Com seus aproximadamente 1,93m de altura, ele chamava a atenção, por onde passava. Impossível não notar, também, pelos seus enormes e indefectíveis olhos azuis, bem como pelo bastante grave e tonitruante tom de voz - uma fala grossa, às vezes desajeitada, mas entonada com firmeza e perfeição quando o papel exigia.
E ele era um gigante gentil.
Um cara que, de dedicado estudante na arte da atuação, nascido no Canadá e girando pelos EUA e Inglaterra no início da carreira, passou a jovem astro nos devaneios da era hippie, em plena virada dos anos 60 para os 70 do século passado, mas acabou se impondo com papéis fortes e densamente psicológicos, e ainda teve tempo de se revelar um consistente defensor de causas pacifistas e contra a guerra do Vietnam, ao mesmo tempo em que se revelava um ator calmo, polido, de carisma e talento exemplares.
O mundo do cinema fica mais triste essa semana, com a partida de Donald Sutherland, 88 - pai do também ator Kiefer, dos clássicos filmes teenager Conta Comigo, Garotos Perdidos, e da célebre série 24 horas.
Já o currículo de Donald, o pai, é uma coisa espantosa. Eita que fez muito filme mesmo, esse homem.
Donald Sutherland se tornou uma das caras mais representativas do cinema na década de 1970, e já começara chutando a porta poucos anos antes, em 1967, quando debutou em um dos melhores filmes de guerra já feitos, a obra-prima Os Doze Condenados (The Dirty Dozen, 1967), dirigido por Robert Aldrich e com grande elenco: Lee Marvin, John Cassavetes, Charles Bronson e outros feras. Ele era o desajustado Pinkley, um dos condenados recrutados para invadir e destruir um castelo nazista em uma missão suicida durante a Segunda Guerra Mundial, e seu estilo de atuação natural e displicente já chamou ali mesmo a atenção de muita gente, mostrando que aquele rapaz tinha futuro.
Dali em diante, desfilou em outros filmes com a guerra como pano de fundo, mas curiosamente, agora na forma de comédias, e sempre parecendo querer demonstrar, com personagens satíricos e promotores do caos e da balbúrdia, o ridículo e o absurdo daquilo tudo - foi assim como o Hawkeye Pierce, de M.A.S.H. (1970), e o Sargento Oddball, de Guerreiros Pilantras (Kelly's Heroes, 1970), um dos mais escrachados filmes já estrelados por, vejam só, Clint Eastwood, de quem se tornaria um bom amigo.
À medida que envereda pelos anos seguintes, chega a vez de papéis mais sérios e icônicos, e ele seria visto no célebre filme policial de Alan J. Pakula sobre uma prostituta que precisa ser protegida porque "sabe demais" e corre risco de vida: Klute, o Passado Condena (1971) dá a Sutherland a chance de conhecer e estreitar laços com a já estrela Jane Fonda, que ganharia um Oscar por esse papel. Ele é o policial, e ela a meretriz, no filme. O envolvimento dos dois, que passam a perceber que tem bem mais em comum entre eles do que a atuação, vai além das telas, e o namoro rende uma maior participação política de Sutherland na revolucionária Hollywood daqueles tempos. Ficarão juntos até meados de 1973, e coproduzem F.T.A., um documentário antiguerra que faz sucesso na época, em pleno fervor do conflito com o Vietnam.
A trajetória de Sutherland segue com títulos marcantes, que ficaram na memória de toda uma geração: os apavorantes filmes de terror Inverno de Sangue em Veneza (Don't Look Now, 1973), Invasores de Corpos (Invasion of the Body Snatchers, 1978), o drama de guerra A Águia Pousou (The Eagle Has Landed, 1976), e já no início dos anos 80, aparições marcantes no premiado drama Gente Como a Gente (Ordinary People, 1980), e no thriller O Buraco da Agulha (Eye of the Needle, 1981).
Dono de uma versatilidade ímpar, ele faz a transição para a meia idade com papéis mais maduros e coadjuvantes, a partir do final dos anos 1980 e anos 90, que enriquecem todas as tramas das quais faz parte.
Quem não se lembra de sua mágica aparição como 'X', o enigmático agente secreto que faz as revelações cruciais para Kevin Costner sobre a trama do assassinato de John Kennedy, em JFK, a Pergunta Que Não Quer Calar (1991), de Oliver Stone? E repetindo a velha parceria com Eastwood, é dele o galhofeiro e sensacional Capitão Jerry O'Neil, um dos astronautas idosos de Cowboys do Espaço (Space Cowboys, 2000), uma atuação magistral e emocionante!
Para as gerações mais recentes, fica a contribuição dele na densa e impactante presença malévola do Presidente Snow, o infernal vilão da saga Jogos Vorazes (The Hunger Games), que tanto sucesso fez nos cinemas, entre 2012 e 2015.
"Com o coração pesado, digo-lhes que meu pai, Donald Sutherland, faleceu. Pessoalmente, considero um dos atores mais importantes da história do cinema. Nunca se deixou intimidar por um papel, seja ele bom, ruim ou feio. Ele amava o que fazia e fazia o que amava, e nunca se pode pedir mais do que isso. Uma vida bem vivida" - Kiefer Sutherland, 20/06/2024.
R.I.P., Donald.
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