sexta-feira, 18 de julho de 2025

O SUBTEXTO PRECIOSO DE UM CLÁSSICO DO HORROR

 

Quando foi originalmente lançado, em dezembro de 1973, O Homem de Palha (The Wicker Man), parecia ser apenas mais um exemplar do vigoroso tipo de horror moderno que tinha virado sensação naqueles tempos, explorando a tensão de se conviver com pessoas em uma realidade que se tornava estranha e sufocante, permeada por símbolos macabros, rituais e seitas, herdeiro direto que era das convenções estabelecidas alguns anos antes, pelo grande sucesso de bilheteria que fora O Bebê de Rosemary (1968), do cineasta Roman Polanski.


A trama acompanhava as agruras de um investigador de polícia escocês, o Sargento Howie (vivido pelo ator Edward Woodward, popular em séries britânicas de TV), que desembarca na pequena ilha vizinha de Summerisle, para investigar o desaparecimento de uma adolescente chamada Rowan, noticiado em uma correspondência anônima, e o que ele acaba encontrando na comunidade local acabará soando muito mais sinistro do que aquela aparente ocorrência misteriosa: um povo que desconhece e ignora totalmente a existência da menina e o seu sumiço, e que são adeptos de rituais pagãos e costumes ancestrais celtas, desprezando o modo de vida da sociedade civilizada e cristã. 

Uma sociedade anacrônica, apegada a ritos antigos e medievais, que acredita nas danças folclóricas de maio para homenagear deuses e melhorar colheitas, cultua o poder da libido e dos símbolos fálicos, e que utiliza sapos para curar dores de garganta nas crianças.

Não tarda para que o casto e fervorosamente católico Sgt. Howie logo bata de frente com os moradores locais por conta dessas diferenças de costumes, com destaque para duas personagens icônicas da trama: a belíssima Willow (interpretada por Britt Ekland), filha do dono de uma taberna/pousada local, e que passa a se oferecer para ele incessantemente - a cena em que ela canta nua para seduzi-lo, o despertando do sono e o tentando durante a noite na pousada, é uma das mais antológicas do filme; e o prefeito do lugarejo, Lord Summerisle, desempenhado com grande leveza, sarcasmo e elegância pelo grande e inesquecível Christopher Lee (num papel bem atípico em sua carreira, marcada por vampiros e vilões mais sérios). É no embate de palavras e ideias com o lorde que Howie começa a realmente se dar conta da arapuca em que se meteu, e que todas as coisas naquela ilha não são exatamente o que parecem ser, passando a representar grande perigo.

Inspetor Howie interroga a turma zombeteira da taberna, em 'Wicker Man' (1973)

Ir além dessa descrição do plot seria spoiler gratuito, e um atentado às surpresas de uma obra tão surpreendente, para quem até hoje não viu. Wicker Man é um daqueles cult movies (matéria especial sobre esse tipo de filme aqui), que aconteceram timidamente na época de seu lançamento, quase sem nenhuma repercussão, mas que depois foi gerando burburinho, fascinando e influenciando uma legião de admiradores, ao longo das décadas e anos seguintes, fazendo até com que uma campanha na internet, feita por fãs no Facebook inglês em 2013 (uma das primeiras em prol de um filme), exigisse e conseguisse o relançamento da cópia original e sem cortes, no mesmo ano. Muito disso se deve ao clima altamente místico da película, conduzida em ritmo lento e por vezes satírico, musical até (são vários os números envolvendo o uso de canções celtas e folclóricas), mas que mantém uma atmosfera sombria e intensa de suspense, até a conclusão totalmente inesperada (e niilista) da história. 

Christopher Lee: impagável como o Lorde Summerisle

Não obstante, Wicker Man passou a influenciar um grande número de produções de suspense e terror - sendo talvez a mais famosa delas um outro filme sobre seitas pagãs, o instigante Midsommar (2019), dirigido por Ari Aster, e que levou Florence Pugh ao estrelato, no papel principal.

Há todo um clima sugestivo de conspiração em volta do protagonista, típico do flerte com a paranoia e as produções de terror da época, mas para além disso, há um subtexto precioso no filme, que nos faz inclusive pensar em como seria a sua recepção hoje, relacionado ao que acontece com tantos filmes que são lançados e "julgados" no tribunal das redes sociais, algo tão recorrente em tempos atuais.

Há uma tendência e "mania" do público de rotular obras de arte recentes como woke ou não, classificar se tal história se assume como viés conservador, moralista ou não, se é progressista ou libertária (libertina também?). Como se, para criar um filme, uma música, ou representação artística qualquer, fosse compulsório que exista ali um posicionamento, a defesa de uma ideologia ou visão de mundo. E nisso, a arte - que deveria ser enxergada como mero espelho da sociedade, e ponto de reflexão sobre o que acontece no cotidiano ou vida real - passa a ser também considerada "objeto" de acusações, e assim como personas e figuras públicas, passa a se sentar no banco dos réus da maldita inquisição digital, palco dessas execuções sumárias de gente que, lamentavelmente, não tem olhar crítico e sensato para contemplar e refletir, antes de jorrar verbo insensato em redes sociais (para tentar causar e "lacrar").

As diferentes posturas contrapostas no filme Wicker Man, entre o sargento Howie e a população pagã de Summerisle, nos remetem à própria armadilha mental e moral do maniqueísmo, em que um lado só é o bom, e o outro lado só é o mal, sempre, e pronto e acabou. Não é assim. Como nunca foi, e nunca será. Ao mesmo tempo em que o policial é uma figura em defesa de sua verdade, assombrado e aviltado (e, óbvio, assediado) pela comunidade da ilha, também eles tem a sua razão de ser em decorrência de um forasteiro que chega e desdenha de seus costumes, suas danças e canções, e de todas as suas tradições estranhas diante da modernidade - mas que não são estranhas para eles, moradores daquele local inóspito e tradicional, esquecido pelo tempo e pela igreja. 

Não há lado absolutamente bom, e lado absolutamente mal, afinal. Pois todos tem a sua razão de ser. As circunstâncias e conveniências é que irão delimitar, e criar parâmetros - mas até nisso, há de sermos atenciosos em relação ao que é, de fato, parâmetro. Para se mesurar, calcular, e apenas então, e somente então e talvez, fazer juízo de uma conduta. 

Como a população de Summerisle - que parece todo o tempo saber de alguma coisa, e esconder do sargento - seria vista, por uma grande parte da audiência nivelada por baixo, que temos hoje em vários cantos da internet? Vilões? Simples cidadãos travessos, que querem apenas aprontar, beber e pregar peças, para as festividades da Rainha de Maio? Bem, talvez eles tenham um propósito mais espiritual. Mais de acordo com as suas crenças. E isso... bem, sinto muito lhes contar, mas isso é normal. Isso é humano. 

Hoje, as pessoas querem se expressar, e opinar. Falar. E falar absolvendo, ou condenando - todo mundo sofrendo desse mal chamado "juizite". Há exagero de canais e oportunidades para isso. Mas a questão é que palavras não são suficientes, muitas das vezes, para decidir ou elaborar sobre o que está no pensamento coletivo, ou no zeitgeist. Para isso, temos a expressão artística: as músicas, as peças, os livros, e filmes... Tanta coisa pensada e criada para ser não uma peça de acusação ou de defesa, não. Mas para ser, tão somente, uma obra de arte - um ponto de inflexão e reflexão da visão humana sobre a sociedade, em que está inserida.

E tendo em vista tantos filmes, criticados e rebaixados ultimamente por questões meramente 'ideológicas', seria interessante começar a percebê-los mais por suas características técnicas e meramente artísticas, e chegarmos a um acordo:

Deixemos que a arte fale por si só.


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