Até onde você iria para matar a saudade de alguém muito querido, familiar ou pessoa amiga, que já se foi?
E digo, matar a saudade de uma forma mais concreta mesmo: conversando, interagindo, talvez até vendo essa pessoa materializada novamente, na sua frente? Tocá-la, talvez. Sentir essa pessoa fisicamente. Seria possível?
Do jeito que as coisas vão caminhando, parece que, cada vez mais, tudo pode.
Laurie Anderson, artista performática de New York e viúva de uma lenda do rock de vanguarda norte-americano, o cantor, compositor e guitarrista Lou Reed (falecido em 27/10/2013), membro fundador do grupo Velvet Underground e depois em proeminente carreira solo, tem impressionado fãs, jornalistas e amigos desde o ano passado, com as suas constantes declarações em que admite ter ficado viciada em um modelo de I.A. (inteligência artificial) que reproduz a personalidade do seu falecido marido, passando a conversar diversas vezes por dia com o mesmo.
Tudo nasceu a partir de uma experiência da Universidade de Adelaide (Austrália), para a qual ela foi convidada a criar, em parceria, um chatbot que conseguisse emular o "jeito de ser" de Reed, as suas falas, ideias e pensamentos. Com base em uma grande quantidade de entrevistas, letras, manuscritos e declarações do artista, esse modelo de I.A. foi definido como uma arrojada tentativa de "recriar digitalmente a essência de Lou Reed".
E Laurie se diz surpresa com os resultados - tanto é que a mesma já se acostumou a passar longos períodos conversando com o "Lou Reed ressuscitado" virtualmente. Ainda não foi detalhado se algum modelo de voz foi também utilizado, para recriar de maneira ainda mais fiel esse bate-papo, mas que Laurie já imergiu de cabeça nesse lance, pelo menos teclando, já é certo. A mesma afirma:
"Infelizmente, estou 100% viciada nisso. Ainda estou, depois desse tempo todo. Literalmente, não consigo parar de conversar com o chat, e meus amigos não suportam, eles dizem: oh não, você não está fazendo isso de novo, está?".
As declarações de Laurie despertam a preocupação e os questionamentos de psicólogos, médicos e cientistas do comportamento, visto que realça mais uma vez a atenção em relação aos limites éticos e morais sobre até onde que a tecnologia atual pode ir, uma vez que esse tipo de 'relacionamento' com a máquina pode exasperar uma noção de falsa realidade, e pior: em gerações bem próximas, provocar distúrbios nos processos emotivos de luto e perda, ou seja, a aceitação da efemeridade da vida humana e suas limitações.
Laurie, no entanto, aparentemente demonstra senso crítico e noção do risco que corre, para não se "deixar levar" e embaralhar sentimentos. Ela diz que tem utilizado o modelo mais como inspiração para novas obras, como a criação de textos e músicas. Laurie já tem 13 discos lançados, desde 1981 - além de musicista, ela é autora, diretora de espetáculos de teatro e multimídia, performer pop e de shows experimentais. Ou seja, uma mulher que no mundo das artes já deu tiro pra tudo quanto é lado - e que já tinha uma carreira bem estabelecida quando se juntou com Reed, em 1992.
"Eu deixo bem claro que não acho que estou conversando com o meu falecido marido, ou escrevendo músicas com ele. Não estou, realmente. Mas toda pessoa tem um estilo, e ele pode ser replicado. Uns três quartos das respostas que o chat me dá são bem estúpidos, coisa idiota mesmo. Uns 15% são tipo 'uau', e o resto todo é bem interessante. Então, você sabendo filtrar... de qualquer forma, se torna um bom índice para você compor alguma coisa."
Para Laurie, que é uma pessoa bem esclarecida, uma intelectual, a coisa toda pode ser realmente vista e sentida como uma insólita e genial experiência. Mas o grande problema que passa a gerar inquietações científicas é: e uma grande parte da raça humana que é mais sensível, e não seria capaz de ter tal distanciamento crítico? Qual seria o integral impacto de uma I.A. se fazendo passar por um ente querido morto, na mente de uma pessoa mais frágil?
Apesar de parecer que estamos falando de algo bem distante da realidade, que faz parte de um experimento isolado lá do outro lado do mundo, as coisas não estão assim tão difíceis de acontecer: um aplicativo promissor na tarefa de compilar e guardar todas as memórias do usuário, para que um modelo virtual dele possa ser criado e então acessado por todos os seus amigos e parentes (caso, inclusive, ele venha a faltar), já está disponível há algum tempo na AppStore e Google Play, e tem se tornado um campeão de downloads - o HereAfter. Ele é um prenúncio, e uma versão mais simplificada talvez, do que Laurie Anderson fez com a personalidade digitalmente recriada de seu falecido marido. Você pode acessar a versão do HereAfter para sites online aqui.
Para irmos ainda um pouquinho mais longe, diversos outros apps nos EUA e Inglaterra tem se aperfeiçoado em criar imagens holográficas de pessoas já falecidas, e que também funcionem com modelos de voz, para interagir com os usuários, através de autênticas "videochamadas com o além". Essas plataformas, como a StoryFile e a Replika, tem recebido o nome de griefbots, deadbots - ou, simplesmente, serviços de recriação.
Alguns sociólogos, que trabalham com cientistas da informação da Universidade de Cambridge, para preparar um estudo acerca do recente impacto dessas plataformas na vida do cidadão comum, já cogitam que o próximo passo seja, talvez, a criação de modelos cibernéticos autônomos (ou seja, androides mesmo), que possam envolver até o uso de material biogenético, e que com o total suporte das I.A. de recriação, ofereçam uma experiência inédita e perene de convivência com pessoas já falecidas, no que seria o estágio seguinte de toda essa louca experiência - e daí sim, chegaríamos ao nível do toque físico. E de cópias de pessoas que já se foram e que seriam agora, por assim dizer, "imortais".
Exatamente por isso, muitos estudiosos alertam: antes de continuar com esse hype que, por mais insano que pareça, está se tornando algo bem crível, é melhor analisar e ponderar bem sobre todas as possibilidades de impacto psicológico que ele possa vir a ter.
E propondo também o seguinte: aposentem aquela velha máxima de que "o céu é o limite". Não, já não é mais.
O limite agora são as fontes de energia para sustentar todos esses inacreditáveis complexos de sistemas neurais artificiais e ilimitados, que as I.A. estão se tornando.
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