Com a popularização da internet e o advento de toda a sorte de redes sociais e disseminação maciça da informação, fatos ocorridos principalmente a partir do final da década de 90 do século passado, o mundo todo passou a ter contato com um novo tipo de movimento social que se popularizou, e se mostra cada vez mais abrangente na atualidade: os fóruns morais, as ondas de proliferação do julgamento de atitudes e reputações tidas como duvidosas, lascivas ou eticamente condenáveis. O resultado disso, invariavelmente, é o cancelamento: procedimento coletivo no qual uma figura pública é execrada, e passa a ser amplamente desprezada e abandonada pela maioria das pessoas, nas mídias sociais.
Isso pode ocorrer com figuras até não tão públicas - o notório escândalo sexual envolvendo o já falecido empresário Jeff Epstein, que voltou à tona na mais recente gestão de Donald Trump no governo dos EUA, e continua dando (e ainda vai dar) muito o que falar, é um exemplo disso. Epstein era bem conhecido, mas dentro de determinados círculos, mais ligados às esferas da política e do poder ianques.
O mesmo pode ser dito do também famoso caso envolvendo o figurão da indústria do cinema norte-americano, Harvey Weinstein, acusado de diversos abusos contra mulheres dentro do meio, banido do mundo do entretenimento e processado em 2017 após um levante intenso de denúncias de atrizes e profissionais do ramo cinematográfico, e que deu origem ao famigerado movimento feminino Me Too. Ou seja, ele também um cara de bastidores, que não era tão conhecido de modo geral pelas pessoas, até explodir o escândalo.
Mas quando a coisa começa a acontecer com figuras públicas mais proeminentes, e de destaque significativo na mídia em geral, aí é que se cria uma sensação ainda mais impactante. Um senso comum de que "essa pessoa não dava a impressão de ser assim, estava nos enganando o tempo todo".
Celebridades da mídia recentemente detonadas nos fóruns da internet, aqui no Brasil, não são poucas. Só para citar alguns exemplos mais ruidosos, em sua maioria relacionados a condutas sexuais condenáveis: o ator José Mayer, o comediante Marcius Melhem, e o também ator José Dumont (este até hoje enfrentando um pesado processo criminal, por envolvimento com pedofilia e pornografia infantil).
O caso de Mayer é curioso: um dos mais festejados galãs de telenovelas da Rede Globo durante as décadas de 1980, 1990, e início dos anos 2000, sempre se notabilizou por fazer o tipo rude e dominador com as mulheres, era uma característica que fazia parte até do sex appeal e da verve que realçava os papéis vividos pelo ator em vários folhetins. Quando ele resolveu virar a chavinha na carreira e interpretar um personagem efeminado, totalmente contrário a todos os tipos que ele já havia feito (na novela Império, de 2014), o público (principalmente o feminino) torceu o nariz, e os resultados na audiência não foram bons. Em 2017, então - mesmo ano do escândalo com Weinstein nos EUA - Mayer foi acusado de assediar uma figurinista da Globo, e viu sua carreira descer ladeira abaixo, se afastando das novelas a partir de então. Justamente numa situação real, que seria tão comum em suas antigas interpretações. Deu ruim e ficou a percepção de que as pessoas não gostaram muito da vida real imitando a arte, nesse caso. Efeito dos novos tempos e da mudança de paradigmas, com o movimento Me Too?
Nos EUA, então, o tribunal da internet foi avassalador, e deu muito trabalho nas redes sociais. Um monte de gente do ramo artístico foi condenada, alguns até judicialmente, por condutas consideradas inapropriadas.
A coisa começou ainda no comecinho dos anos 2000 - portanto, bem antes dos escândalos Epstein/Weinstein - e com um caso meio apagado hoje em dia, mas envolvendo um ator tão popular e querido, que ainda é difícil de engolir: lembra-se do diretor de colégio irado que persegue o mala Ferris Bueller, no clássico de sessão da tarde Curtindo a Vida Adoidado, o hilário ator Jeffrey Jones? Pois bem, em 2003 foi acusado de posse de pornografia infantil, e de solicitar nudes a um garoto de 14 anos. Foi preso, fez um acordo com a justiça norte-americana para ficar em liberdade... mas a carreira, já era.
Esse foi um dos principais, e um dos maiores baques em toda a comunidade artística de Hollywood, tamanho o apreço pelo talento do cara, inclusive já oscarizado: Kevin Spacey, o célebre intérprete de papéis icônicos, em filmes como Os Suspeitos (1995), Beleza Americana (1999), e a série House of Cards (2017). Suspeito de assediar o também ator Anthony Rapp e outros rapazes mais jovens, Spacey tem enfrentado desde então sérias acusações, e recentemente deu entrevistas sobre as dificuldades financeiras por que vem passando devido aos processos judiciais para se defender, e como tem sido árdua a tentativa de voltar a atuar.
Outros que também ficaram com o filme bastante queimado, após denúncias: o popular comediante Bill Cosby (abuso sexual de mulheres com uso de drogas), o ator e diretor Woody Allen (assédio de sua filha adotiva com a atriz Mia Farrow), e o ator James Franco (assédio e abuso de atrizes iniciantes, em sua escola de atuação).
Já no ramo musical, sobre o ainda fervente caso do rapper americano Sean Combs, conhecido como P. Diddy... bem, está impregnado em todos os sites, nem é preciso falar muito.
Mas existe um caso escabroso, hoje já bem esquecido, e que no Brasil nem foi muito divulgado. Mas que assusta e surpreende pela extrema longevidade e circunstâncias sinistras em que ocorreu, na Inglaterra: a tétrica e absurda história do DJ e figura midiática Jimmy Savile (1926-2011), retratado no chocante documentário Os Segredos e Crimes de Jimmy Savile (Jimmy Savile - A British Horror Story, 2023).
Vindo de Leeds, na região norte da Inglaterra, Savile era uma figura exótica, dono de uma comicidade e carisma bastante peculiares, que o levaram a galgar a carreira de radialista. Isso foi um pulo para o seu ingresso na televisão britânica (através da BBC, de Londres). Apostando em um visual atípico, e dono de bordões e tiradas humorísticas convenientemente agregadas aos vários programas de TV nos quais passou a atuar como apresentador, ele se tornou um dos grandes chamarizes de audiência do canal a partir do início da década de 1960, e dali em diante, foi só sucesso.
Como mestre de cerimônias de grandes festivais e eventos da cultura pop (dentre eles, o icônico programa musical Top of the Pops, levado ao ar por mais de cinco décadas), Savile passou a fazer muitos contatos e desfilar com desenvoltura por entre as mais altas camadas da sociedade inglesa da época, amigo tanto de pop stars do calibre de Beatles e Rolling Stones, como de membros do governo e da realeza britânica, que pareavam bonito com ele, em decorrência de seu enorme prestígio junto ao "povão", a classe mais baixa e trabalhadora do Reino Unido.
Ele tinha aquela mesma verve e conversa tão típicas e populares de artistas como (traçando um paralelo) o pessoal dos programas do SBT aqui do Brasil, na década de 1980. Na verdade, não seria nem um pouco difícil imaginar Savile como um personagem fanfarrão e barulhento, ao lado de Pedro de Lara e Sérgio Mallandro, nos shows de calouros da emissora de Silvio Santos. O tipo de comunicador histriônico e popularesco, tão em voga durante os anos de ouro de várias emissoras de TV no mundo.
De uma forma insólita, Savile passou a desenvolver um tino incomum para a filantropia: as suas atividades como idealizador e entusiasta de campanhas milionárias para arrecadar fundos e imensas quantidades em doações para casas de repouso, clínicas e hospitais, na Inglaterra, passou a se tornar quase que uma marca registrada sua, ao mesmo tempo em que o seu mais célebre programa na BBC TV a partir de 1975, o Jim'll Fix It ("Jim vai dar um jeito nisso") era uma atração em que ele recebia cartinhas de crianças de todo o Reino Unido pedindo para realizarem seus desejos, e se tornaria uma das maiores audiências do canal até hoje. E o mais insólito de tudo: além de todo esse "bem comum" promovido com tanto ímpeto e empolgação, o homem ainda arrumava tempo para trabalhar pessoalmente, como ajudante voluntário, nas mesmas instituições para as quais ele promovia campanhas, em alguns dias e horários da semana.
Incrível como, sendo uma pessoa pública, ele conseguia fazer isso. Mais incrível, ainda, como ele conseguiu as oportunidades (e a liberdade) para fazer outras coisas mais.
Com o passar dos anos, Savile se tornou uma espécie de "assessor informal" da própria família real britânica, sendo visto com frequência em eventos que contavam com a participação do então Príncipe Charles e Princesa Diana, e assim que a famigerada primeira-ministra Margaret Thatcher subiu ao poder, Savile começou a fazer parte também do seu círculo social, e mais: tamanha era a sua influência sobre a "dama de ferro" (como ficou conhecida na época), que Thatcher simplesmente passou a frequentemente sugerir e pressionar a Rainha Elizabeth para que a O.B.E. - Order of the British Empire (Ordem do Império Britânico), concedesse a sua tradicional honraria, o nobre título de "Sir" e cavaleiro da ordem, reservado a cidadãos ingleses de notável relevância, para Savile. Na época em que isso ocorreu, estranhos rumores sobre a personalidade enigmática dele já eram ventilados em alguns meios da imprensa escrita. Mas, mesmo assim, em 1990, ele foi condecorado pelo Império Britânico.
Com o advento da internet, conforme falamos lá no início deste texto, as informações "paralelas" e "subterrâneas", fatos que chegavam a ser encaminhados e difundidos entre os jornalistas, mas que simplesmente emperravam e não seguiam em frente para publicação nos grandes jornais e tabloides ingleses, começaram a lentamente tomar conta das primeiras redes sociais, e em alguns sites pioneiros, a imagem de Savile começou a ficar chamuscada. Começavam a aparecer, enfim, os primeiros relatos dando conta de que o até então carismático e festejado veterano do showbiz era, na verdade, um voraz predador sexual, que fazia vítimas em todos os estabelecimentos de saúde destinados a pessoas vulneráveis e doentes mentais, e com especial predileção por menores de idade - um contumaz pedófilo, além de tudo. O cenário de horrores e testemunhos de perversidade que começou a surgir, a partir disso, seria de arrepiar.
Mas, em outubro de 2011, Jimmy Savile falece, em sua casa em Leeds, após uma forte crise de pneumonia. A sua reputação ainda estava intacta, na época - seu funeral foi disputadíssimo e repleto de celebridades e extensas comunidades de fãs. Agora que ele estava morto, apenas alguns meses depois é que, provavelmente pela falta de sua própria "intervenção" para abafar os rumores (Savile tinha vários amigos de uma corporação de velhos policiais, além de advogados), a imprensa britânica enfim passou a investigar e divulgar livremente todos os abusos cometidos por ele em vida.
A coletânea de relatos bizarros das vítimas era aterrorizante. Em uma contagem inicial, mais de sessenta pessoas haviam sido vítimas dos ataques de Savile, entre 1968 e 1992, em nada menos do que 28 diferentes hospitais que ele frequentava, na Inglaterra. Jovens vítimas menores de idade, garotas entre 11 e 14 anos, cooptadas nas próprias plateias de alguns de seus shows na TV, também entravam na contabilidade dos abusos. Um quadro criminal assombroso.
Mais incrível ainda eram as próprias deixas que Savile dava de seu comportamento ensandecido, sempre dando respostas sugestivas e intrigantes, em diversas entrevistas e aparições suas na TV, que aludiam a situações sexistas ou em que ele seria pretensamente capaz de abusos. Uma frase sua que ficaria tristemente conhecida, e proferida pelo mesmo diversas vezes ao longo dos anos, foi "na próxima quinta-feira, meu caso será divulgado". Mas tudo era dito em um tom tão zombeteiro e de paródia, típico de suas atuações humorísticas, que todas as pessoas riam e levavam a coisa na brincadeira, nada era considerado como algo sério.
Savile não chegou a pagar por nenhum dos seus delitos em vida, ele caiu fora antes. Um dos jornalistas que o conheceu e entrevistou algumas vezes relata suas impressões acerca da psicose maníaca de Savile: "ele tinha os dois lados, o bom e o mau, porque era um fanático religioso, extremamente católico. Então nada me afasta da ideia, sugerida por ele mesmo certa vez, de que quando as pessoas morrem e chegam nas portas do céu, é muito difícil entrar. Todos tem erros e todos são pecadores. Mas então ele, quando fosse encarar Deus e São Pedro, iria mostrar essa lista de um lado, com suas atrocidades, e mostrar a outra, com tudo de bom e as caridades que fez, na esperança de que compensassem as maldades, e garantissem a sua entrada no céu."
Bizarro. Que doentio.
Para quem quiser conferir, o interessantíssimo e bem produzido documentário 'Segredos e Crimes de Jimmy Savile' está disponível no catálogo da Netflix.
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