sexta-feira, 26 de abril de 2024

VERA CRUZ: O PROTÓTIPO DO REALISMO NO WESTERN

 

Em 1954, um faroeste com os galãs Gary Cooper e Burt Lancaster seria lançado sob a direção do grande Robert Aldrich, causando estardalhaço e certa polêmica na mídia da época... O porquê? Ao se aprofundar na cobiça e mesquinharia de suas personagens, talvez ele fosse realista demais para muitos aceitarem.

Vera Cruz passou a ser considerado, dessa forma, o precursor de um filão que seria uma das últimas grandes reinvenções do gênero western, alguns anos depois: o western spaghetti (ou 'bangue-bangue à italiana'), os filmes de cowboy produzidos na Itália, por Sergio Leone, Sergio Corbucci e comparsas, visto que neles, a crueza e a malandragem das figuras típicas do cenário épico do Oeste americano eram desvendadas de forma explícita e descarada, sem firulas.

O imaginário dos anos 1950, no panorama cinematográfico ianque, ainda estava acostumado com os tipos altruístas de John Wayne, Henry Fonda e James Stewart, nos diversos faroestes de John Ford e Howard Hawks. Não havia muito lugar, na cabeça das pessoas, para canalhas gananciosos como protagonistas de um gênero pródigo em heróis icônicos, como os mocinhos Tom Mix, Roy Rogers ou o verídico Wyatt Earp.

No enredo do filme, o ex-soldado sulista Ben Trane (Gary Cooper) conhece por acaso o bandidão Joe Erin (Burt Lancaster, impagável) durante um negócio de compra de cavalos, e acabam se envolvendo em um movimento de mexicanos rebeldes que tramam para derrubar o imperador mexicano Maximiliano. No entanto, ao tomarem contato com as forças imperiais, encontram uma oportunidade ímpar de transportar ouro para as mesmas (bem como de afaná-lo), e mudam de lado como quem troca de camisa, se envolvendo com uma condessa pra lá de suspeita que também tem interesse no carregamento, e toda a sorte de perigos e aventuras nessa empreitada. Ambos são ases no gatilho, e uma insólita "amizade" entre eles nasce, motivada por essa ambição pelo ouro - só que mais para frente, as coisas se complicarão. O diretor Robert Aldrich sabe trabalhar muito bem todas essas ambiguidades no relacionamento das personagens, e diversas nuanças vão se revelando ao longo da trama. Filmaço (disponível na Prime Video, aproveite enquanto ainda está).

Como se percebe por esse plot, o vai e vem de situações por conta de pegar o ouro e passar os outros para trás é tão intenso, que realmente é o tipo de situação que veríamos em um sem-fim de filmes de faroeste italiano que só seriam produzidos uma década depois. 

O pistoleiro almofadinha de Lancaster marcaria época, relegando o ator a uma má fama de "cafajeste" da qual ele conseguiria se livrar só muitos papéis depois, graças à sua genial caracterização como um vilão cativante, que sorri o tempo todo, e não mede esforços para obter êxito. Para a lendária crítica de cinema Pauline Kael, o seu Joe Erin é um dos maiores sociopatas da história do cinema americano de ação, de todos os tempos.

E aqui vai uma baita curiosidade: você vai encontrar novinhos, como comparsas do bando de Erin, os célebres George Kennedy (Aeroporto, Corra que a Polícia Vem Aí), Ernest Borgnine (Meu Ódio Será Sua Herança), e ainda, pasmem, um Charles Bronson quase moleque - e o melhor de tudo, já treinando soprar na harmônica muitos anos antes de interpretar seu personagem do mítico Era Uma Vez no Oeste (1968), de Sergio Leone. É um elenco estelar, portanto.

Aldrich era diretor dos bons, cravou a ferro e fogo sua marca de autenticidade na história do cinema americano como um dos primeiros caras mais "autorais" em suas obras, fazendo preponderar em todas as suas tramas características como o egoísmo, a maldade e os instintos vis do ser humano, mas também a sua redenção através dos sacrifícios e da empatia, e consequentemente se tornaria um dos inspiradores da nouvelle vague francesa, e de todo o movimento de renovação do cinema norte-americano, a New Hollywood, das décadas de 60 e 70. Gostava de imprimir o realismo com cores fortes em seus filmes.

Em 1967, Aldrich teria mais um grande êxito em sua carreira, ao reunir um grupo de bandidos irrecuperáveis para uma missão suicida contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial: Os Doze Condenados. Clássico absoluto. Mas essa já é uma outra história, que fica para uma outra hora.



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quinta-feira, 25 de abril de 2024

LONG LIVE IGGY POP

Sabe quem nasceu no dia 21 de abril - passou agora, esses dias atrás - e quase ninguém se lembrou?

"Já sei, Tiradentes!"... Não, criança. Esse não vale. Estamos falando aqui de rock.

E de rock pesado e sujo, cara. Daquele que você enlameia os dedos nas feridas d'alma, rosna pulando e uiva alto com ou sem luar. Som massacrante e incandescente, que jorra das caixas até arrepiar o bigode, como dizia um conhecido meu. Estamos falando de um cara que ensinou os primeiros punks a serem... punks.

Estamos falando de James Newell Osterberg. Aliás, estamos falando do velho Iguana. Estamos falando de Iggy PopO cara é uma lenda, e quem assiste ele ainda se arrastando e balbuciando pelos palcos de hoje, realmente custa a acreditar. "Ah, mas ele está muito f... e acabado, olha o corpo caquético e envergado dele, o Mick Jagger rebola e canta ao mesmo tempo, e dá de dez a zero nele", dirão alguns. Criança, mas você simplesmente não entende que a ficha corrida de Mr. Jagger não chega nem a um fiapinho do que seria a ficha de Mr. Iggy? E que tudo que ele fez, aprontou, ingeriu e cheirou, rivalize e talvez até ultrapasse o que o coleguinha Keith Richards (também rolling stone) já fez? Sinceramente, criança, você não conhece o que é rock and roll.

The Stooges, em 1969

Iggy, do alto de seus agora 77 anos, é uma instituição (ainda) viva da era mítica do rock, que moldou toda a música e a performance que gerações e gerações, incluindo a atual, seguem e ainda curtem até hoje. Se existe algum tipo de rock com originalidade, certo senso de perigo, e emoção, até hoje, isso é devido a caras como Iggy, que não tiveram medo de ousar. E criar, inovar. 

Quando a lendária banda que revelou ele ao mundo, os Stooges, surgiu, lá pelos idos de 1967, a música já estava descendo a ribanceira por um caminho vertiginoso de se achar muito séria, de virar arte mais "cabeça" e refinada, e aqueles quatro carinhas de Michigan simplesmente ergueram uma crença de que "o menos é mais", seguiram as lições básicas dos blues e das mais rudes bandinhas de garagem da época, afundando suas almas de garotos desprezados nos instrumentos baratos e nos 3 acordes básicos, ungido de experimentalismo torpe e barulheira, com muita distorção, crueza e autenticidade. Iggy (vocais), Ron Asheton (guitarra), Scott Asheton (bateria), e Dave  Alexander (baixo), lá estavam eles.

I Wanna Be Your Dog (1969)

O primeiro registro do grupo em LP, o auto-intitulado The Stooges, sai em 1969, e traz petardos inesquecíveis para todos os irmãos da alta sonoridade: "No Fun", "I Wanna Be Your Dog", "Not Right" e "1969", hoje clássicos que mostraram como o rock podia voltar a ser básico, primitivo e empolgante, sem muita firula e com muitos golpes certeiros de guitarras lancinantes e encharcadas de fuzz e wah-wah, pancadas violentas de baixo e bateria e, claro, a voz rasgada e insolente de um jovem e rebelde Iggy (na época, ainda proclamado Iggy Stooge). 

A produção era de ninguém mais, ninguém menos que John Cale, arauto doidão do grupo de vanguarda Velvet Underground, ao lado de Lou Reed, e que ficaria inicialmente fascinado pela atitude despojada e totalmente mambembe dos jovens Stooges em relação a estúdios e gravações. Detalhe: eles queriam ligar tudo no último volume e gravar como se estivessem se apresentando mesmo, tudo ao vivão. É óbvio que o choque inicial com a realidade das produções de discos foi impactante para Iggy e seus asseclas.

No Fun (1969)

"O negócio era abaixar o volume e ficar testando microfones, captação... Tudo baixinho. E volta e ouve para ver se ficou bom, e repete isso e aquilo, e repete mais uma vez. Ficamos entediados, toda a espontaneidade da coisa tinha ido embora", relata Iggy. Se já assim, o primeiro disco era uma pauleira, imagina o que viria pela frente, quando eles conseguiram, no LP seguinte, produzir realmente algo mais próximo do que seria um som ao vivo deles!

Lançado em 1970, Funhouse traz um som ainda mais sujo e distorcido, Nos hinos transgressores de "Loose", "TV Eye", "Dirt" e a faixa-título, além de ser resultado de uma maior coesão entre o grupo, pelo fato deles terem se entregado à vida na banda em tempo integral, vivendo juntos em uma casa alugada pela gravadora Elektra, no estilo "república", bem comuna mesmo. E aí já dá pra imaginar bem todo o tipo de loucuras que rolavam por lá, sendo que "funhouse" (casa de diversões) era o próprio apelido que haviam dado ao lugar... 

T.V. Eye (1970)


Dirt (1970)

Se você considerar que, apesar de todo o estilo revolucionário dos Stooges, os discos deles falhavam miseravelmente em vender e fazer sucesso, e que isso logo seria a porta de saída deles da Elektra Records, bem como os exageros químicos e comportamentais dos quatro, mas principalmente de Iggy, então não haveria mais nenhum futuro, todos seriam relegados ao eterno esquecimento, e ficariam como mais uma daquelas bandinhas dos anos 60 que simplesmente sumiram. Certo?

Iggy e seu 'salvador' David Bowie: amizade histórica e redentora - Iggy serviu até de inspiração no nome para Bowie criar o seu personagem rock mais famoso, Ziggy Stardust

Não. Apesar de episódios grotescos de autoflagelação no palco, viagens e peripécias mil regadas a ácido e álcool, e a quase internação em manicômios para ser tratado, Iggy é tal qual uma fênix que ressurge das cinzas, pelas mãos de um inacreditavelmente fã do outro lado do Atlântico que vira astro - o inglês David Bowie, que o reergue, ajuda em sua desintoxicação, e lhe arranja novos contratos - e sob a luz de uma nova vivência, Iggy se reinventa nos anos 70: primeiro, com uma versão reformada dos Stooges (que lança o seminal álbum Raw Power, de 1973), e depois, como artista solo, performático como poucos, e padrinho de toda a geração de punks que brotariam da Inglaterra até os EUA, da metade em diante daquela década.

Long live Iggy!

The Passenger, um dos maiores sucessos da carreira solo de Iggy, em 1977



Iggy Pop nos dias atuais

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quarta-feira, 10 de abril de 2024

'THE SOFT PARADE': O PONTO DE VIRADA NA CARREIRA DOS DOORS

 

Na noite de 15 de dezembro de 1968, músicos de orquestra se organizavam e afinavam seus instrumentos, no palco montado do The Smothers Brothers Comedy Hour, um dos mais populares shows de auditório da TV americana, já em sua terceira temporada, transmitido pela CBS. Além dos quadros cômicos apresentados pelos célebres irmãos Tom e Dick Smothers, a atração sempre trazia números musicais com grandes artistas e seus sucessos nas paradas.

Jim Morrison

Ali, naquele momento, um dos mais mais cultuados e bem sucedidos grupos de rock californianos do mundo iriam colocar à prova do público o seu mais recente single, que seria lançado precedendo o próximo disco, a sair no ano seguinte. Ali, naquele palco, a banda The Doors, do lendário vocalista e poeta Jim Morrison, iria executar uma versão ao vivo de "Touch Me".

Para os fãs mais "hardcore" do grupo, habituados à sonoridade por vezes sombria, ora barroca, ora bluesy e psicodélica de álbuns anteriores, como o primeiro autointitulado, o segundo (Strange Days), ambos de 1967, e Waiting for the Sun, que havia saído naquele 1968, algo parecia soar estranho. "Touch Me" evocava os sons de big bands, um clima meio colorido e garboso que cheirava a Las Vegas, além da performance desvairada de um Morrison quase excessivo em certo romantismo démodé, emulando Sinatra e outros crooners de um estilo pomposo e contraposto ao de um cantor de rock visceral. Do som mais vigoroso, viajante e experimental dos outros membros do grupo: Ray Manzarek (tecladista), Robby Krieger (guitarrista) e John Densmore (baterista), debaixo das camadas sinfônicas de cordas e metais, também não se ouvia muita coisa.

The Doors mandando ver

Durante a apresentação, é possível ver Robbie rindo da sensação estranha que era eles, aqueles antes "quatro solitários cavaleiros do apocalipse de rock ácido", estarem agora tocando até com orquestra e solos de saxofone do jazzy Ronnie Ross, e pode ser notado que ele apresenta um olho roxo - que não era, ao contrário do que muitos brincavam, travessura de um Morrison bêbado e enlouquecido por conta das diferenças no som, mas sim resultado de um briga de bar, no dia anterior. Morrison, ao contrário do tristemente retratado sujeito escroto da cinebiografia The Doors (1991), de Oliver Stone, era até bastante tímido e reservado quando sóbrio, e admirava muito Robbie, confiando no direcionamento musical dele, tanto quanto de Ray Manzarek. Foram de Robbie, aliás, várias composições e as ideias para as novas músicas do grupo no disco que viria a ser lançado: The Soft Parade (1969).

Robbie e o olho roxo

Para aquela parcela de fãs que estranhou tudo, os Doors haviam mudado, e não para melhor. Uma boa parte do público, e da crítica especializada, passou a acusar a banda de ter seguido por um caminho de "pasteurização" de sua música, introduzindo muitos elementos estranhos que a descaracterizavam, chegando a dizer que o grupo estava "amenizando" e ficando mais comercial, se tornando "vendidos". Nada mais ridículo, se pensarmos que aqueles eram os momentos finais dos anos sessenta, época em que mais se ousou e se experimentou em termos de sonoridades e gravações diferentes e desafiadoras - mas, afinal, mesmo as épocas mais arrojadas tem também as suas mentes mais tapadas. 

Chegando às lojas em 18 de julho de 1969, o disco é uma coleção de nove faixas que firmavam os Doors rumo a direções mais ecléticas, porém que, ao mesmo tempo, reforçava simbologias menos sutis e mais obscuras do imaginário da banda e, consequentemente, das composições cada vez mais profundas de Jim Morrison. Assim como nos discos anteriores, o álbum terminava com uma peça mais longa e repleta de viradas e mudanças de andamento, que sinalizava reflexões severas sobre o zeitgeist e os confins da alma humana - se em outros momentos, "The End" havia sido a regressão psicótica ao edipianismo xamânico, e "When the Music is Over" era um brado feroz ao momento em que o 'id' desperta ante as neuroses de uma sociedade doente, tínhamos agora um registro irônico e apoteótico sobre "o desfile lento" (the soft parade), o carnavalesco cenário de cores, atores e dissabores que os Doors vivenciavam em sua trajetória, tecendo críticas ao próprio mundo artístico e às hipocrisias e obsessões de Los Angeles, sua fauna e flora de pseudo-divindades nulas e efêmeras. Nem mesmo a claustrofóbica sensação de fanatismo religioso do espírito ianque se safava na sorumbática introdução recitada por Morrison.

When I was back there in seminary school
There was a person there who put forth the proposition
That you can petition the Lord with prayer
Petition the Lord with prayer
Petition the Lord with prayer
You cannot petition the Lord with prayer!

(Quando eu estava no seminário
Havia uma pessoa que colocou a seguinte proposição
De que você pode suplicar ao Senhor com oração
Suplicar ao Senhor com oração
Suplicar ao Senhor com oração
Você não pode suplicar ao Senhor com oração!)

Em canções como "Shaman's Blues" e "Wild Child", há os blues de bar, encharcados do clima jazzístico psicodélico e as habituais nuanças místicas do grupo, construindo paisagens que acolchoassem a voz cada vez mais etílica de Morrison, e estão com certeza entre os momentos clássicos da banda, ao passo que "Runnin' Blue" é uma simpática composição de Krieger (onde ele também canta), que envereda pelo caminho do country em seu atípico e inesperado refrão, e "Easy Ride" joga os Doors num trajeto de boogie e soul como nunca antes executado pela banda - é diferente, por isso o susto dos ouvintes! 

A épica "Tell All the People" e a belíssima e lírica balada "Wishful Sinful", com suas passagens orquestrais dissonantes, já haviam saído anteriormente ao LP como singles, da mesma forma que "Touch Me", e de certa forma, esses lançamentos prenunciavam o que realmente estava acontecendo com os Doors, e as causas de todas as mudanças: o extremo nível interno de estafa do grupo. Era muita correria para compor e organizar novo material entre um show e outro, a pressão da gravadora e do produtor Paul Rothchild (cada vez mais exigente no estúdio), e toda a ovação de fãs e da mídia, com espetáculos cada vez mais lotados.

A turnê que se seguiu ao lançamento do disco anterior, o Waiting for the Sun, foi uma das mais longas e caóticas da história da banda, com Jim Morrison simplesmente "pirando o cabeção", e digressões na Europa que entraram para a história, pelo nível de loucura e substâncias estupefacientes envolvidas. Durante um show em 15 de setembro de 1968, em Amsterdam, na Holanda, onde estavam se apresentando em uma gig conjunta com o grupo Jefferson Airplane, Morrison acabou tomando todas e consumindo um bloco inteiro de haxixe, o que fez o cantor perder totalmente os sentidos e ser hospitalizado. 

Durante show no Roundhouse, de Londres, em 1968

Ray Manzarek conta, em sua biografia, que foi nessa época que Morrison começou a pensar seriamente em desistir da carreira de músico e se dedicar em tempo integral à escrita e à poesia, mas foi convencido por ele, os outros músicos e o empresário da banda a prosseguir durante mais um tempo, ainda que já demonstrasse sinais de estresse e instabilidade emocional, situação agravada por uma ingestão cada vez maior de bebidas alcoólicas (que, com o tempo, se tornariam o principal vício do cantor). Intimamente, Morrison contestava cada vez mais a própria imagem sexy e de culto criada ao redor de si mesmo, e aos poucos, operaria uma mudança em seu próprio visual para reforçar isso, abandonando o visual de roupas de couro e as performances lascivas, deixando crescer a barba, engordando um pouco, e usando roupas comuns e desleixadas, quase como as de um universitário.

Toda essa pressão irá culminar com o fatídico "Incidente de Miami", o mítico show de 1º de março de 1969 na cidade, em que o vocalista dos Doors, ainda mais ébrio do que o habitual, levou ao extremo a ideia de desafiar a plateia sobre a visão que tinham dele como ídolo, e se exibiu (ou sugeriu exibições) de suas partes íntimas, ocasionando um tumulto sem precedentes, a destruição do local do show pelos fãs, e sendo processado por atentado ao pudor, à moral e os bons costumes, pela justiça dos EUA. Dali em diante, o que se viu foi o primeiro grande cancelamento de artistas na história da música pop, mesmo antes das redes sociais terem sido criadas e esse termo ter se popularizado tanto. Os Doors foram simplesmente banidos de todas as rádios comerciais americanas, e de quase todos os festivais, concertos e eventos dos quais iriam participar. Se tornaram praticamente marginais.

Depois disso, a história é bem sabida: a banda aos poucos recuperaria sua notoriedade e teria ainda uma rápida sobrevida, com o lançamento dos excelentes álbuns Morrison Hotel (1970), e L.A. Woman (1971), onde retornariam ao rock básico e com doses maciças de blues, que agradariam em cheio público e crítica e ainda terminariam por angariar novos fãs, mas logo após a gravação desse último disco, Morrison toma definitivamente a decisão de deixar o grupo durante uns tempos, e parte em um exílio artístico e amoroso para Paris, na França, com sua companheira Pamela Courson. De onde jamais voltaria.



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quinta-feira, 4 de abril de 2024

A MÃO DIREITA E A MÃO ESQUERDA DO DIABO

 

A reconstrução de algo passa por sua desconstrução. E, nos agora distantes anos 1970, um gênero clássico de cinema que parecia agonizar e passar por seus últimos suspiros - o western, bom e velho filme de cowboy - via continuar emergindo a sua vertente lúgubre, zombeteira, e extremamente realista, que buscava pintar de extremos vermelho sangue e cinismo as paisagens áridas das terras americanas sem lei. Eram os faroestes produzidos na Itália, os famigerados e pródigos western spaghetti, ou bangue-bangues à italiana, como também passaram a ser conhecidos no Brasil.

Eles reinventaram o gênero? Ou foram, afinal, o prego final na tampa do caixão?

Conclusões por conta de cada um... Apenas penso que o western, na verdade, nunca morreu, apenas foi se reciclando e modernizando com os tempos. E os spaghetti foram simplesmente um desses ciclos.

Muito se especula sobre a origem do termo, sendo mais acertado afirmar que é não só uma referência pejorativa ao lugar onde produtores, diretores, atores e atrizes se faziam passar por "ianques" dos tempos de outrora, como também que o termo spaghetti se referia às enormes doses de violência nas tramas dos filmes, com o sangue cenográfico utilizado lembrando, justamente, os molhos de tomate que um bom espaguete deve ter.

Foi nesse momento histórico que uma nova ramificação, mais suave e de forte apelo popular, nasceu como subgênero, explorando uma modalidade mais cômica: eram os "faroestes espaguete de humor", perpetrados pela dupla Terence Hill e Bud Spencer.

Nascidos Mario Giuseppe Girotti (Terence), e Carlo Pedersoli (Bud), os dois atores vinham de diferentes métiers, sendo que Terence já havia participado em pontas de diversas produções clássicas do cinema europeu, como O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, alguns épicos de gladiadores, e a série de faroestes alemães Winnetou (1964), enquanto Bud era oriundo do cenário desportivo romano, tendo sido campeão de natação e pólo aquático, mas já tinha uma quedinha pela sétima arte desde novo.

Ao se embrenharem pelo mundo dos produtores de westerns spaghetti, logo os dois se encontrariam em três pérolas marcantes do movimento, lançadas em 1967, 1968 e 1969, respectivamente: Deus Perdoa... Eu NãoOs Quatro da Ave Maria, e A Colina dos Homens Maus (também conhecido como 'Boot Hill'), que constituíam uma trilogia sob a direção de Giuseppe Colizzi. Esses filmes foram grandes êxitos de bilheteria, porém mais do que isso, motivaram não só em Colizzi como em outras pessoas da equipe, bem como no público em geral, a nítida impressão e os comentários de que rolava uma "química" legal entre aquela dupla. Eles davam liga atuando. O engraçado é que, nas tramas daquelas produções, ocorria quase que uma inversão dos tipos de papéis que eles desempenhariam posteriormente: ou seja, ali, Terence Hill ainda representava o pistoleiro mais sério e taciturno, quase a la Clint Eastwood, enquanto Bud Spencer se saía como um tipo mais cômico e bonachão, desastrado e cheio de tiradas.

É em 1970 então que, sob a direção de Enzo Barboni (sob o pseudônimo E.B. Clucher), tem início uma das mais icônicas séries de filmes da história do faroeste italiano: Trinity é o Meu Nome nos apresenta os personagens Trinity (Terence Hill), o relaxado pistoleiro e caçador de recompensas conhecido como "a mão direita do diabo", por ser um dos gatilhos mais rápidos do oeste, apesar de sua imensa preguiça; e o seu meio irmão Bambino (Bud Spencer), este sendo "a mão esquerda do diabo" (por atirar bem com a canhota), e que além de ser um brucutu com um talento todo especial para pancadarias truculentas, é um (quase) ex-ladrão de gado que acabou pegando o cargo de xerife (com segundas intenções, claro) de uma cidadezinha do oeste, onde recaem sobre um grupo de pobres e indefesos mórmons as ameaças não só da gangue de um ricaço, que querem tomar suas terras, como também de um caricato grupo de bandidos mexicanos. Aqui sim, Hill passaria a representar o cara engraçadinho e malandro, bem relaxado, e Spencer seria o seu contraponto, mais seco, mal humorado e durão, o que acabou caindo como uma luva levando em conta até os tipos físicos deles.

O roteiro, na verdade, é o de menos - acaba sendo apenas um fiapo, que serve mesmo para introduzir o imenso carisma dos personagens de Trinity e Bambino, que moldam um novo jeito de fazer bangue-bangue, e que mistura não só a galhardia da arte circense e mambembe, como também a verve humorística dos grandes momentos da comédia italiana, com suas caras e bocas, maus entendidos e verborragia. Não é a toa que Hill e Spencer fariam uma memorável participação especial no programa de TV dos nossos também circenses e baderneiros 'Os Trapalhões', já na década de 1980, durante uma visita ao Brasil.

Lutas coreografadas com muito estilo pastelão e sonoplastia exagerada de socos, murros e pontapés, além de efeitos de câmera acelerada nas inacreditáveis cenas em que Trinity saca e gira o revólver não só do seu coldre como dos adversários, e muita cara feia e nervosa do Bambino, sem paciência de estar sempre caindo nos engodos do seu mano mala, trapaceiro, e louco por um rabo de saia: a dupla Hill-Spencer estabeleceu neste filme a quintessência de um estilo de western cômico e ingênuo que criaria várias imitações inferiores (alguém aí já ouviu falar da também dupla Paul Smith e Michael Coby, da série 'Carambola'?), e marcaria toda uma geração que cresceria acompanhando a dupla ao longo de vários filmes que repetiriam essa fórmula, mas não só como Trinity e faroeste, mas também ambientados nos tempos modernos, e nos formatos de aventura, policial e comédia. 




Logo acima: a célebre cena do "devorador de feijão", com Terence Hill, no Trinity original (1970). Abaixo, a dupla de imitadores da dupla Hill-Spencer que tentou fazer sucesso como eles nos faroestes, mas sem o mesmo êxito: Paul Smith e Michael Coby, em 'Carambola' (1974).

Na verdade, como sequência direta e legítima desse Trinity só haveria mais um filme, realizado no ano seguinte, o igualmente bem sucedido Trinity Ainda é o Meu Nome (1971), e que contava praticamente com a mesma equipe, dessa vez nos apresentando a família louca e desajustada dos dois irmãos, e os envolvendo em uma nova trama de defesa de religiosos ameaçados pela bandidagem (dessa vez, um grupo de monges). São películas que deixaram boas lembranças em muita gente, não só de uma geração que curtia os bangue-bangues nas matinês dos cinemas de sábado e domingo, como também de toda uma molecada que cresceu (e nessa, eu me incluo) vibrando com os tiros, acrobacias e piadinhas de Terence Hill, e os sopapos vigorosos de Bud Spencer, nas telinhas das sessões da tarde e de faroeste na TV.

Bons tempos. Mas hoje, Hill já é um senhor praticamente aposentado de todas as atividades artísticas, vivendo tranquilamente em Veneza, enquanto Spencer faleceu em 2016, após complicações decorrentes de uma queda que sofrera anos antes, em sua casa. 

Para finalizar, não poderíamos deixar de falar da belíssima trilha sonora desse filme, que também ecoa em cada um dos fãs aquele sentimento bacana e nostálgico dos assobios e melodias dos grandes clássicos de western "com sabor de pizza", como dizia um amigo meu. A canção tema original do filme, "Trinity (Titoli di Testa)" se tornaria icônica, também, por fazer parte da cena final de Django Livre, faroeste do genial Quentin Tarantino, sempre rendendo consistentes homenagens ao gênero em suas obras, e foi composta por Franco Micalizzi e gravada pelo grupo I Cantori Moderni di Alessandroni, que contava com o cantor Annibale como solista, tendo sido um dos maiores sucessos daquele ano na Itália.

Fica ela a seguir, para relembrarmos.



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sábado, 23 de março de 2024

A TRÍADE ABSOLUTA DO METAL

 

Em qualquer ponto do espaço-tempo contemporâneo, não adianta: você pode perguntar pra qualquer stoner ou doomer que seja, onde começou tudo... qualquer cara que curta aquela viagem porradeira no som maciço e tonitruante, sorumbático, mórbido e intenso, com saraivadas de riffs e acordes pesados jorrando da guitarra, e baixo desabando  ondas graves e hipnóticas dos amplificadores, enquanto a loucura percussiva de um bumbo, caixa de guerra, pratos e tudo o mais numa bateria vai celebrando um espancamento rítmico para elevar ainda mais a tensão dos seus batimentos cardíacos... Não adianta, meu amigo. Você, inevitavelmente, está diante de todas as gerações de ouvintes de um heavy metal raiz e irrepreensível, que veneram e pagam tributo à tríade básica do gênero - os três primeiros discos lançados pela clássica formação do Black Sabbath, lá no comecinho dos anos 1970. 

O autointitulado LP de estreia, Black Sabbath (13 de fevereiro de 1970), Paranoid (18 de setembro de 1970), e o também mortal Master of Reality (21 de julho de 1971) - nada tira o mérito e primazia desses 3 registros que definiram um estilo, uma estética e uma filosofia de vida, na direção de um novo gênero que estava a se formar. 

O som do grupo, nessa fase inicial, era tão cru e distinto, que era praticamente impossível encontrar quem realmente fizesse algo parecido, visto a agressividade natural e rudimentar com que eles produziam juntos, enquanto banda. Reflexos tanto de uma certa inépcia mesmo, impeditiva de elaborarem mais a sua musicalidade, quanto também de serem originados em um ambiente lúgubre e industrial, de vida difícil (Birmingham, na Inglaterra), onde precisavam quase "brigar" com as plateias barulhentas de pubs fuleiros, onde tentavam ser ouvidos. 

O que tínhamos ali, afinal? Um vocalista boquirroto de origem miserável, que já tinha praticado pequenos furtos e aprendera a cantar e berrar alto ouvindo blues, Beatles e bandas de garagem barulhentas (Ozzy Osbourne); um líder guitarrista canhoto, nervoso e bom de briga, que era barra pesada nos pubs e ainda tinha perdido as pontas dos dedos da mão direita em uma torneadora industrial (que fazia as posições no instrumento tendo que usar próteses), pois era metalúrgico (Tony Iommi, tinha que criar o som do metal mesmo!); um baixista ligado em filmes e livros sobrenaturais, que simplesmente adorava saturar a gravidade das quatro cordas amplificadas no talo (Geezer Butler); e um baterista doidão e gente boa, mas que gostava de descer as baquetas no couro sem dó, com a mesma intensidade com que virava vários canecos de cerveja (Bill Ward). Essa combinação se estabilizou após algumas pequenas mudanças de formação, e a partir do nome Earth, resolveram adotar um mais propício para os tipos de letra que Geezer passou a escrever, sempre abordando temas obscuros e apocalípticos, retirado do nome de um filme de terror de Mario Bava, de 1963: Black Sabbath (no Brasil, "As Três Máscaras do Terror").

Malhados pela crítica no início de carreira, mas adorados pelo seu público, viram o tempo se tornar o seu maior aliado, à medida em que se tornaram cultuados e lendários, praticamente os verdadeiros pioneiros do heavy metal, graças a:

1) Black Sabbath (1970): a estreia perpetrada com urgência assustadora, apenas um dia no estúdio - isso mesmo, um único dia - para não onerar muito os custos de produção, e porque já tinham todo o repertório afiado, em ponto de bala para registrar. Sons de tempestade e sinos do mal ecoam nos primeiros sulcos do vinil enquanto explode um dos riffs mais lentos, pesados e sinistros da história - simples, mas extremamente eficaz, e eterno! A música-título, uma obra-prima e que dá nome à banda, oferece uma visão do inferno jamais antes explorada na música popular, na voz chorosa e desesperada de um jovem Ozzy, que comete uma das melhores aberturas de disco já realizadas por um frontman iniciante. Tem também petardos como a bluesy "The Wizard", a tétrica e cadenciada "Behind the Wall of Sleep", "Evil Woman", a clássica e colossal "N.I.B." (com mais rifferama que não sai da mente), e as interligadas "Sleeping Village" e "The Warning", que engatam um medley viajante e avassalador, onde Iommi mostra todo o seu poder de fogo nas seis cordas. 

A "capa da bruxa" entrou para a história, e o mistério sobre a garota assombrosa na floresta perduraria por muitos anos, até que apenas recentemente, na era da internet, descobrimos ser a modelo britânica Louisa Livingston. O disco não poderia ter saído em data melhor: uma sexta-feira 13! A reedição em CD conta com a faixa bônus "Wicked World", que havia sido originalmente lançada junto com "Evil Woman", no primeiro single do grupo, em 1970. 

Black Sabbath, a música

N.I.B.

2) Paranoid (1970): um disco produzido ainda na caótica correria da banda, cumprindo diversas datas de shows, e fazendo de tudo para cravar seu nome no panteão dourado do rock. Com a grana entrando de um modo que nunca imaginariam, Iommi e equipe se desdobram para faturar, mas também para produzir e lançar material novo, demandado pela horda de admiradores que só aumentava. Assim, acabam gastando um pouquinho mais de tempo no estúdio (mas não muito, apenas três!), para gerar um LP que muitos consideram ainda melhor que o álbum de estreia. A faixa de abertura, a mítica "War Pigs", um dos mais concisos e bem acabados trabalhos de composição do grupo, repleta de mudanças de ritmo, viradas e solos alucinantes, era para ter sido a faixa-título do trabalho, constituindo o primeiro grande posicionamento político do Black Sabbath, como uma crítica à Guerra do Vietnam - entretanto, a gravadora preferiu evitar polêmicas e quis que a banda continuasse mais no lado obscuro, o que causou a enorme confusão que muitos tem até hoje ao pensar sobre o que significa a capa do disco (um guerreiro assustado com uma espada - ou seja, era para ser uma ilustração sobre guerra), mas aí a foto já tinha ido para a produção e saiu desse jeito mesmo. 

A música-título, "Paranoid", é o trabalho mais conhecido do grupo, nasceu de uma inesperada jam no estúdio, foi gravada e finalizada em apenas 25 minutos (!!!), e só quem viveu em Marte desde a década de 1970 para nunca ter ouvido essa porrada sonora, uma das primeiras canções loucas de lamento com Ozzy falando sobre relacionamentos detonados pela psicose humana! A macabra "Electric Funeral" é um perfeito exemplo de doom metal pioneiro e encharcado de distorção fuzzy wah-wah por Iommi, enquanto Geezer e Ward piram na cozinha e Ozzy se esmera nos vocais cavernosos. Clássicos como "Hand of Doom", "Fairies Wear Boots", e a riffenta "Iron Man" - outro hino da banda, versando sobre viagens no tempo e fim do mundo - também fazem parte desse registro histórico.

War Pigs


Paranoid

3) Master of Reality (1971): com um pouco mais de dinheiro no banco, e tempo para relaxar e compor, o Black Sabbath volta a lançar álbum no ano seguinte, sendo este um trabalho um pouco mais elaborado, mas não menos pesado e intenso que os anteriores. Acaba tendo até mesmo uma temática mais dark e sombria, pois as letras versam sobre vícios em drogas, perda da fé, destruição da humanidade e ameaças químicas, dentre outras pirações, e Iommi chega a mudar a afinação de sua guitarra nesse LP, para extrair um som mais grave e pesado. O disco já entra com uma baita tosse induzida pela erva maldita de Iommi, onde a folhinha verde é o foco, "Sweet Leaf". "After Forever", tida por muitos como uma mudança de rumo do grupo ao fazer uma canção cristã, é na verdade uma crítica a toda a obsessão que a mídia e certos fãs tinham pela imagem satânica cultivada ao redor deles. "Solitude" espelha um momento mais lírico, e de uma musicalidade soturna e medieval interessantíssima, com flautas e vocais reflexivos de Ozzy, quase irreconhecíveis. O peso volta e desaba com tudo nas pedradas de "Children of the Grave", "Lord of This World", e na impressionante "Into the Void", tão cheia de viradas e ritmos sincopados, que Bill Ward até hoje se queixa de nunca ter conseguido a tocar bem ao vivo. Consolidando a posição do Black Sabbath como banda única e criadora de uma nova tendência no rock pesado, Master é o último registro de uma fase inovadora e mais primal do som da banda, que passaria, com o LP seguinte (o Volume 4, inteiramente gravado nos EUA), a diversificar um pouco mais as suas composições e o tipo de instrumentação utilizada em sua obra.

Children of the Grave

De 1972 em diante, veríamos o Sabbath expandir a sua sonoridade para searas que flertavam com o pop ("Changes", a balada de Ozzy que faria o grupo tocar em todas as rádios), e as experiências progressivas ("Under the Sun" e especialmente as músicas do Sabbath Bloody Sabbath, de 1973, como "Who Are You" e "Spiral Architect"), mas sempre mantendo o peso no som. 

O pontapé inicial no doom e stoner metal, com as suas características mais vigorosas, no entanto, ficaria para sempre marcado naqueles três primeiros discos.


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sábado, 16 de março de 2024

O OCASO DE UMA (SUPER) ERA

 

O mundo ainda respira os ares do Oscar vencedor de Oppenheimer, de Christopher Nolan, neste março de 2024, enquanto surgem as últimas discussões acerca do desastre total, completo e irrestrito que foi aquele filme da Madame Teia (2024), nossa senhora, o que é aquilo.

Quando a própria atriz principal da empreitada (Dakota Johnson, a protagonista), que é quem deveria estar desfrutando os louros do êxito, e com orgulho do que fez, se põe a ela mesma detratar o filme, e falar mal do que o estúdio e produção fizeram, alterando o script original e transformando tudo numa salada de equívocos, é porque parece que realmente chegamos no fundo do poço desse enorme hype que surgiu chamado "filmes de super herói".

A Madame Teia que se enrolou na própria teia

Veja bem, o projeto é da Sony, e não da Marvel, que é o estúdio símbolo de toda essa geração de seres fantásticos que tomaram as telonas - apesar de usar personagens da Marvel, por ser detentora dos direitos de filmagem. Mas mesmo assim, e todo mundo comenta, nos filmes da Marvel (e da sua arquirrival DC), a estafa geral já é sentida há um bom tempo.

Não é mistério para ninguém que, desde que a era clássica dos Vingadores no cinema acabou, com o desfecho mortal do embate entre Thanos e Homem de Ferro, no já mítico Vingadores: Ultimato (2019), a Marvel Studios tentou, tentou, mas não conseguiu até hoje repetir o sucesso dos grandes momentos de então.

Vingadores: Ultimato

Filmes posteriores como Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (2021), ou até mesmo o último Guardiões da Galáxia vol. 3 (2023) foram estratégias certeiras, sucessos respeitáveis de bilheteria, mas que representaram também lampejos finais da criatividade de uma fórmula cujo desgaste seria inevitável - mas cuja eficiência poderia ter sido prolongada por mais algum tempo.

O grande problema é que a Marvel quis fazer no cinema algo que já foi feito inúmeras vezes nas HQs, que é aposentar ou descansar alguns heróis, tirar o foco de uns e jogar sobre outros, trocar alguns de lugar e de evidência. Ou seja, reciclar seu universo e mudar um pouco o cardápio. Mas se esqueceram de uma premissa básica: o mundo do cinema não é o mesmo dos quadrinhos. Os públicos são diferentes, e se comportam de maneira diferente. Uns compram a aposta e topam bem essa parada, são mais abertos a variações, outros não. E custear e produzir uma série de gibis (como diziam na minha época) ou de graphic novels, seja lá o que for, nunca será o mesmo que produzir um filme para cinema ou um seriado de streaming, que envolvem elementos, equipes, gastos e detalhes muitíssimo diferentes, e que podem comprometer seriamente todo o resultado final!

Equipe original dos Vingadores nos quadrinhos da Marvel: Thor, Homem de Ferro, Capitão América, Homem formiga e Vespa, e o Incrível Hulk

Infelizmente, há uma triste realidade por trás do fato de que a Marvel acabou por começar a levantar a sua própria lápide no mundo do cinema, abandonando heróis lendários e já familiarizados há anos pelo grande público - e que não é só o público básico de quadrinhos - como o Capitão América, Homem de Ferro, Thor e Hulk (esses últimos rebaixados à condição ridícula de personagens de comédia).

Jogar holofotes sobre um segundo escalão, composto por figuras como Os Eternos, Homem Formiga, Dr. Estranho, Capitã Marvel, e no streaming, Cavaleiro da Lua, Mulher Hulk, e a mais recente Echo, provou ser uma manobra arriscada e muito temerária da Marvel para manter o interesse das plateias. E agravada por alguns pontos cruciais:

1) A perda natural de alguns intérpretes nos quais o estúdio estava apostando todas as suas fichas para alavancar as sagas - Jonathan Majors, que seria o próximo grande vilão Kang, o Conquistador, processado e condenado por agressão; Brie Larson, já praticamente destituída de seu papel como Capitã Marvel pela falta de carisma como a personagem e de empatia com os fãs, além de declarações tortuosas e polêmicas em entrevistas e nas redes sociais, que revelam que a moça não nasceu mesmo para ser uma heroína; e o caso mais triste, Chadwick Boseman, o Pantera Negra, que perdeu uma luta para o câncer em 2020, forçando a Marvel a fazer malabarismos de roteiro e elenco para a continuação do filme em 2022. Mas aí vem mais um probleminha exposto aqui no tópico seguinte...

2) Justamente em Pantera Negra 2 - Wakanda Forever, a gente se depara com uma das armas mais letais que a própria Marvel acaba usando contra os seus heróis: a mudança de enfoque nas tramas e na própria natureza das personagens, para agradar ou atender a tendências sociais atuais, movimentos e "minorias", e assim tentar alavancar mais público. Só que acaba acontecendo o contrário. Eu, assim como tantas outras pessoas fãs dos quadrinhos que eu conheço, não considero aquele soberano dos mares que está lá, no filme, interpretado por um tal de Tenoch Huerta, como o verdadeiro Namor, o Príncipe Submarino. Não mesmo, não adianta. É um outro ser. Para atender a uma parcela do público e da crítica que elogiaram o primeiro Pantera Negra, por sua celebração à diversidade das etnias e suas culturas, a Marvel simplesmente me transforma um dos seus mais icônicos personagens num mutante 'cucaracho', com ramificações anfíbias nas antigas civilizações maias e astecas que afundaram na água, substituindo a Atlântida por um outro reino e transformando tudo numa "fiesta do chicano doido" que descaracterizou totalmente o contexto original do Namor - cuja história era muito mais ligada, na verdade, à do Capitão América, na Segunda Guerra Mundial. Eu não me importo se não queriam que o espectadores confundissem a Atlântida do Namor com a do seu colega análogo da DC, o Aquaman! Nos quadrinhos, ambos sempre vieram desses reinados, e tudo bem, nada a ver um com o outro, e cada um na sua. E o Namor original tinha muito mais apelo, carisma e motivação do que aquele cara insosso que colocaram lá.

Namor, o Príncipe Submarino: como é que este cara...

... pôde se tornar este?

3) Certas liberdades poéticas da Marvel em suas adaptações para as telas são simplesmente um desastre. Um exemplo gritante: a She Hulk, ou Mulher Hulk. Uma série de streaming que, também na busca por pegar carona na tendência do "empoderamento" feminino, foi feita na pressa e no desleixo (inclusive dos efeitos especiais, sobre os quais falaremos agora mesmo), com um roteiro pífio que transformou a história da personagem em uma espécie de comédia bufona, com exageros de metalinguagem e quebras de conceito irritantes em relação ao que liamos nos quadrinhos. O filho do Hulk que aparece no último episódio, por exemplo (o Skaar), é uma das visões mais patéticas e deploráveis de personagem adaptado que eu vou guardar na memória, por muitos anos.

Skaar, o filho do Hulk: à esquerda, nas HQs. À direita, na série She Hulk

4) Vovó já dizia: a pressa é inimiga da perfeição. E a Marvel desrespeitou essa regra abundantemente. Num dos maiores exemplos de correria para faturar com filmes e séries - bem, talvez isso seja mais culpa da Disney, que se apropriou da coisa toda - a empresa foi acusada de pressionar e estressar seus técnicos de efeitos especiais com prazos descabidos e absurdos, para entregar suas séries e filmes. A já citada série da Mulher Hulk tem alguns dos piores CGI já vistos em muito tempo, com um episódio em que a perna da personagem "estica" de forma grotesca. O "terceiro olho" do Dr. Estranho, no filme Multiverso da Loucura (2022), que parece recortado de uma imagem no Paint e jogado na testa dele de qualquer jeito, causou risadas em muita gente. E a coisa chegou a um extremo tão impressionante, que o filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (2021) saiu em uma versão inicial, para atender à data anunciada de lançamento do filme, e depois de dois meses foi relançado com uma outra cópia, contendo alguns dos efeitos especiais nas cenas corrigidos, após críticas dos fãs. Toda essa celeuma engrossou também, pouco tempo depois, a famigerada greve dos roteiristas de Hollywood, que foi a mais longa já ocorrida até hoje, e que teve a adesão de vários desses técnicos de estúdio revoltados com as exigências da Disney/Marvel, causando um impacto negativo jamais antes sentido na indústria cinematográfica norte-americana.

Inegavelmente, sabemos que tem muita coisa que foi feita no anseio de realmente continuar com obras que agradassem, e que continuassem atraindo os fãs. Bons resultados também ocorreram: os já citados Guardiões da Galáxia, e séries como WandaVision e o último Loki (apesar de umas forçadas de barra na mudança de natureza do personagem). Apesar dos desacertos, a Marvel está prometendo para, em breve, um grande retorno à sua fase áurea, com o ingresso dos X-Men em seu universo (através do novo filme do Deadpool), do Quarteto Fantástico, e da nova epopeia dos Vingadores, em nova formação. Vamos ver, né?

Ilustração do novo filme do Quarteto Fantástico, divulgada pela Marvel neste mês

E sobre a DC, não vamos falar nada? Bem, o que falar de um universo cinematográfico integrado que já nasceu errado? Descontando as icônicas produções lá atrás que, essas sim, revolucionaram ou praticamente criaram o jeito de se fazer filmes de super herói moderno - o Superman clássico, da série com Christopher Reeve, ou as versões do Batman de Tim Burton, e depois Chris Nolan - o chamado DCU foi uma catástrofe desde que ocorreram alguns equívocos de rota por parte de um approach mais sombrio de Zack Snyder, em relação ao Super-Homem e à Liga da Justiça, ou quando na tentativa de reverterem a tendência e tornarem tudo mais leve e colorido, ao estilo das séries produzidas para o Canal Warner (CW), aprontaram patetadas com os últimos filmes do Shazam, Mulher Maravilha, e Flash. O que vimos foi, simplesmente, a queda em parafuso de um universo de heróis que nas HQs era fantástico, mas nos cinemas, se tornou irreconhecível.

Liga da Justiça (2018), de Zack Snyder

Agora, estamos às voltas com James Gunn, o ex bam-bam-bam que fazia os Guardiões da Galáxia da Marvel, e depois se bandeou para o lado da DC, vindo a se tornar o seu novo chefe. Ele, agora, produz a nova versão de Superman, com David Corenswet como o paladino azul da capa vermelha, com previsão de lançamento para o ano que vem, e promete um retorno do herói ao seu conceito original, como símbolo da justiça, da esperança, e até mesmo do bom humor. É isso aí, Gunn.

Que volte, afinal, a ser super novamente.



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VERA CRUZ: O PROTÓTIPO DO REALISMO NO WESTERN

  Em 1954, um faroeste com os galãs Gary Cooper e Burt Lancaster seria lançado sob a direção do grande Robert Aldrich , causando estardalh...