quarta-feira, 10 de abril de 2024

'THE SOFT PARADE': O PONTO DE VIRADA NA CARREIRA DOS DOORS

 

Na noite de 15 de dezembro de 1968, músicos de orquestra se organizavam e afinavam seus instrumentos, no palco montado do The Smothers Brothers Comedy Hour, um dos mais populares shows de auditório da TV americana, já em sua terceira temporada, transmitido pela CBS. Além dos quadros cômicos apresentados pelos célebres irmãos Tom e Dick Smothers, a atração sempre trazia números musicais com grandes artistas e seus sucessos nas paradas.

Jim Morrison

Ali, naquele momento, um dos mais mais cultuados e bem sucedidos grupos de rock californianos do mundo iriam colocar à prova do público o seu mais recente single, que seria lançado precedendo o próximo disco, a sair no ano seguinte. Ali, naquele palco, a banda The Doors, do lendário vocalista e poeta Jim Morrison, iria executar uma versão ao vivo de "Touch Me".

Para os fãs mais "hardcore" do grupo, habituados à sonoridade por vezes sombria, ora barroca, ora bluesy e psicodélica de álbuns anteriores, como o primeiro autointitulado, o segundo (Strange Days), ambos de 1967, e Waiting for the Sun, que havia saído naquele 1968, algo parecia soar estranho. "Touch Me" evocava os sons de big bands, um clima meio colorido e garboso que cheirava a Las Vegas, além da performance desvairada de um Morrison quase excessivo em certo romantismo démodé, emulando Sinatra e outros crooners de um estilo pomposo e contraposto ao de um cantor de rock visceral. Do som mais vigoroso, viajante e experimental dos outros membros do grupo: Ray Manzarek (tecladista), Robby Krieger (guitarrista) e John Densmore (baterista), debaixo das camadas sinfônicas de cordas e metais, também não se ouvia muita coisa.

The Doors mandando ver

Durante a apresentação, é possível ver Robbie rindo da sensação estranha que era eles, aqueles antes "quatro solitários cavaleiros do apocalipse de rock ácido", estarem agora tocando até com orquestra e solos de saxofone do jazzy Ronnie Ross, e pode ser notado que ele apresenta um olho roxo - que não era, ao contrário do que muitos brincavam, travessura de um Morrison bêbado e enlouquecido por conta das diferenças no som, mas sim resultado de um briga de bar, no dia anterior. Morrison, ao contrário do tristemente retratado sujeito escroto da cinebiografia The Doors (1991), de Oliver Stone, era até bastante tímido e reservado quando sóbrio, e admirava muito Robbie, confiando no direcionamento musical dele, tanto quanto de Ray Manzarek. Foram de Robbie, aliás, várias composições e as ideias para as novas músicas do grupo no disco que viria a ser lançado: The Soft Parade (1969).

Robbie e o olho roxo

Para aquela parcela de fãs que estranhou tudo, os Doors haviam mudado, e não para melhor. Uma boa parte do público, e da crítica especializada, passou a acusar a banda de ter seguido por um caminho de "pasteurização" de sua música, introduzindo muitos elementos estranhos que a descaracterizavam, chegando a dizer que o grupo estava "amenizando" e ficando mais comercial, se tornando "vendidos". Nada mais ridículo, se pensarmos que aqueles eram os momentos finais dos anos sessenta, época em que mais se ousou e se experimentou em termos de sonoridades e gravações diferentes e desafiadoras - mas, afinal, mesmo as épocas mais arrojadas tem também as suas mentes mais tapadas. 

Chegando às lojas em 18 de julho de 1969, o disco é uma coleção de nove faixas que firmavam os Doors rumo a direções mais ecléticas, porém que, ao mesmo tempo, reforçava simbologias menos sutis e mais obscuras do imaginário da banda e, consequentemente, das composições cada vez mais profundas de Jim Morrison. Assim como nos discos anteriores, o álbum terminava com uma peça mais longa e repleta de viradas e mudanças de andamento, que sinalizava reflexões severas sobre o zeitgeist e os confins da alma humana - se em outros momentos, "The End" havia sido a regressão psicótica ao edipianismo xamânico, e "When the Music is Over" era um brado feroz ao momento em que o 'id' desperta ante as neuroses de uma sociedade doente, tínhamos agora um registro irônico e apoteótico sobre "o desfile lento" (the soft parade), o carnavalesco cenário de cores, atores e dissabores que os Doors vivenciavam em sua trajetória, tecendo críticas ao próprio mundo artístico e às hipocrisias e obsessões de Los Angeles, sua fauna e flora de pseudo-divindades nulas e efêmeras. Nem mesmo a claustrofóbica sensação de fanatismo religioso do espírito ianque se safava na sorumbática introdução recitada por Morrison.

When I was back there in seminary school
There was a person there who put forth the proposition
That you can petition the Lord with prayer
Petition the Lord with prayer
Petition the Lord with prayer
You cannot petition the Lord with prayer!

(Quando eu estava no seminário
Havia uma pessoa que colocou a seguinte proposição
De que você pode suplicar ao Senhor com oração
Suplicar ao Senhor com oração
Suplicar ao Senhor com oração
Você não pode suplicar ao Senhor com oração!)

Em canções como "Shaman's Blues" e "Wild Child", há os blues de bar, encharcados do clima jazzístico psicodélico e as habituais nuanças místicas do grupo, construindo paisagens que acolchoassem a voz cada vez mais etílica de Morrison, e estão com certeza entre os momentos clássicos da banda, ao passo que "Runnin' Blue" é uma simpática composição de Krieger (onde ele também canta), que envereda pelo caminho do country em seu atípico e inesperado refrão, e "Easy Ride" joga os Doors num trajeto de boogie e soul como nunca antes executado pela banda - é diferente, por isso o susto dos ouvintes! 

A épica "Tell All the People" e a belíssima e lírica balada "Wishful Sinful", com suas passagens orquestrais dissonantes, já haviam saído anteriormente ao LP como singles, da mesma forma que "Touch Me", e de certa forma, esses lançamentos prenunciavam o que realmente estava acontecendo com os Doors, e as causas de todas as mudanças: o extremo nível interno de estafa do grupo. Era muita correria para compor e organizar novo material entre um show e outro, a pressão da gravadora e do produtor Paul Rothchild (cada vez mais exigente no estúdio), e toda a ovação de fãs e da mídia, com espetáculos cada vez mais lotados.

A turnê que se seguiu ao lançamento do disco anterior, o Waiting for the Sun, foi uma das mais longas e caóticas da história da banda, com Jim Morrison simplesmente "pirando o cabeção", e digressões na Europa que entraram para a história, pelo nível de loucura e substâncias estupefacientes envolvidas. Durante um show em 15 de setembro de 1968, em Amsterdam, na Holanda, onde estavam se apresentando em uma gig conjunta com o grupo Jefferson Airplane, Morrison acabou tomando todas e consumindo um bloco inteiro de haxixe, o que fez o cantor perder totalmente os sentidos e ser hospitalizado. 

Durante show no Roundhouse, de Londres, em 1968

Ray Manzarek conta, em sua biografia, que foi nessa época que Morrison começou a pensar seriamente em desistir da carreira de músico e se dedicar em tempo integral à escrita e à poesia, mas foi convencido por ele, os outros músicos e o empresário da banda a prosseguir durante mais um tempo, ainda que já demonstrasse sinais de estresse e instabilidade emocional, situação agravada por uma ingestão cada vez maior de bebidas alcoólicas (que, com o tempo, se tornariam o principal vício do cantor). Intimamente, Morrison contestava cada vez mais a própria imagem sexy e de culto criada ao redor de si mesmo, e aos poucos, operaria uma mudança em seu próprio visual para reforçar isso, abandonando o visual de roupas de couro e as performances lascivas, deixando crescer a barba, engordando um pouco, e usando roupas comuns e desleixadas, quase como as de um universitário.

Toda essa pressão irá culminar com o fatídico "Incidente de Miami", o mítico show de 1º de março de 1969 na cidade, em que o vocalista dos Doors, ainda mais ébrio do que o habitual, levou ao extremo a ideia de desafiar a plateia sobre a visão que tinham dele como ídolo, e se exibiu (ou sugeriu exibições) de suas partes íntimas, ocasionando um tumulto sem precedentes, a destruição do local do show pelos fãs, e sendo processado por atentado ao pudor, à moral e os bons costumes, pela justiça dos EUA. Dali em diante, o que se viu foi o primeiro grande cancelamento de artistas na história da música pop, mesmo antes das redes sociais terem sido criadas e esse termo ter se popularizado tanto. Os Doors foram simplesmente banidos de todas as rádios comerciais americanas, e de quase todos os festivais, concertos e eventos dos quais iriam participar. Se tornaram praticamente marginais.

Depois disso, a história é bem sabida: a banda aos poucos recuperaria sua notoriedade e teria ainda uma rápida sobrevida, com o lançamento dos excelentes álbuns Morrison Hotel (1970), e L.A. Woman (1971), onde retornariam ao rock básico e com doses maciças de blues, que agradariam em cheio público e crítica e ainda terminariam por angariar novos fãs, mas logo após a gravação desse último disco, Morrison toma definitivamente a decisão de deixar o grupo durante uns tempos, e parte em um exílio artístico e amoroso para Paris, na França, com sua companheira Pamela Courson. De onde jamais voltaria.



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