A Rede Globo já se prepara, após uma transmissão experimental realizada no final de abril deste ano, para o início das atividades da TV 3.0 no Brasil - ou, como será mais conhecida popularmente, a Digital Television+ (DTV+).
Quando a televisão começou no Brasil lá na década de 1950, com as transmissões ao vivo por torres e antenas, e canais ainda em preto-e-branco, ocorreu o que convencionamos chamar a primeira geração desse meio, ou seja, era a TV 1.0. Alguns anos depois, com o advento das transmissões via satélite ou por videoteipe, a cores, e com a melhoria das tecnologias, chegando ao começo do sinal digital e da internet, mais recentemente, vivemos a onda do que havia até agora predominado, a TV 2.0.
E então, chega agora a revolução, do novo padrão de uso e transmissões, com a terceira geração, batizada de TV 3.0.
Essa sim, promete entrelaçar ainda mais as mídias da televisão e internet, tornando a experiência de assistir programas de TV ainda mais interativa e com cada vez mais autonomia e controle do espectador - se antes tínhamos a hegemonia dos canais de TV, dominando e ditando costumes e horários da população, com as suas grades de programação, as lutas por índices de audiência e horários supervalorizados de publicidade para anunciantes, hoje tudo isso parece se tornar uma ilusão de memórias distantes, itens tão antiquados quanto relíquias ou antigos quadros e esculturas de museu.
Para a geração de onde venho, e até para algumas mais recentes, tudo mudou, e muito. E vai mudando mais ainda, em velocidades impressionantes. Se antes nomes como Globo, SBT, Record e Bandeirantes - até então, as quatro maiores e mais influentes concessões públicas de redes de TV do país - ainda tinham uma força expressiva e de maior entrância popular do que a internet, hoje nomes como Netflix, Amazon, HBO Max, Disney Plus, e o mais popular de todos, o YouTube, representam a força dos serviços de streaming que vieram para derrubar e subverter a lógica de costumes de audiência e de mercado, como jamais fora imaginado antes.
É uma mudança de paradigma parecida com a da época em que a TV desbancou o rádio, como veículo mais popular de comunicação de massa. Agora, chegou a vez da TV sentir a derrocada.
E não adianta: por mais que Globo e outros canais façam a migração para uma nova geração de transmissão, o problema está na filosofia de base e de criação da mídia televisiva. Nada voltará a ser como antes. Pois existe uma mudança de pensamento e de dinâmica muito mais profunda do que simplesmente fazer a TV soar mais flexível, ou se parecer mais com a internet. E atende ao conceito de modernidade líquida, já bem estabelecido há alguns anos atrás, no brilhante trabalho do filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Para Bauman, as mudanças que os avanços tecnológicos e sociais vão trazendo ao indivíduo tornam a fugacidade, a velocidade e a fluidez das situações algo cada vez mais comum, e inerente às sociedades organizadas. Os conceitos tradicionais vão se perdendo, ou ficando vazios de significado, diante da sua recorrente efemeridade em face das mudanças. Pertencimento, propriedade, princípios... tudo isso são sensos e ideias que sofrem uma descaracterização com essa modernidade que é tão fluída quanto a água, escorrendo pela vida das pessoas com relações sociais, econômicas e políticas que se tornam rápidas e frágeis, altamente maleáveis, e adaptadas a um dinamismo incessante. Não há mais preocupação com a tradição, ou a manutenção dos laços.
Não é importante ficar preso a um lugar, ou a alguém, desde que seja para ganhar melhor, ou ter mais prazer em outro relacionamento - para que sofrimento ou sacrifício, esses "palavrões" de hoje em dia? Não é preciso se prender a nenhum lar, cidade ou pátria. Família? Pra que isso? Temos pets, bebês reborn. Nem tampouco é preciso um político se manter filiado a um partido, ou a um posicionamento. Se for para auferir vantagens, por que não mudar? Neste "admirável novo mundo", tudo é substituível, tudo é fugaz.
Isso se reflete não só na falta de relevância que uma programação de TV pode ter para as pessoas, que preferem hoje muito mais fazer seus próprios horários e trocarem um programa ou evento por outro, mas na própria natureza que o uso dos canais de streaming tem: filmes e séries em constantes ciclos de reciclagem, entrando e saindo dos catálogos, sendo assistidos (ou até pausados, acelerados, deixados de lado) ao bel-prazer do espectador - que começa a nem se preocupar mais com a mensagem que determinada obra tem a passar - e uma infinidade de ofertas e de opções onde, em muitos casos, a quantidade supera a qualidade.
Nesse panorama, obviamente, há um impacto diretamente sofrido na cultura pop de consumo. A contemplação, e o senso crítico e analítico que deveriam ser resultantes das obras artísticas concebidas com a função de fazer pensar o indivíduo comum, simplesmente desaparecem, para dar lugar a conteúdos voláteis e inexpressivos, descaracterizados e sem profundidade ou originalidade, erigidos com o único e promíscuo objetivo de atender a interesses de mercado. E produzidos aos montes, de acordo com essa lógica.
Tudo assim, muito rápido, muito moderno. Na velocidade dos gigabytes por segundo.
A falta de apego a uma apreciação mais cuidadosa e apurada do significado de uma obra, de sua importância enquanto reflexão de mundo, visão autoral ou experiência imersiva, não ocorre somente na área do audiovisual.
O fenômeno se faz presente também na música: que comparação incrível temos quando nos lembramos de que, há não muito tempo atrás, ainda nas décadas finais do século 20, por volta dos anos 1970, 1980 e 1990, a sensação provocada pela simples aquisição das mídias físicas do LP (disco de vinil), fitas K-7 ou CD, com suas capas elaboradas, informações detalhadas sobre os artistas, as faixas gravadas e suas concepções, era algo genuíno e de uma emoção formidável - coisa muito distante em relação ao processo quase frio e robótico, automático até, de programar playlists sem fim em serviços de streaming hoje em dia, nos Spotify e Deezer da vida, e ir consumindo músicas (ruins) sem nem prestar uma boa atenção, as degustando tanto quanto lanchar correndo um hot dog, ou engolir qualquer fast food durante o intervalo de meia horinha do almoço na firma.
Não por acaso mesmo, é que os saudosistas ainda revivem o mercado das mídias físicas de áudio, e por conta disso ainda não deixaram morrer o apreço por comprar discos (de vinil ou digitais), e fitas cassete, fazendo também de sua audição um ritual à moda antiga. Para essas pessoas, é o seu modo de oferecer resistência ao ruidoso "império dos streamings", e sua também propagadora modernidade líquida.
Voltando ao que se assiste nas telinhas e telonas: soa até cômico lembrar que algumas das grandes telenovelas brasileiras - uma autêntica febre nacional, que já embalou a atenção de tantas pessoas em eras passadas - hoje soam datadas, menosprezadas, e esquecidas, em detrimento de mini tramas simples e produzidas a toque de caixa, algumas com até menos de 50 capítulos, mas que, vindas de países asiáticos (predominantemente China e Coreia), passaram a hipnotizar e monopolizar a atenção de milhares de brasileiros: é o fenômeno atual dos chamados doramas (termo oriental utilizado para a expressão "dramas").
Gente noveleira de outros tempos se lembra bem de obras marcantes da teledramaturgia brasileira (especialmente da TV Globo), como Roque Santeiro, Selva de Pedra, Pantanal, Éramos Seis, dentre tantas outras, mas que hoje provavelmente perderiam feio para atrações como Adorável Corredora, Rainha das Lágrimas, Amor pelo Amor, ou o mais recente Pergunte às Estrelas, sucesso da Netflix - doramas que bateram recordes de exibição e acessos no Brasil, consumidos vorazmente feito pipoca, comentados e hypados por milhares de fãs nos streamings de vídeo.
Histórias simples, rasas, com apelos fáceis e certeiros de humor e romantismo em seus roteiros, que exploram fórmulas de storytelling calcadas em enredos básicos e arquetípicos do drama e da comédia. Exemplos: moça sofredora que vence as dificuldades; rapaz pobre que fica rico no final; casais separados por classes sociais diferentes mas que lutam para ficar juntos; famílias em crise por conta de mentiras e heranças, mas com descendentes que se apaixonam e tentam resolver tudo; e etc, etc...
Tramas seguindo sempre um formato padrão para serem consumidas de forma rápida, sendo que uma série vai terminando, e logo já vai começando outra - muitas vezes, até com os mesmos atores e equipe de produção, simplesmente como numa linha de montagem industrial. Tudo bem automatizado e mecânico mesmo. E plasticamente irrepreensível: os cuidados estéticos de produção e filmagem são incríveis, com atores e atrizes belíssimos, e notável apuro visual, gravação com câmeras de alta performance e fotografia de primeira!
Afinal, estamos no século 21, as telas de HD das TVs e smarts e monitores de alta resolução pedem isso - não dá pra ficar filmando com aquelas câmeras analógicas de video tape, cuja imagem das novelas antigas fica horrível, borrada e esticada depois no Globoplay (ou nas terríveis reexibições do antigo Chaves, de qualidade risível nas telas do SBT). O esmero técnico das séries orientais é feito para seduzir e atrair cada vez mais seguidores - e superar os espetáculos ocidentais do passado, na preferência popular.
Conforme dito anteriormente, o consumo é rápido, como pipoca. Pra ajudar a descer, vai então um refri, ou uma aguinha. Da modernidade.
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