segunda-feira, 24 de novembro de 2025

EXPECTATIVA DA ARTE X EXPECTATIVA DA REALIDADE

 

Eu não assisti a tão comentada série da Prime Video, Tremembé (2025). Lançada agora em novembro, e que romantiza os casos da vivência diária de criminosos célebres brasileiros, como Suzane Von Richthofen, os Nardoni, Elize Matsunaga, e outros, na também célebre prisão paulista.

Não vi, e penso que tampouco vou querer ver. 

Andei lendo algumas coisas a respeito, sobre a opção pela visão artística "excêntrica" adotada pela obra, e achei melhor gastar o meu cada vez mais esparso tempo com outras formas de entretenimento, mais interessantes. A gente vai aprendendo a ficar mais seletivo com a idade, e em decorrência de tantas coisas que as mídias modernas vão oferecendo. Assim, acaba não tendo jeito mesmo de acompanhar tudo.

Venho sempre me lembrando de uma coisa muito curiosa: como que o mundo das artes adora alterar ou subverter a realidade dos fatos, em suas adaptações. Tem um depoimento deveras interessante do grande psiquiatra forense Dr. Guido Palomba (sou admirador) no podcast Inteligência Ltda., falando justamente a respeito disso, alguns dias após toda a celeuma e hype gerados pelo lançamento da série, e que é bem interessante de se ponderar a respeito. Dá só uma olhada:


Nunca nos enganemos: a grande verdade por trás de toda e qualquer adaptação de fatos reais para o mundo da arte acaba resvalando em um fator extremamente preponderante - e que se chama lucro, dinheiro. O negócio é chamar atenção e atrair o espectador. Às vezes, a verdade não é tão interessante para abrilhantar ou causar a expectativa que circunda o espetáculo - e espetáculo é algo que as plateias querem, mais até do que a verdade. Isso se torna um agravante para quem procura fidelidade, verossimilhança, ou o mínimo de bom senso em histórias que deveriam, primordialmente, retratar a realidade.

Dois casos bem interessantes de adaptação subversiva me vem à memória imediatamente, e que pessoalmente acompanhei na exata época em que ocorreram, ambos gerados pela megalomaníaca mídia de Hollywood nos idos da virada entre as décadas de 1980 e 90, do século passado. Ambos abordando grandes estrelas do rock, de eras diferentes, mas retratadas com toda a fleuma de mudanças e liberdades artísticas que caracterizam tanto esses tipos de empreitada: os filmes (e sucessos de bilheteria) La Bamba (de 1987), e The Doors (de 1991).

'La Bamba' (1987), com Lou Diamond Philips no papel de Ritchie Valens

O primeiro caso, a cinebiografia do cantor e compositor descendente de mexicanos Ritchie Valens - que pertenceu à geração inicial do rock and roll do final da década de 1950, e faleceu no trágico acidente aéreo que também vitimou os astros da época Buddy Holly e Big Bopper - veio embalado em todo o revival de rockabilly e músicas das antigas que os EUA viviam no período entre 1985 e 1989, com filmes como Stand By Me (Conta Comigo) e Dirty Dancing (Ritmo Quente) retratando aqueles "anos dourados" e com trilhas sonoras saudosistas, unindo a isso o fato do diretor Luis Valdez - fã de Valens e sua lendária versão rock para a canção folclórica "La Bamba", de 1958 - ter conseguido convencer os estúdios da Columbia Pictures a bancar o seu roteiro sobre a história de Valens e sua família, que ele ficou conhecendo e entrevistou ao longo dos anos anteriores, de forma a retratar a sua meteórica trajetória e morte precoce.

A verdade é que Valdez aproveitou todo o clima de celebração em torno dos dourados anos 50, aquele clima de oldies que estava em voga em Los Angeles, na época, e maquiou e "exagerou" alguns aspectos da história real, que hoje, graças à internet e todos os meios de pesquisa e comunicação de que dispomos, são fáceis de descobrir. Mais "cheinho" e com um aspecto latino bem mais acentuado na vida real, o verdadeiro Ritchie Valens nunca teve o sex appeal demonstrado pelo seu intérprete nas telonas, o ator Lou Diamond Phillips (fato bastante comentado, alguns anos depois), a sua relação com o irmão rebelde Bob (papel de Esai Morales) não era tão conturbada na vida real, e o seu romance com a jovem estudante Donna (Danielle Von Zerneck) também não foi tão longo e nem passara por contratempos tão dramáticos como no filme, apesar dos pais da moça realmente terem se mostrado contra o namoro. Obviamente, ocorreu toda uma "romantização" mais intensa da história de Valens, para mostrá-la mais dramática, e assim comover mais e obter maior aproximação com o público que lotou os cinemas na época.

O verdadeiro Ritchie Valens, em foto de 1957

Atualmente, se fala na possibilidade de uma nova adaptação cinematográfica da história de Ritchie Valens, e que seria (pretensamente) mais próxima da realidade dos personagens. Será?

Já no caso de The Doors, do célebre cineasta Oliver Stone, versão para os cinemas da vida e carreira do vocalista e letrista da banda, o mítico Jim Morrison, a coisa ficou um pouco mais grave, pois Stone colocou no papel de Morrison um ator que, incrivelmente, se transformou nele, vivendo uma caracterização e simbiose tão extrema com o personagem, que muitos na época chegaram até a confundir a sua voz cantando as músicas dos Doors: o excelente, e já falecido, Val Kilmer.

Val Kilmer como Jim Morrison, no filme 'The Doors' (1991)

Apesar de Kilmer ter ficado idêntico ao cantor, em visual e interpretação, o que na época ensejou muitas pessoas a dizerem que ele mereceria até concorrer ao Oscar, algumas críticas à forma como o filme foi feito choveram pesado.

Aqui, o grande problema da adaptação reside na maneira com que o roteiro trabalhou a persona do protagonista: pessoas íntimas, amigos e parceiros de banda do cantor, na vida real, reclamaram desde o primeiro instante sobre o caráter altamente fantasioso da personalidade de Morrison e de todos os acontecimentos envolvendo o grupo, no enredo do filme.  



A comparação entre a sessão de fotos original feita pelo verdadeiro Jim Morrison, em 1967, e a reprodução por Val Kilmer para o filme de Oliver Stone, em 1991

Ray Manzarek, tecladista e companheiro do vocalista desde o início do grupo, foi o primeiro a levantar a voz, em entrevista na época do lançamento do filme: "Cara, aquele filme mexe com energias muito pesadas. Alertamos Stone sobre o que ele estava fazendo com a imagem do Jim. Eu conheci o verdadeiro Jim Morrison e sim, ele tinha seus momentos malucos e era capaz de fazer todas aquelas loucuras que estão retratadas no filme, mas ele não era nunca, absolutamente, o cara insano 24 horas direto que Oliver Stone quer que as pessoas vejam ali, não mesmo. Ele apenas tinha seus momentos, mas Jim era um cara extremamente doce, gentil, muito humano, e tímido até, na maioria das vezes. Aquele homem no filme não é o Jim Morrison que eu conheci."

Revoltado, Ray acabaria bancando e filmando pouco tempo depois um documentário próprio seu, The Soft Parade (1992), onde ele contava a sua própria versão da história de Jim Morrison e os Doors.

Jim Morrison

John Densmore, baterista dos Doors, também testemunharia contra: "Oliver Stone mandou o roteiro para todos nós lermos, antes de começar a filmar. Chegamos a relatar coisas para ele sobre a época, situações que vivemos, em shows, na estrada, e demos uma espécie de consultoria. Pessoalmente, acho a visão de Stone para as coisas brilhante, ele é um dos melhores cineastas da atualidade, na minha opinião. Então, é óbvio que se você me perguntasse, eu preferia mais que ele fizesse esse filme do que qualquer outro cineasta, que poderia ter um enfoque medíocre. Mas o problema é que ele simplesmente exagerou em certas coisas."

Pior é a opinião de Patricia Kennealy, jornalista e "sacerdotisa" de uma seita da época em Los Angeles, uma das muitas ex-amantes de Jim Morrison, e que também é retratada no filme: "Fiquei decepcionada quando vi o corte final. Apesar de eu estar na trama, não concordo com o que vi ali. Não mostra o Jim poeta, o homem intelectual, erudito, e apaixonado. É só Jim, o escroto, o tempo todo."


Bem, talvez não tenha sido culpa exclusivamente do Oliver Stone. O mundo das artes tem dessas coisas: sabe lá se algum produtor mais mala ou algum revisor de roteiro espertalhão foi lá e leu alguma coisa, ou assistiu alguma cena para avaliação, e disse "nossa, mas isso aconteceu assim mesmo? Isso está chato demais, o público vai abrir a boca de sono, ninguém vai gostar!" - pois é, perigos de ter que enfrentar o que a vida real é, muitas das vezes, não? Chata mesmo (rs).

Paradoxalmente, em certos momentos mais recentes, Hollywood parece querer se desculpar desses "arroubos" de licença artística do passado, e andam aparecendo algumas cinebiografias que prezam mais pela autenticidade dos fatos.

O caso mais recente é o aclamado e oscarizado Oppenheimer (2023), de Christopher Nolan, que levou a cobiçada estatueta para casa, bem como o intérprete do personagem (pai da bomba atômica), o talentoso Cillian Murphy. Cineasta técnico e super detalhista, Nolan se preocupou em buscar a máxima verossimilhança com os fatos reais, tal qual ocorreram - ainda que, em alguns pequenos momentos, de importância não muito considerável, ele também tenha dado algumas mexidinhas nos fatos. Mas de forma a privilegiar a narrativa, claro.

De qualquer forma, me tornei bastante restritivo em relação a adaptações. 

Tem que ser muito bem feitas, e espelharem muito bem a realidade - sob o risco de que as novas gerações (e as próximas, que virão), tomem o que está ali como verdade absoluta e irrefutável dos fatos apresentados, o que demonstra uma inevitável responsabilidade histórica que a arte pode ter, em certos momentos. 

Atualmente, entre uma adaptação cinematográfica (por melhor que seja), e um bom documentário, o que prefiro? Acho que nem preciso dizer.

Robert Oppenheimer: à esquerda, o verdadeiro. 
À direita, interpretado por Cillian Murphy, no filme de 2023.



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