quinta-feira, 4 de abril de 2024

A MÃO DIREITA E A MÃO ESQUERDA DO DIABO

 

A reconstrução de algo passa por sua desconstrução. E, nos agora distantes anos 1970, um gênero clássico de cinema que parecia agonizar e passar por seus últimos suspiros - o western, bom e velho filme de cowboy - via continuar emergindo a sua vertente lúgubre, zombeteira, e extremamente realista, que buscava pintar de extremos vermelho sangue e cinismo as paisagens áridas das terras americanas sem lei. Eram os faroestes produzidos na Itália, os famigerados e pródigos western spaghetti, ou bangue-bangues à italiana, como também passaram a ser conhecidos no Brasil.

Eles reinventaram o gênero? Ou foram, afinal, o prego final na tampa do caixão?

Conclusões por conta de cada um... Apenas penso que o western, na verdade, nunca morreu, apenas foi se reciclando e modernizando com os tempos. E os spaghetti foram simplesmente um desses ciclos.

Muito se especula sobre a origem do termo, sendo mais acertado afirmar que é não só uma referência pejorativa ao lugar onde produtores, diretores, atores e atrizes se faziam passar por "ianques" dos tempos de outrora, como também que o termo spaghetti se referia às enormes doses de violência nas tramas dos filmes, com o sangue cenográfico utilizado lembrando, justamente, os molhos de tomate que um bom espaguete deve ter.

Foi nesse momento histórico que uma nova ramificação, mais suave e de forte apelo popular, nasceu como subgênero, explorando uma modalidade mais cômica: eram os "faroestes espaguete de humor", perpetrados pela dupla Terence Hill e Bud Spencer.

Nascidos Mario Giuseppe Girotti (Terence), e Carlo Pedersoli (Bud), os dois atores vinham de diferentes métiers, sendo que Terence já havia participado em pontas de diversas produções clássicas do cinema europeu, como O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, alguns épicos de gladiadores, e a série de faroestes alemães Winnetou (1964), enquanto Bud era oriundo do cenário desportivo romano, tendo sido campeão de natação e pólo aquático, mas já tinha uma quedinha pela sétima arte desde novo.

Ao se embrenharem pelo mundo dos produtores de westerns spaghetti, logo os dois se encontrariam em três pérolas marcantes do movimento, lançadas em 1967, 1968 e 1969, respectivamente: Deus Perdoa... Eu NãoOs Quatro da Ave Maria, e A Colina dos Homens Maus (também conhecido como 'Boot Hill'), que constituíam uma trilogia sob a direção de Giuseppe Colizzi. Esses filmes foram grandes êxitos de bilheteria, porém mais do que isso, motivaram não só em Colizzi como em outras pessoas da equipe, bem como no público em geral, a nítida impressão e os comentários de que rolava uma "química" legal entre aquela dupla. Eles davam liga atuando. O engraçado é que, nas tramas daquelas produções, ocorria quase que uma inversão dos tipos de papéis que eles desempenhariam posteriormente: ou seja, ali, Terence Hill ainda representava o pistoleiro mais sério e taciturno, quase a la Clint Eastwood, enquanto Bud Spencer se saía como um tipo mais cômico e bonachão, desastrado e cheio de tiradas.

É em 1970 então que, sob a direção de Enzo Barboni (sob o pseudônimo E.B. Clucher), tem início uma das mais icônicas séries de filmes da história do faroeste italiano: Trinity é o Meu Nome nos apresenta os personagens Trinity (Terence Hill), o relaxado pistoleiro e caçador de recompensas conhecido como "a mão direita do diabo", por ser um dos gatilhos mais rápidos do oeste, apesar de sua imensa preguiça; e o seu meio irmão Bambino (Bud Spencer), este sendo "a mão esquerda do diabo" (por atirar bem com a canhota), e que além de ser um brucutu com um talento todo especial para pancadarias truculentas, é um (quase) ex-ladrão de gado que acabou pegando o cargo de xerife (com segundas intenções, claro) de uma cidadezinha do oeste, onde recaem sobre um grupo de pobres e indefesos mórmons as ameaças não só da gangue de um ricaço, que querem tomar suas terras, como também de um caricato grupo de bandidos mexicanos. Aqui sim, Hill passaria a representar o cara engraçadinho e malandro, bem relaxado, e Spencer seria o seu contraponto, mais seco, mal humorado e durão, o que acabou caindo como uma luva levando em conta até os tipos físicos deles.

O roteiro, na verdade, é o de menos - acaba sendo apenas um fiapo, que serve mesmo para introduzir o imenso carisma dos personagens de Trinity e Bambino, que moldam um novo jeito de fazer bangue-bangue, e que mistura não só a galhardia da arte circense e mambembe, como também a verve humorística dos grandes momentos da comédia italiana, com suas caras e bocas, maus entendidos e verborragia. Não é a toa que Hill e Spencer fariam uma memorável participação especial no programa de TV dos nossos também circenses e baderneiros 'Os Trapalhões', já na década de 1980, durante uma visita ao Brasil.

Lutas coreografadas com muito estilo pastelão e sonoplastia exagerada de socos, murros e pontapés, além de efeitos de câmera acelerada nas inacreditáveis cenas em que Trinity saca e gira o revólver não só do seu coldre como dos adversários, e muita cara feia e nervosa do Bambino, sem paciência de estar sempre caindo nos engodos do seu mano mala, trapaceiro, e louco por um rabo de saia: a dupla Hill-Spencer estabeleceu neste filme a quintessência de um estilo de western cômico e ingênuo que criaria várias imitações inferiores (alguém aí já ouviu falar da também dupla Paul Smith e Michael Coby, da série 'Carambola'?), e marcaria toda uma geração que cresceria acompanhando a dupla ao longo de vários filmes que repetiriam essa fórmula, mas não só como Trinity e faroeste, mas também ambientados nos tempos modernos, e nos formatos de aventura, policial e comédia. 




Logo acima: a célebre cena do "devorador de feijão", com Terence Hill, no Trinity original (1970). Abaixo, a dupla de imitadores da dupla Hill-Spencer que tentou fazer sucesso como eles nos faroestes, mas sem o mesmo êxito: Paul Smith e Michael Coby, em 'Carambola' (1974).

Na verdade, como sequência direta e legítima desse Trinity só haveria mais um filme, realizado no ano seguinte, o igualmente bem sucedido Trinity Ainda é o Meu Nome (1971), e que contava praticamente com a mesma equipe, dessa vez nos apresentando a família louca e desajustada dos dois irmãos, e os envolvendo em uma nova trama de defesa de religiosos ameaçados pela bandidagem (dessa vez, um grupo de monges). São películas que deixaram boas lembranças em muita gente, não só de uma geração que curtia os bangue-bangues nas matinês dos cinemas de sábado e domingo, como também de toda uma molecada que cresceu (e nessa, eu me incluo) vibrando com os tiros, acrobacias e piadinhas de Terence Hill, e os sopapos vigorosos de Bud Spencer, nas telinhas das sessões da tarde e de faroeste na TV.

Bons tempos. Mas hoje, Hill já é um senhor praticamente aposentado de todas as atividades artísticas, vivendo tranquilamente em Veneza, enquanto Spencer faleceu em 2016, após complicações decorrentes de uma queda que sofrera anos antes, em sua casa. 

Para finalizar, não poderíamos deixar de falar da belíssima trilha sonora desse filme, que também ecoa em cada um dos fãs aquele sentimento bacana e nostálgico dos assobios e melodias dos grandes clássicos de western "com sabor de pizza", como dizia um amigo meu. A canção tema original do filme, "Trinity (Titoli di Testa)" se tornaria icônica, também, por fazer parte da cena final de Django Livre, faroeste do genial Quentin Tarantino, sempre rendendo consistentes homenagens ao gênero em suas obras, e foi composta por Franco Micalizzi e gravada pelo grupo I Cantori Moderni di Alessandroni, que contava com o cantor Annibale como solista, tendo sido um dos maiores sucessos daquele ano na Itália.

Fica ela a seguir, para relembrarmos.



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