domingo, 26 de novembro de 2023

O VELHO OESTE SOBRENATURAL DE CLINT

Tempos estranhos os que vivemos. Muita efeméride e polarização sócio-política, cultura de ódio e cancelamentos, só se ouve falar em coisas das mais absurdas nas redes sociais da vida, e parece haver uma vontade incessante em 'causar' e chamar a atenção nesses tempos pós pandemia, em que a humanidade segue desenfreada rumo a dar sentido às suas vidas das piores formas possíveis. 

Mas posso garantir que tempos estranhos não são privilégio da geração atual, como tentaremos demonstrar ao longo das postagens deste blog que também contemplarão atos e fatos do passado. Lembre-se que o que já foi absurdo e chocante passou pelo crivo das percepções e perdeu seu ineditismo, assim como o que é absurdo e chocante hoje, em breve também já não mais será.

Por que estamos em todo esse preâmbulo? Bem, porque o cinema é pródigo em trazer umas obras assim, desconcertantes, e que nos proporcionam o deslumbramento dos sentidos em certas reflexões de relevo considerável.

Atualmente, por exemplo, muita gente se lembra do grande ator e realizador da sétima arte que o sr. Clint Eastwood se tornou através de filmes como Os Imperdoáveis (1992) e Menina de Ouro (2004). Mas existe uma outra fase muito interessante, um tanto quanto esquecida no limbo da extensa carreira dessa figura tão cara à sétima arte, onde ele subverteu os conceitos dos filmes de cowboy, provocando uma ruptura com o modo como o Velho Oeste era visto e suas temáticas anteriores, e incutindo conceitos fantásticos nos pistoleiros lacônicos que ele costumava encarnar. 

Não estamos falando dos primeiros pistoleiros que ele encarnou nos bangue-bangues italianos de Sergio Leone. E estamos também passando longe do ícone de cowboy urbano e justiceiro que ele moldou em seus filmes como o policial Harry Callahan, o Dirty Harry. Não, aqui o riscado é outro.

A primeira dessas incursões se dá no sombrio e taciturno O Estranho Sem Nome (High Plains Drifter), western de 1973 em que vemos Clint chegando em uma cidadezinha diminuta, como essas tantas outras do Oeste que nasciam e morriam ao redor de empreendimentos financeiros, como a mineração, chamada Lago. Ali, uma recepção nada amigável por parte dos locais, faz com que aquele 'estranho sem nome' (ele realmente nunca o divulga) mostre a sua habilidade com armas de fogo. Invariavelmente, acabam enxergando no sujeito uma possibilidade para defender o lugarejo de bandidos que estão prestes a retornar para um acerto de contas com comerciantes e empresários do local. Mas... aí é que a trama fica boa, e não podemos ficar liberando spoilers assim, pois um plot twist nos momentos finais nos dará uma compreensão muito além do esperado de que aquele sujeito não está ali apenas como um mercenário contratado, e os habitantes de Lago nem são tão inofensivos e coitadinhos assim, apesar de clamarem por defesa e ajuda. 

Clint se delicia com as soluções do roteiro, que o promovem a uma espécie de 'cavaleiro demoníaco', sem nenhuma concessão de infernizar as vidas daqueles que ali pedem a sua ajuda, acabando com a ordem e as autoridades locais, elegendo um anão subjugado por todos como o novo "xerife", e mandando pintarem todas as casas e estabelecimentos de vermelho, rebatizando o vilarejo como Hell (inferno)! Mas para tudo isso, veremos adiante, há um bom motivo.





O filme termina com o cavaleiro sobrenaturalmente desaparecendo no mesmo horizonte do qual apareceu no início, nos dando uma quase certeza de que, talvez, aquele pistoleiro seja a encarnação de algo muito pior do que imaginamos, e que talvez nem pertença ao mundo dos vivos - nisso mora a grande jogada do filme, nos incutir e brincar com essa sensação no final.


Pouco mais de uma década depois, em 1985, Clint resolve retomar o tema do cavaleiro sem nome (e provavelmente, sem uma alma normal) no bucólico Cavaleiro Solitário (Pale Rider). Aqui, o que vemos é quase uma releitura, sob um novo prisma, do clássico western Shane - Os Brutos Também Amam, da década de 1950, mas o autor mais uma vez nos entrega a sensação de mistério que envolve a chegada de um estranho que não parece ter vindo de lugar algum, que não divulga seu nome, e tão somente diz palavras e traja uma indumentária que o remete a ser considerado um pastor, ou pregador batista, só que mais uma vez irá se encarregar da defesa de pessoas que descobrem nele talentos invulgares com sua Remington 1858, sempre bem carregada - nesse caso, um pobre grupo de mineradores que estão sendo rechaçados e humilhados por um grande empresário do ramo, e sendo forçados a abandonar o local. 


O curioso é observar como neste outro filme Clint inverte o teor de seu personagem, aqui muito mais como um 'anjo da vingança', purificador e doutrinador, com um tom mais pastoral, em contraste com aquele anterior, anárquico e endiabrado, do filme de 1973. A aura mística de suas aparições, no entanto, insiste em mais uma vez nos dar uma concepção de não pertencimento do personagem a este mundo, ele vem de um outro plano, muito aquém do entendimento daqueles pobres mineradores, e de todos os facínoras.

Deus e o diabo na terra do bangue-bangue. De um modo que só mesmo Clint Eastwood sabia fazer. Se tiver chance, vale muito a pena conferir.

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