Em qualquer ponto do espaço-tempo contemporâneo, não adianta: você pode perguntar pra qualquer stoner ou doomer que seja, onde começou tudo... qualquer cara que curta aquela viagem porradeira no som maciço e tonitruante, sorumbático, mórbido e intenso, com saraivadas de riffs e acordes pesados jorrando da guitarra, e baixo desabando ondas graves e hipnóticas dos amplificadores, enquanto a loucura percussiva de um bumbo, caixa de guerra, pratos e tudo o mais numa bateria vai celebrando um espancamento rítmico para elevar ainda mais a tensão dos seus batimentos cardíacos... Não adianta, meu amigo. Você, inevitavelmente, está diante de todas as gerações de ouvintes de um heavy metal raiz e irrepreensível, que veneram e pagam tributo à tríade básica do gênero - os três primeiros discos lançados pela clássica formação do Black Sabbath, lá no comecinho dos anos 1970.
O autointitulado LP de estreia, Black Sabbath (13 de fevereiro de 1970), Paranoid (18 de setembro de 1970), e o também mortal Master of Reality (21 de julho de 1971) - nada tira o mérito e primazia desses 3 registros que definiram um estilo, uma estética e uma filosofia de vida, na direção de um novo gênero que estava a se formar.
O som do grupo, nessa fase inicial, era tão cru e distinto, que era praticamente impossível encontrar quem realmente fizesse algo parecido, visto a agressividade natural e rudimentar com que eles produziam juntos, enquanto banda. Reflexos tanto de uma certa inépcia mesmo, impeditiva de elaborarem mais a sua musicalidade, quanto também de serem originados em um ambiente lúgubre e industrial, de vida difícil (Birmingham, na Inglaterra), onde precisavam quase "brigar" com as plateias barulhentas de pubs fuleiros, onde tentavam ser ouvidos.
O que tínhamos ali, afinal? Um vocalista boquirroto de origem miserável, que já tinha praticado pequenos furtos e aprendera a cantar e berrar alto ouvindo blues, Beatles e bandas de garagem barulhentas (Ozzy Osbourne); um líder guitarrista canhoto, nervoso e bom de briga, que era barra pesada nos pubs e ainda tinha perdido as pontas dos dedos da mão direita em uma torneadora industrial (que fazia as posições no instrumento tendo que usar próteses), pois era metalúrgico (Tony Iommi, tinha que criar o som do metal mesmo!); um baixista ligado em filmes e livros sobrenaturais, que simplesmente adorava saturar a gravidade das quatro cordas amplificadas no talo (Geezer Butler); e um baterista doidão e gente boa, mas que gostava de descer as baquetas no couro sem dó, com a mesma intensidade com que virava vários canecos de cerveja (Bill Ward). Essa combinação se estabilizou após algumas pequenas mudanças de formação, e a partir do nome Earth, resolveram adotar um mais propício para os tipos de letra que Geezer passou a escrever, sempre abordando temas obscuros e apocalípticos, retirado do nome de um filme de terror de Mario Bava, de 1963: Black Sabbath (no Brasil, "As Três Máscaras do Terror").
Malhados pela crítica no início de carreira, mas adorados pelo seu público, viram o tempo se tornar o seu maior aliado, à medida em que se tornaram cultuados e lendários, praticamente os verdadeiros pioneiros do heavy metal, graças a:
1) Black Sabbath (1970): a estreia perpetrada com urgência assustadora, apenas um dia no estúdio - isso mesmo, um único dia - para não onerar muito os custos de produção, e porque já tinham todo o repertório afiado, em ponto de bala para registrar. Sons de tempestade e sinos do mal ecoam nos primeiros sulcos do vinil enquanto explode um dos riffs mais lentos, pesados e sinistros da história - simples, mas extremamente eficaz, e eterno! A música-título, uma obra-prima e que dá nome à banda, oferece uma visão do inferno jamais antes explorada na música popular, na voz chorosa e desesperada de um jovem Ozzy, que comete uma das melhores aberturas de disco já realizadas por um frontman iniciante. Tem também petardos como a bluesy "The Wizard", a tétrica e cadenciada "Behind the Wall of Sleep", "Evil Woman", a clássica e colossal "N.I.B." (com mais rifferama que não sai da mente), e as interligadas "Sleeping Village" e "The Warning", que engatam um medley viajante e avassalador, onde Iommi mostra todo o seu poder de fogo nas seis cordas.
A "capa da bruxa" entrou para a história, e o mistério sobre a garota assombrosa na floresta perduraria por muitos anos, até que apenas recentemente, na era da internet, descobrimos ser a modelo britânica Louisa Livingston. O disco não poderia ter saído em data melhor: uma sexta-feira 13! A reedição em CD conta com a faixa bônus "Wicked World", que havia sido originalmente lançada junto com "Evil Woman", no primeiro single do grupo, em 1970.
2) Paranoid (1970): um disco produzido ainda na caótica correria da banda, cumprindo diversas datas de shows, e fazendo de tudo para cravar seu nome no panteão dourado do rock. Com a grana entrando de um modo que nunca imaginariam, Iommi e equipe se desdobram para faturar, mas também para produzir e lançar material novo, demandado pela horda de admiradores que só aumentava. Assim, acabam gastando um pouquinho mais de tempo no estúdio (mas não muito, apenas três!), para gerar um LP que muitos consideram ainda melhor que o álbum de estreia. A faixa de abertura, a mítica "War Pigs", um dos mais concisos e bem acabados trabalhos de composição do grupo, repleta de mudanças de ritmo, viradas e solos alucinantes, era para ter sido a faixa-título do trabalho, constituindo o primeiro grande posicionamento político do Black Sabbath, como uma crítica à Guerra do Vietnam - entretanto, a gravadora preferiu evitar polêmicas e quis que a banda continuasse mais no lado obscuro, o que causou a enorme confusão que muitos tem até hoje ao pensar sobre o que significa a capa do disco (um guerreiro assustado com uma espada - ou seja, era para ser uma ilustração sobre guerra), mas aí a foto já tinha ido para a produção e saiu desse jeito mesmo.
A música-título, "Paranoid", é o trabalho mais conhecido do grupo, nasceu de uma inesperada jam no estúdio, foi gravada e finalizada em apenas 25 minutos (!!!), e só quem viveu em Marte desde a década de 1970 para nunca ter ouvido essa porrada sonora, uma das primeiras canções loucas de lamento com Ozzy falando sobre relacionamentos detonados pela psicose humana! A macabra "Electric Funeral" é um perfeito exemplo de doom metal pioneiro e encharcado de distorção fuzzy wah-wah por Iommi, enquanto Geezer e Ward piram na cozinha e Ozzy se esmera nos vocais cavernosos. Clássicos como "Hand of Doom", "Fairies Wear Boots", e a riffenta "Iron Man" - outro hino da banda, versando sobre viagens no tempo e fim do mundo - também fazem parte desse registro histórico.
3) Master of Reality (1971): com um pouco mais de dinheiro no banco, e tempo para relaxar e compor, o Black Sabbath volta a lançar álbum no ano seguinte, sendo este um trabalho um pouco mais elaborado, mas não menos pesado e intenso que os anteriores. Acaba tendo até mesmo uma temática mais dark e sombria, pois as letras versam sobre vícios em drogas, perda da fé, destruição da humanidade e ameaças químicas, dentre outras pirações, e Iommi chega a mudar a afinação de sua guitarra nesse LP, para extrair um som mais grave e pesado. O disco já entra com uma baita tosse induzida pela erva maldita de Iommi, onde a folhinha verde é o foco, "Sweet Leaf". "After Forever", tida por muitos como uma mudança de rumo do grupo ao fazer uma canção cristã, é na verdade uma crítica a toda a obsessão que a mídia e certos fãs tinham pela imagem satânica cultivada ao redor deles. "Solitude" espelha um momento mais lírico, e de uma musicalidade soturna e medieval interessantíssima, com flautas e vocais reflexivos de Ozzy, quase irreconhecíveis. O peso volta e desaba com tudo nas pedradas de "Children of the Grave", "Lord of This World", e na impressionante "Into the Void", tão cheia de viradas e ritmos sincopados, que Bill Ward até hoje se queixa de nunca ter conseguido a tocar bem ao vivo. Consolidando a posição do Black Sabbath como banda única e criadora de uma nova tendência no rock pesado, Master é o último registro de uma fase inovadora e mais primal do som da banda, que passaria, com o LP seguinte (o Volume 4, inteiramente gravado nos EUA), a diversificar um pouco mais as suas composições e o tipo de instrumentação utilizada em sua obra.
De 1972 em diante, veríamos o Sabbath expandir a sua sonoridade para searas que flertavam com o pop ("Changes", a balada de Ozzy que faria o grupo tocar em todas as rádios), e as experiências progressivas ("Under the Sun" e especialmente as músicas do Sabbath Bloody Sabbath, de 1973, como "Who Are You" e "Spiral Architect"), mas sempre mantendo o peso no som.
O pontapé inicial no doom e stoner metal, com as suas características mais vigorosas, no entanto, ficaria para sempre marcado naqueles três primeiros discos.
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