Em 1954, um faroeste com os galãs Gary Cooper e Burt Lancaster seria lançado sob a direção do grande Robert Aldrich, causando estardalhaço e certa polêmica na mídia da época... O porquê? Ao se aprofundar na cobiça e mesquinharia de suas personagens, talvez ele fosse realista demais para muitos aceitarem.
Vera Cruz passou a ser considerado, dessa forma, o precursor de um filão que seria uma das últimas grandes reinvenções do gênero western, alguns anos depois: o western spaghetti (ou 'bangue-bangue à italiana'), os filmes de cowboy produzidos na Itália, por Sergio Leone, Sergio Corbucci e comparsas, visto que neles, a crueza e a malandragem das figuras típicas do cenário épico do Oeste americano eram desvendadas de forma explícita e descarada, sem firulas.
O imaginário dos anos 1950, no panorama cinematográfico ianque, ainda estava acostumado com os tipos altruístas de John Wayne, Henry Fonda e James Stewart, nos diversos faroestes de John Ford e Howard Hawks. Não havia muito lugar, na cabeça das pessoas, para canalhas gananciosos como protagonistas de um gênero pródigo em heróis icônicos, como os mocinhos Tom Mix, Roy Rogers ou o verídico Wyatt Earp.
No enredo do filme, o ex-soldado sulista Ben Trane (Gary Cooper) conhece por acaso o bandidão Joe Erin (Burt Lancaster, impagável) durante um negócio de compra de cavalos, e acabam se envolvendo em um movimento de mexicanos rebeldes que tramam para derrubar o imperador mexicano Maximiliano. No entanto, ao tomarem contato com as forças imperiais, encontram uma oportunidade ímpar de transportar ouro para as mesmas (bem como de afaná-lo), e mudam de lado como quem troca de camisa, se envolvendo com uma condessa pra lá de suspeita que também tem interesse no carregamento, e toda a sorte de perigos e aventuras nessa empreitada. Ambos são ases no gatilho, e uma insólita "amizade" entre eles nasce, motivada por essa ambição pelo ouro - só que mais para frente, as coisas se complicarão. O diretor Robert Aldrich sabe trabalhar muito bem todas essas ambiguidades no relacionamento das personagens, e diversas nuanças vão se revelando ao longo da trama. Filmaço (disponível na Prime Video, aproveite enquanto ainda está).
Como se percebe por esse plot, o vai e vem de situações por conta de pegar o ouro e passar os outros para trás é tão intenso, que realmente é o tipo de situação que veríamos em um sem-fim de filmes de faroeste italiano que só seriam produzidos uma década depois.
O pistoleiro almofadinha de Lancaster marcaria época, relegando o ator a uma má fama de "cafajeste" da qual ele conseguiria se livrar só muitos papéis depois, graças à sua genial caracterização como um vilão cativante, que sorri o tempo todo, e não mede esforços para obter êxito. Para a lendária crítica de cinema Pauline Kael, o seu Joe Erin é um dos maiores sociopatas da história do cinema americano de ação, de todos os tempos.
E aqui vai uma baita curiosidade: você vai encontrar novinhos, como comparsas do bando de Erin, os célebres George Kennedy (Aeroporto, Corra que a Polícia Vem Aí), Ernest Borgnine (Meu Ódio Será Sua Herança), e ainda, pasmem, um Charles Bronson quase moleque - e o melhor de tudo, já treinando soprar na harmônica muitos anos antes de interpretar seu personagem do mítico Era Uma Vez no Oeste (1968), de Sergio Leone. É um elenco estelar, portanto.
Aldrich era diretor dos bons, cravou a ferro e fogo sua marca de autenticidade na história do cinema americano como um dos primeiros caras mais "autorais" em suas obras, fazendo preponderar em todas as suas tramas características como o egoísmo, a maldade e os instintos vis do ser humano, mas também a sua redenção através dos sacrifícios e da empatia, e consequentemente se tornaria um dos inspiradores da nouvelle vague francesa, e de todo o movimento de renovação do cinema norte-americano, a New Hollywood, das décadas de 60 e 70. Gostava de imprimir o realismo com cores fortes em seus filmes.
Em 1967, Aldrich teria mais um grande êxito em sua carreira, ao reunir um grupo de bandidos irrecuperáveis para uma missão suicida contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial: Os Doze Condenados. Clássico absoluto. Mas essa já é uma outra história, que fica para uma outra hora.
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Sabe quem nasceu no dia 21 de abril - passou agora, esses dias atrás - e quase ninguém se lembrou?
"Já sei, Tiradentes!"... Não, criança. Esse não vale. Estamos falando aqui de rock.
E de rock pesado e sujo, cara. Daquele que você enlameia os dedos nas feridas d'alma, rosna pulando e uiva alto com ou sem luar. Som massacrante e incandescente, que jorra das caixas até arrepiar o bigode, como dizia um conhecido meu. Estamos falando de um cara que ensinou os primeiros punks a serem... punks.
Estamos falando de James Newell Osterberg. Aliás, estamos falando do velho Iguana. Estamos falando de Iggy Pop. O cara é uma lenda, e quem assiste ele ainda se arrastando e balbuciando pelos palcos de hoje, realmente custa a acreditar. "Ah, mas ele está muito f... e acabado, olha o corpo caquético e envergado dele, o Mick Jagger rebola e canta ao mesmo tempo, e dá de dez a zero nele", dirão alguns. Criança, mas você simplesmente não entende que a ficha corrida de Mr. Jagger não chega nem a um fiapinho do que seria a ficha de Mr. Iggy? E que tudo que ele fez, aprontou, ingeriu e cheirou, rivalize e talvez até ultrapasse o que o coleguinha Keith Richards (também rolling stone) já fez? Sinceramente, criança, você não conhece o que é rock and roll.
The Stooges, em 1969
Iggy, do alto de seus agora 77 anos, é uma instituição (ainda) viva da era mítica do rock, que moldou toda a música e a performance que gerações e gerações, incluindo a atual, seguem e ainda curtem até hoje. Se existe algum tipo de rock com originalidade, certo senso de perigo, e emoção, até hoje, isso é devido a caras como Iggy, que não tiveram medo de ousar. E criar, inovar.
Quando a lendária banda que revelou ele ao mundo, os Stooges, surgiu, lá pelos idos de 1967, a música já estava descendo a ribanceira por um caminho vertiginoso de se achar muito séria, de virar arte mais "cabeça" e refinada, e aqueles quatro carinhas de Michigan simplesmente ergueram uma crença de que "o menos é mais", seguiram as lições básicas dos blues e das mais rudes bandinhas de garagem da época, afundando suas almas de garotos desprezados nos instrumentos baratos e nos 3 acordes básicos, ungido de experimentalismo torpe e barulheira, com muita distorção, crueza e autenticidade. Iggy (vocais), Ron Asheton (guitarra), Scott Asheton (bateria), e Dave Alexander (baixo), lá estavam eles.
I Wanna Be Your Dog (1969)
O primeiro registro do grupo em LP, o auto-intitulado The Stooges, sai em 1969, e traz petardos inesquecíveis para todos os irmãos da alta sonoridade: "No Fun", "I Wanna Be Your Dog", "Not Right" e "1969", hoje clássicos que mostraram como o rock podia voltar a ser básico, primitivo e empolgante, sem muita firula e com muitos golpes certeiros de guitarras lancinantes e encharcadas de fuzz e wah-wah, pancadas violentas de baixo e bateria e, claro, a voz rasgada e insolente de um jovem e rebelde Iggy (na época, ainda proclamado Iggy Stooge).
A produção era de ninguém mais, ninguém menos que John Cale, arauto doidão do grupo de vanguarda Velvet Underground, ao lado de Lou Reed, e que ficaria inicialmente fascinado pela atitude despojada e totalmente mambembe dos jovens Stooges em relação a estúdios e gravações. Detalhe: eles queriam ligar tudo no último volume e gravar como se estivessem se apresentando mesmo, tudo ao vivão. É óbvio que o choque inicial com a realidade das produções de discos foi impactante para Iggy e seus asseclas.
No Fun (1969)
"O negócio era abaixar o volume e ficar testando microfones, captação... Tudo baixinho. E volta e ouve para ver se ficou bom, e repete isso e aquilo, e repete mais uma vez. Ficamos entediados, toda a espontaneidade da coisa tinha ido embora", relata Iggy. Se já assim, o primeiro disco era uma pauleira, imagina o que viria pela frente, quando eles conseguiram, no LP seguinte, produzir realmente algo mais próximo do que seria um som ao vivo deles!
Lançado em 1970, Funhouse traz um som ainda mais sujo e distorcido, Nos hinos transgressores de "Loose", "TV Eye", "Dirt" e a faixa-título, além de ser resultado de uma maior coesão entre o grupo, pelo fato deles terem se entregado à vida na banda em tempo integral, vivendo juntos em uma casa alugada pela gravadora Elektra, no estilo "república", bem comuna mesmo. E aí já dá pra imaginar bem todo o tipo de loucuras que rolavam por lá, sendo que "funhouse" (casa de diversões) era o próprio apelido que haviam dado ao lugar...
T.V. Eye (1970)
Dirt (1970)
Se você considerar que, apesar de todo o estilo revolucionário dos Stooges, os discos deles falhavam miseravelmente em vender e fazer sucesso, e que isso logo seria a porta de saída deles da Elektra Records, bem como os exageros químicos e comportamentais dos quatro, mas principalmente de Iggy, então não haveria mais nenhum futuro, todos seriam relegados ao eterno esquecimento, e ficariam como mais uma daquelas bandinhas dos anos 60 que simplesmente sumiram. Certo?
Iggy e seu 'salvador' David Bowie: amizade histórica e redentora - Iggy serviu até de inspiração no nome para Bowie criar o seu personagem rock mais famoso, Ziggy Stardust
Não. Apesar de episódios grotescos de autoflagelação no palco, viagens e peripécias mil regadas a ácido e álcool, e a quase internação em manicômios para ser tratado, Iggy é tal qual uma fênix que ressurge das cinzas, pelas mãos de um inacreditavelmente fã do outro lado do Atlântico que vira astro - o inglês David Bowie, que o reergue, ajuda em sua desintoxicação, e lhe arranja novos contratos - e sob a luz de uma nova vivência, Iggy se reinventa nos anos 70: primeiro, com uma versão reformada dos Stooges (que lança o seminal álbum Raw Power, de 1973), e depois, como artista solo, performático como poucos, e padrinho de toda a geração de punks que brotariam da Inglaterra até os EUA, da metade em diante daquela década.
Long live Iggy!
The Passenger, um dos maiores sucessos da carreira solo de Iggy, em 1977
Iggy Pop nos dias atuais
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Na noite de 15 de dezembro de 1968, músicos de orquestra se organizavam e afinavam seus instrumentos, no palco montado do The Smothers Brothers Comedy Hour, um dos mais populares shows de auditório da TV americana, já em sua terceira temporada, transmitido pela CBS. Além dos quadros cômicos apresentados pelos célebres irmãos Tom e Dick Smothers, a atração sempre trazia números musicais com grandes artistas e seus sucessos nas paradas.
Jim Morrison
Ali, naquele momento, um dos mais mais cultuados e bem sucedidos grupos de rock californianos do mundo iriam colocar à prova do público o seu mais recente single, que seria lançado precedendo o próximo disco, a sair no ano seguinte. Ali, naquele palco, a banda The Doors, do lendário vocalista e poeta Jim Morrison, iria executar uma versão ao vivo de "Touch Me".
Para os fãs mais "hardcore" do grupo, habituados à sonoridade por vezes sombria, ora barroca, ora bluesy e psicodélica de álbuns anteriores, como o primeiro autointitulado, o segundo (Strange Days), ambos de 1967, e Waiting for the Sun, que havia saído naquele 1968, algo parecia soar estranho. "Touch Me" evocava os sons de big bands, um clima meio colorido e garboso que cheirava a Las Vegas, além da performance desvairada de um Morrison quase excessivo em certo romantismo démodé, emulando Sinatra e outros crooners de um estilo pomposo e contraposto ao de um cantor de rock visceral. Do som mais vigoroso, viajante e experimental dos outros membros do grupo: Ray Manzarek (tecladista), Robby Krieger (guitarrista) e John Densmore (baterista), debaixo das camadas sinfônicas de cordas e metais, também não se ouvia muita coisa.
The Doors mandando ver
Durante a apresentação, é possível ver Robbie rindo da sensação estranha que era eles, aqueles antes "quatro solitários cavaleiros do apocalipse de rock ácido", estarem agora tocando até com orquestra e solos de saxofone do jazzy Ronnie Ross, e pode ser notado que ele apresenta um olho roxo - que não era, ao contrário do que muitos brincavam, travessura de um Morrison bêbado e enlouquecido por conta das diferenças no som, mas sim resultado de um briga de bar, no dia anterior. Morrison, ao contrário do tristemente retratado sujeito escroto da cinebiografia The Doors (1991), de Oliver Stone, era até bastante tímido e reservado quando sóbrio, e admirava muito Robbie, confiando no direcionamento musical dele, tanto quanto de Ray Manzarek. Foram de Robbie, aliás, várias composições e as ideias para as novas músicas do grupo no disco que viria a ser lançado: The Soft Parade (1969).
Robbie e o olho roxo
Para aquela parcela de fãs que estranhou tudo, os Doors haviam mudado, e não para melhor. Uma boa parte do público, e da crítica especializada, passou a acusar a banda de ter seguido por um caminho de "pasteurização" de sua música, introduzindo muitos elementos estranhos que a descaracterizavam, chegando a dizer que o grupo estava "amenizando" e ficando mais comercial, se tornando "vendidos". Nada mais ridículo, se pensarmos que aqueles eram os momentos finais dos anos sessenta, época em que mais se ousou e se experimentou em termos de sonoridades e gravações diferentes e desafiadoras - mas, afinal, mesmo as épocas mais arrojadas tem também as suas mentes mais tapadas.
Chegando às lojas em 18 de julho de 1969, o disco é uma coleção de nove faixas que firmavam os Doors rumo a direções mais ecléticas, porém que, ao mesmo tempo, reforçava simbologias menos sutis e mais obscuras do imaginário da banda e, consequentemente, das composições cada vez mais profundas de Jim Morrison. Assim como nos discos anteriores, o álbum terminava com uma peça mais longa e repleta de viradas e mudanças de andamento, que sinalizava reflexões severas sobre o zeitgeist e os confins da alma humana - se em outros momentos, "The End" havia sido a regressão psicótica ao edipianismo xamânico, e "When the Music is Over" era um brado feroz ao momento em que o 'id' desperta ante as neuroses de uma sociedade doente, tínhamos agora um registro irônico e apoteótico sobre "o desfile lento" (the soft parade), o carnavalesco cenário de cores, atores e dissabores que os Doors vivenciavam em sua trajetória, tecendo críticas ao próprio mundo artístico e às hipocrisias e obsessões de Los Angeles, sua fauna e flora de pseudo-divindades nulas e efêmeras. Nem mesmo a claustrofóbica sensação de fanatismo religioso do espírito ianque se safava na sorumbática introdução recitada por Morrison.
When I was back there in seminary school There was a person there who put forth the proposition That you can petition the Lord with prayer Petition the Lord with prayer Petition the Lord with prayer You cannot petition the Lord with prayer!
(Quando eu estava no seminário
Havia uma pessoa que colocou a seguinte proposição
De que você pode suplicar ao Senhor com oração
Suplicar ao Senhor com oração
Suplicar ao Senhor com oração
Você não pode suplicar ao Senhor com oração!)
Em canções como "Shaman's Blues" e "Wild Child", há os blues de bar, encharcados do clima jazzístico psicodélico e as habituais nuanças místicas do grupo, construindo paisagens que acolchoassem a voz cada vez mais etílica de Morrison, e estão com certeza entre os momentos clássicos da banda, ao passo que "Runnin' Blue" é uma simpática composição de Krieger (onde ele também canta), que envereda pelo caminho do country em seu atípico e inesperado refrão, e "Easy Ride" joga os Doors num trajeto de boogie e soul como nunca antes executado pela banda - é diferente, por isso o susto dos ouvintes!
A épica "Tell All the People" e a belíssima e lírica balada "Wishful Sinful", com suas passagens orquestrais dissonantes, já haviam saído anteriormente ao LP como singles, da mesma forma que "Touch Me", e de certa forma, esses lançamentos prenunciavam o que realmente estava acontecendo com os Doors, e as causas de todas as mudanças: o extremo nível interno de estafa do grupo. Era muita correria para compor e organizar novo material entre um show e outro, a pressão da gravadora e do produtor Paul Rothchild (cada vez mais exigente no estúdio), e toda a ovação de fãs e da mídia, com espetáculos cada vez mais lotados.
A turnê que se seguiu ao lançamento do disco anterior, o Waiting for the Sun, foi uma das mais longas e caóticas da história da banda, com Jim Morrison simplesmente "pirando o cabeção", e digressões na Europa que entraram para a história, pelo nível de loucura e substâncias estupefacientes envolvidas. Durante um show em 15 de setembro de 1968, em Amsterdam, na Holanda, onde estavam se apresentando em uma gig conjunta com o grupo Jefferson Airplane, Morrison acabou tomando todas e consumindo um bloco inteiro de haxixe, o que fez o cantor perder totalmente os sentidos e ser hospitalizado.
Durante show no Roundhouse, de Londres, em 1968
Ray Manzarek conta, em sua biografia, que foi nessa época que Morrison começou a pensar seriamente em desistir da carreira de músico e se dedicar em tempo integral à escrita e à poesia, mas foi convencido por ele, os outros músicos e o empresário da banda a prosseguir durante mais um tempo, ainda que já demonstrasse sinais de estresse e instabilidade emocional, situação agravada por uma ingestão cada vez maior de bebidas alcoólicas (que, com o tempo, se tornariam o principal vício do cantor). Intimamente, Morrison contestava cada vez mais a própria imagem sexy e de culto criada ao redor de si mesmo, e aos poucos, operaria uma mudança em seu próprio visual para reforçar isso, abandonando o visual de roupas de couro e as performances lascivas, deixando crescer a barba, engordando um pouco, e usando roupas comuns e desleixadas, quase como as de um universitário.
Toda essa pressão irá culminar com o fatídico "Incidente de Miami", o mítico show de 1º de março de 1969 na cidade, em que o vocalista dos Doors, ainda mais ébrio do que o habitual, levou ao extremo a ideia de desafiar a plateia sobre a visão que tinham dele como ídolo, e se exibiu (ou sugeriu exibições) de suas partes íntimas, ocasionando um tumulto sem precedentes, a destruição do local do show pelos fãs, e sendo processado por atentado ao pudor, à moral e os bons costumes, pela justiça dos EUA. Dali em diante, o que se viu foi o primeiro grande cancelamento de artistas na história da música pop, mesmo antes das redes sociais terem sido criadas e esse termo ter se popularizado tanto. Os Doors foram simplesmente banidos de todas as rádios comerciais americanas, e de quase todos os festivais, concertos e eventos dos quais iriam participar. Se tornaram praticamente marginais.
Depois disso, a história é bem sabida: a banda aos poucos recuperaria sua notoriedade e teria ainda uma rápida sobrevida, com o lançamento dos excelentes álbuns Morrison Hotel (1970), e L.A. Woman (1971), onde retornariam ao rock básico e com doses maciças de blues, que agradariam em cheio público e crítica e ainda terminariam por angariar novos fãs, mas logo após a gravação desse último disco, Morrison toma definitivamente a decisão de deixar o grupo durante uns tempos, e parte em um exílio artístico e amoroso para Paris, na França, com sua companheira Pamela Courson. De onde jamais voltaria.
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A reconstrução de algo passa por sua desconstrução. E, nos agora distantes anos 1970, um gênero clássico de cinema que parecia agonizar e passar por seus últimos suspiros - o western, bom e velho filme de cowboy - via continuar emergindo a sua vertente lúgubre, zombeteira, e extremamente realista, que buscava pintar de extremos vermelho sangue e cinismo as paisagens áridas das terras americanas sem lei. Eram os faroestes produzidos na Itália, os famigerados e pródigos western spaghetti, ou bangue-bangues à italiana, como também passaram a ser conhecidos no Brasil.
Eles reinventaram o gênero? Ou foram, afinal, o prego final na tampa do caixão?
Conclusões por conta de cada um... Apenas penso que o western, na verdade, nunca morreu, apenas foi se reciclando e modernizando com os tempos. E os spaghetti foram simplesmente um desses ciclos.
Muito se especula sobre a origem do termo, sendo mais acertado afirmar que é não só uma referência pejorativa ao lugar onde produtores, diretores, atores e atrizes se faziam passar por "ianques" dos tempos de outrora, como também que o termo spaghetti se referia às enormes doses de violência nas tramas dos filmes, com o sangue cenográfico utilizado lembrando, justamente, os molhos de tomate que um bom espaguete deve ter.
Foi nesse momento histórico que uma nova ramificação, mais suave e de forte apelo popular, nasceu como subgênero, explorando uma modalidade mais cômica: eram os "faroestes espaguete de humor", perpetrados pela dupla Terence Hill e Bud Spencer.
Nascidos Mario Giuseppe Girotti (Terence), e Carlo Pedersoli (Bud), os dois atores vinham de diferentes métiers, sendo que Terence já havia participado em pontas de diversas produções clássicas do cinema europeu, como O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, alguns épicos de gladiadores, e a série de faroestes alemães Winnetou (1964), enquanto Bud era oriundo do cenário desportivo romano, tendo sido campeão de natação e pólo aquático, mas já tinha uma quedinha pela sétima arte desde novo.
Ao se embrenharem pelo mundo dos produtores de westerns spaghetti, logo os dois se encontrariam em três pérolas marcantes do movimento, lançadas em 1967, 1968 e 1969, respectivamente: Deus Perdoa... Eu Não, Os Quatro da Ave Maria, e A Colina dos Homens Maus (também conhecido como 'Boot Hill'), que constituíam uma trilogia sob a direção de Giuseppe Colizzi. Esses filmes foram grandes êxitos de bilheteria, porém mais do que isso, motivaram não só em Colizzi como em outras pessoas da equipe, bem como no público em geral, a nítida impressão e os comentários de que rolava uma "química" legal entre aquela dupla. Eles davam liga atuando. O engraçado é que, nas tramas daquelas produções, ocorria quase que uma inversão dos tipos de papéis que eles desempenhariam posteriormente: ou seja, ali, Terence Hill ainda representava o pistoleiro mais sério e taciturno, quase a la Clint Eastwood, enquanto Bud Spencer se saía como um tipo mais cômico e bonachão, desastrado e cheio de tiradas.
É em 1970 então que, sob a direção de Enzo Barboni (sob o pseudônimo E.B. Clucher), tem início uma das mais icônicas séries de filmes da história do faroeste italiano: Trinity é o Meu Nome nos apresenta os personagens Trinity (Terence Hill), o relaxado pistoleiro e caçador de recompensas conhecido como "a mão direita do diabo", por ser um dos gatilhos mais rápidos do oeste, apesar de sua imensa preguiça; e o seu meio irmão Bambino (Bud Spencer), este sendo "a mão esquerda do diabo" (por atirar bem com a canhota), e que além de ser um brucutu com um talento todo especial para pancadarias truculentas, é um (quase) ex-ladrão de gado que acabou pegando o cargo de xerife (com segundas intenções, claro) de uma cidadezinha do oeste, onde recaem sobre um grupo de pobres e indefesos mórmons as ameaças não só da gangue de um ricaço, que querem tomar suas terras, como também de um caricato grupo de bandidos mexicanos. Aqui sim, Hill passaria a representar o cara engraçadinho e malandro, bem relaxado, e Spencer seria o seu contraponto, mais seco, mal humorado e durão, o que acabou caindo como uma luva levando em conta até os tipos físicos deles.
O roteiro, na verdade, é o de menos - acaba sendo apenas um fiapo, que serve mesmo para introduzir o imenso carisma dos personagens de Trinity e Bambino, que moldam um novo jeito de fazer bangue-bangue, e que mistura não só a galhardia da arte circense e mambembe, como também a verve humorística dos grandes momentos da comédia italiana, com suas caras e bocas, maus entendidos e verborragia. Não é a toa que Hill e Spencer fariam uma memorável participação especial no programa de TV dos nossos também circenses e baderneiros 'Os Trapalhões', já na década de 1980, durante uma visita ao Brasil.
Lutas coreografadas com muito estilo pastelão e sonoplastia exagerada de socos, murros e pontapés, além de efeitos de câmera acelerada nas inacreditáveis cenas em que Trinity saca e gira o revólver não só do seu coldre como dos adversários, e muita cara feia e nervosa do Bambino, sem paciência de estar sempre caindo nos engodos do seu mano mala, trapaceiro, e louco por um rabo de saia: a dupla Hill-Spencer estabeleceu neste filme a quintessência de um estilo de western cômico e ingênuo que criaria várias imitações inferiores (alguém aí já ouviu falar da também dupla Paul Smith e Michael Coby, da série 'Carambola'?), e marcaria toda uma geração que cresceria acompanhando a dupla ao longo de vários filmes que repetiriam essa fórmula, mas não só como Trinity e faroeste, mas também ambientados nos tempos modernos, e nos formatos de aventura, policial e comédia.
Logo acima: a célebre cena do "devorador de feijão", com Terence Hill, no Trinity original (1970). Abaixo, a dupla de imitadores da dupla Hill-Spencer que tentou fazer sucesso como eles nos faroestes, mas sem o mesmo êxito: Paul Smith e Michael Coby, em 'Carambola' (1974).
Na verdade, como sequência direta e legítima desse Trinity só haveria mais um filme, realizado no ano seguinte, o igualmente bem sucedido Trinity Ainda é o Meu Nome (1971), e que contava praticamente com a mesma equipe, dessa vez nos apresentando a família louca e desajustada dos dois irmãos, e os envolvendo em uma nova trama de defesa de religiosos ameaçados pela bandidagem (dessa vez, um grupo de monges). São películas que deixaram boas lembranças em muita gente, não só de uma geração que curtia os bangue-bangues nas matinês dos cinemas de sábado e domingo, como também de toda uma molecada que cresceu (e nessa, eu me incluo) vibrando com os tiros, acrobacias e piadinhas de Terence Hill, e os sopapos vigorosos de Bud Spencer, nas telinhas das sessões da tarde e de faroeste na TV.
Bons tempos. Mas hoje, Hill já é um senhor praticamente aposentado de todas as atividades artísticas, vivendo tranquilamente em Veneza, enquanto Spencer faleceu em 2016, após complicações decorrentes de uma queda que sofrera anos antes, em sua casa.
Para finalizar, não poderíamos deixar de falar da belíssima trilha sonora desse filme, que também ecoa em cada um dos fãs aquele sentimento bacana e nostálgico dos assobios e melodias dos grandes clássicos de western "com sabor de pizza", como dizia um amigo meu. A canção tema original do filme, "Trinity (Titoli di Testa)" se tornaria icônica, também, por fazer parte da cena final de Django Livre, faroeste do genial Quentin Tarantino, sempre rendendo consistentes homenagens ao gênero em suas obras, e foi composta por Franco Micalizzi e gravada pelo grupo I Cantori Moderni di Alessandroni, que contava com o cantor Annibale como solista, tendo sido um dos maiores sucessos daquele ano na Itália.
Fica ela a seguir, para relembrarmos.
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