sábado, 17 de fevereiro de 2024

UM GUITARRISTA INJUSTIÇADO

 

Em inúmeras listas de melhores guitarristas de todos os tempos, é muito comum você encontrar nomes icônicos como Jeff Beck, Eric Clapton, Jimmy Page, David Gilmour e vários outros. Jimi Hendrix e Eddie Van Halen então... esses eu nem falo, estão lá no topo dos topos para muita gente.

Mas tem um nome que, caso você faça parte de um grupo mais seleto e com predileções musicais rebuscadas, não pode nunca (mas nunca mesmo) faltar. É o lendário mestre irlandês Rory Gallagher.

Nascido em 2 de março de 1948, em Ballyshannon, desde cedo se mostrou prodigioso e contagiado pela música, e como tantos de sua geração, mais especificamente os puros sons do blues de americanos como Elmore James, Muddy Waters e Howlin' Wolf. Aos 9 anos de idade, comprou seu primeiro violão. Com 12, venceu uma competição de jovens talentos na cidade de Cork, e com o dinheiro ganho comprou sua primeira guitarra elétrica. Mas aos 15, iria se deparar com a sua grande paixão, que iria o acompanhar por toda a sua vida: uma Fender Stratocaster usada, de segunda mão, mas que segundo Rory, tinha o som e o timbre com os quais ele sempre havia sonhado. 

Resultado: sim, ele nunca mais se separaria dela e, apesar de ocasionalmente utilizar uma ou outra guitarra, era sempre com a sua velha Fender, toda gasta e descascada, que ele sempre 'viajava' em desvairados riffs e solos em todos os seus shows ao vivo e gravações. Você pode vê-la nas fotos acima - e vai vê-la também na quase totalidade das fotos e filmagens com Rory tocando. Eram inseparáveis.

O mais impressionante de tudo era que a sonoridade flamejante e altamente criativa de Rory nas seis cordas não tinha nenhum pedal ou console de efeitos por trás: era simplesmente ele, a guitarra e um bom amplificador, com um bom volume e alguma distorção natural e valvulada. Pode parecer mentira, mas toda a sonzeira que você ouve espirrando da guitarra de Rory (velha e simples, ainda por cima) vinha de estruturas de acordes e solos inventivos que produziam um efeito natural, vindo da própria inspiração do guitarrista.

A banda que projetou Rory para o cenário mundial, os mais velhos devem saber, foi o lendário Taste, um power trio pesadaço de músicos irlandeses, no melhor estilo do Cream (de Eric Clapton), e que Rory formou, inicialmente com Eric Kitteringham (baixo) e Norman Damery (bateria), depois substituídos por Richard McCracken (baixo) e John Wilson (bateria). Com o grupo, gravou dois espetaculares álbuns de estúdio ('Taste', de 1969, e 'On the Boards', de 1970), excursionaram por toda a Europa, também abrindo shows para o Blind Faith em 1969, e tiveram o seu grande momento de glória no lendário Festival da Ilha de Wight, em 1970, um pouco antes de se separarem. Confira essa magistral performance de "What's Goin' On", que é desse evento:


Como se pode perceber, ao contrário da maioria de outros grandes guitarristas, Rory era também um magistral cantor, dono de um tom de voz enérgico e rasgado, e repleto daquela rouquidão blueseira que soa tão bem em suas músicas.

Richard McCracken (baixo), John Wilson (bateria) e Rory Gallagher (guitarra): a formação mais famosa do Taste

A partir de 1971, ele monta a sua própria banda, a Rory Gallagher Band, que apesar de diversas formações ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, sempre tem como parceiro fixo o baixista Gerry McAvoy, que se tornaria um dos melhores amigos de Rory, e que daria um dos melhores testemunhos sobre quem foi o cara: "Permaneci tocando com Rory durante tanto tempo porque tínhamos uma conexão incrível enquanto tocávamos, como se estivéssemos sempre adivinhando o que estava na mente do outro. Apesar de perfeccionista, ele sempre foi um ser humano amável, muito humilde, e que despertava um entrosamento bom com a maioria dos músicos com quem tocava."

Taste c/ Rory Gallagher: Morning Sun

Realmente, um cara simples: até na indumentária, Rory não se parecia em nada com um "rock star" convencional e, a despeito de sempre ter usado cabelo grande, não era chegado em figurinos espalhafatosos e nada que chamasse muito a atenção. Assim como em relação a sua guitarra, nunca abandonou o guarda roupa básico que poderia até servir de inspiração para a futura geração "grunge': muitos jeans velhos, camisas de manga listadas, com ou sem flanela, e jaquetas e coletes baratos.

Vários petardos memoráveis foram gravados por Rory na principal etapa de sua carreira, como os discos 'Tattoo' (1973), ou 'Calling Card' (1976), mas se você perguntar para todos os seus admiradores qual foi um de seus maiores momentos, poucos deixarão de lado as performances ao vivo e matadoras de Rory, das quais o icônico álbum 'Irish Tour', de 1974, se constitui num dos mais perfeitos documentos da genialidade desse artista. Em músicas como "Too Much Alcohol" e a fantástica "Walk on Hot Coals", Rory parece singrar para outros mundos, outras dimensões, tamanho é o impacto sensorial que seus solos inebriantes promovem no ouvinte. 

Incansável, continuou produzindo bastante e prolificamente, até meados dos anos 90, quando em 1994, legítimo irlandês fã de um bom "caneco" que era, passa a padecer de problemas no fígado, que já estava pedindo arrego. Uma cirurgia de transplante marcada para abril do ano seguinte, 1995, acaba terminando com o resultado final que ninguém gostaria: Rory, já muito debilitado, não resiste a complicações da intervenção após algumas semanas internado, e parte desse mundo, deixando para trás toda uma legião de seguidores e sua querida Fender Stratocaster. No enterro, realizado em Cork em 15 de junho de 1995, pessoas da Irlanda inteira lotam a cerimônia do funeral para ovacionar Rory. Ele se torna praticamente um símbolo cultural irlandês.

Para quem gosta de um belo trabalho de guitarra, e não resiste a solos lancinantes e cheios de emoção, é compulsório que ouça e se delicie com o trabalho de Rory Gallagher, pelo menos alguma vez nessa vida.

Vamos terminando por aqui, deixando mais alguns registros para você testemunhar, e uma frase desse monstro das seis cordas, se justificando para um repórter, em 1982, sobre porque ele nunca trocou de guitarra e preferia ainda a sua velha e surrada Fender:

"Trocar para que se sempre foi minha boa companheira? Em time que está ganhando não se mexe, não é esse o ditado? Meus concertos e discos sempre foram ótimos com ela. Então... não, muito obrigado, prefiro continuar com a minha Fender mesmo."

Rory Gallagher - Laudromat (1971)



Rory Gallagher - Do You Read Me (1979)


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