânica (nascido em Londres), que chegou a um nível tão elevado de perfeição em suas atuações, que se tornou praticamente impossível ele interpretar papéis menores, a partir de certa altura de sua carreira. Oriundo de uma família com a arte no sangue (seu pai, poeta, e sua mãe, atriz), Daniel atua desde novo, e ainda na adolescência foi admitido no tradicional e prestimoso Bristol Old Vic Theatre School - esse verdadeiro celeiro dos grandes talentos dramáticos ingleses, sempre encenando as grandes peças, as grandes obras. A partir de meados da década de 1980, o seu talento começa a sobressair e agentes passam a contratá-lo para personagens que seriam enriquecidos por suas nuanças: "Minha Adorável Lavanderia" (1985) e "A Insustentável Leveza do Ser" (1988) se destacam. A consagração chega com o primeiro Oscar, pelo papel do jovem deficiente Christy, em "Meu Pé Esquerdo" (1989). 

"Sangue Negro" (2007)

Atuações históricas viriam com "Em Nome do Pai" (1993), "Gangues de New York" (2002) e aquele que é considerado um dos mais arrebatadores de todos os tempos: o do irascível e ambicioso Daniel Plainview em "Sangue Negro" (2007), que lhe concederia o segundo Oscar. Um recorde até hoje não igualado seria quebrado com a condecoração do terceiro Oscar, recebido por sua atuação visceral como o lendário presidente norte-americano em "Lincoln" (2013). Também adepto do "método", Daniel já se aposentou, disse preferir viver uma vida sossegada com sua família na Irlanda de agora em diante, e se despediu do cinema com o filme "Trama Fantasma", em 2017.


William Hurt

Americano de Washington D.C., este outro Hurt se notabilizou como um dos mais excêntricos atores de sua geração, sempre exigente e altamente seletivo com seus roteiros e personagens, algo mais difícil de se ver na seara do cinemão ianque. Foi consagrado com o Oscar pelo marcante papel de um detento homossexual no filme "O Beijo da Mulher Aranha" (1985). Mas além desse, atuou em vários papéis dramáticos intensos, sempre com maneirismos e detalhes que diferenciavam a sua atuação: "Viagens Alucinantes" (1980), "Corpos Ardentes" (1981), "Mistério no Gorki Park" (1983) e "Filhos do Silêncio" (1986) são alguns dos títulos que imortalizaram o nome de William Hurt, mundialmente. Apesar de sempre ter dado preferência a filmes mais fora do circuito comercial, trabalhando com produtores e diretores de fora do mainstream, e procurando alternativas inéditas e interessantes de personagem, Hurt acabou finalizando a sua carreira justamente com alguns 'blockbusters' da Marvel, talvez pelas propostas financeiras irrecusáveis nesse sentido: foi ele quem interpretou, até os últimos filmes dos Vingadores, o papel do Coronel Ross, que persegue o Hulk e tenta controlar os outros heróis com acordos de cooperação do governo americano. Faleceu em 2022, devido a um câncer de próstata.



John Cassavetes

Um dos grandes mitos do cinema independente norte-americano, Cassavetes talvez seja mais reconhecido como um realizador (produtor e diretor) que chegava a usar capital próprio para bancar seus filmes altamente pessoais e com intensas tramas psicológicas, muitos contando com a sua esposa Gena Rowlands como protagonista, e sendo indicado ao Oscar de 1974 pela obra-prima "Uma Mulher sob Influência", no qual além de diretor, também concorreu como ator coadjuvante.  Como ator, quando mais jovem, teve as suas duas mais icônicas atuações nos sucessos de bilheteria "Os Doze Condenados" (1967) - ele era o rebelde soldado Victor - e em "O Bebê de Rosemary" (1968), de Polanski, em que faz o papel do egocêntrico e ganancioso marido da protagonista. Uma autêntica lenda, amplamente lembrado e reverenciado pela maioria dos atores e diretores de Hollywood. Falecido em 1989. 

"O Bebê de Rosemary" (1968)


Com a esposa e atriz Gena Rowlands, num set de filmagem



Christopher Walken

Respeitado pela comunidade artística norte-americana, Walken fez escolhas arriscadas em sua carreira, sempre indo mais no sentido do personagem anti-herói, mas suas atuações marcantes e caracterizações fortes o levaram a se tornar um dos rostos do movimento 'New Hollywood'. Despontou como o sofrido soldado Nick, no famoso drama de guerra "O Franco Atirador" (1978), do diretor Michael Cimino. Logo em seguida, continuando a parceria com Cimino, fez com ele o polêmico e malfadado faroeste "O Portal do Paraíso" (1980). Em 1983, sob a batuta de David Cronenberg, mais um papel marcante, como o professor que passa a ter poderes paranormais em "A Hora da Zona Morta", baseado na obra de Stephen King. Mais recentemente, Walken tem sido reverenciado pelos cineastas com pontas e papéis coadjuvantes marcantes, como em "Pulp Fiction" (1994), de Quentin Tarantino, e "Prenda-me se for Capaz" (2002), de Steven Spielberg.

Em "A Hora da Zona Morta" (1983)


Bruce Dern

Egresso de uma turminha da pesada de jovens atores nos anos 60, que incluía Jack Nicholson, Harry Dean Stanton, Dean Stockwell e outros, Dern se tornaria um dos símbolos da contracultura, ao estrelar filmes como "Busca Alucinada" (1968) e "A Noite dos Desesperados" (1969). Ao lado de Peter Fonda, Dennis Hopper e o próprio Nicholson, Dern se estabeleceu como uma das principais caras da Nova Hollywood, indo sempre no sentido de papéis diferentes e não convencionais. Foi homenageado por Tarantino, seu fã, com uma ponta em "Era Uma Vez em Hollywood" (2019), como o cego e esclerosado dono do Spahn Ranch. 




Michael York

Atualmente anda meio esquecido, mas York é um ator inglês com um trabalho de grande envergadura ao longo das décadas de 60, 70, 80, e até na atualidade (com alguns pequenos trabalhos em séries e TV). Assim como seus colegas de geração, sempre voltava ao teatro para se reciclar. Teve grande destaque na versão de Franco Zeffireli para "Romeu e Julieta", de 1969, como Logan, na ficção científica "Fuga do Século 23" (1976), e como D'Artagnan, na versão de "Os Três Mosqueteiros" (1977), de Richard Lester.




Malcolm McDowell

O maior êxito da carreira de Malcolm, ainda jovem, basta olharmos para uma certa expressão surtada dele, e logo já sabemos qual é: o delinquente Alex DeLarge na versão cinematográfica aclamadíssima (e polêmica) de "Laranja Mecânica" (1971), do grande Stanley Kubrick. Apesar desse enorme sucesso que o catapultou para a fama, Malcolm se manteve fiel a suas origens, e nunca se preocupou em ficar procurando papéis que o mantivessem naquela mesma linha de interpretação, ou que tentassem forçosamente repetir êxito. Continuou participando de montagens no teatro, e além do filme de Kubrick, ainda teve outros momentos de protagonismo celebrados nas telonas, como no clássico da contracultura "Se..." (1969, rodado antes de 'Laranja'), "Um Homem de Sorte" (1973), na aventura baseada em H.G. Wells sobre viagem no tempo, "Um Século em 43 Minutos" (1978), e em "A Marca da Pantera" (1983). Também se dedicou a diversos projetos e séries na TV inglesa.

No filme "Se..." (1969)


"Um Século em 43 Minutos" (1978)


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