sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

DEU PRA TI, ANOS 70

 

Hoje, quem vê todo o hype em volta da mega alardeada última turnê da lendária banda Kiss, mal concebe o cenário incandescente no qual foram gerados, e tudo que estava circundando na atmosfera daquela época.  Sem sombra de dúvidas, a década de 1970 teve uma importante missão: contestar e fazer ruir praticamente tudo que havia sido erguido e celebrado na década anterior, dos anos 60.

Kiss

Para quem atualmente vê tudo muito categorizado e dividido em seus nichos, com os devidos rótulos criados pela mídia sobre o que é, e o que não é, fica meio esquisito na cabeça observar a cena artística que se constituía a partir dos idos de 1970/71, logo após a implosão dos Beatles, o show de mortes dos Rolling Stones no concerto de Altamont, e fim do sonho da era hippie após o festival de Woodstock. De repente, parecia que, após todo um período de loucuras e transgressões, quebra de padrões e paradigmas, o mundo se deparava com uma nova década de incertezas e desilusões como jamais antes havia acontecido. E tudo começou a sair e acontecer meio que embolado.

Festival de Woodstock - 1969

Algo que contribuiu muito para isso foi a criação de todo um novo sistema pop midiático, em que os meios de comunicação erigiram a cultura pop, e a elevaram a um novo patamar em que as gerações mais novas eram mais influentes e participativas, em um contexto social geral. Isso não existia antes, se levarmos em consideração os padrões conservadores da sociedade na década de 1950 e em todas as décadas e séculos anteriores.

O esvaziamento dos anseios e propósitos da geração do final dos anos 60, com o filme 'Sem Destino' (Easy Rider, 1969) como exemplo, denunciando essa impossibilidade do sonho de poder jovem, dá a partida para o surgimento de uma nova geração que vai se deparar com os altos índices de inflação, insatisfação social e econômica e niilismo, bem como a crise do petróleo, que estenderão seus efeitos por toda a década seguinte, fazendo nascer a cara da contradição e rebeldia setentistas que reverberarão em todo o cenário musical a partir de então.

Easy Rider - marco contra cultural do cinema dos anos 60

O Kiss nada mais era do que mais um rebento comum em uma geração de bandas de lugares como New York, Michigan e Detroit, que praticavam um rock básico mais sujo e pesado, anárquico e reduzido a poucos instrumentos, poucos acordes, e muito barulho e atitude, uma massa disforme de hard rock que nem podia ser classificada em qualquer outro gênero, pois era coisa da mente de garotos pobres que seguiam uma vibe mais básica, que pulava os floreios psicodélicos dos grupos hippie e 'flower power', e bebia na fonte do rock and roll básico dos anos 50, com um pouco de senso melódico dos Beatles e anarquia dos Stones. "And what can a poor boy do, except to sing in a rock and roll band?" - e o que pode um garoto pobre fazer, a não ser cantar em uma banda de rock & roll, profetizava Mick Jagger na letra de "Street Fightin' Man" (1968). Grupos como Blue Cheer, MC5 e Stooges já antecediam essa onda na qual os Kiss (e depois, os punks) iriam surfar.

Mais do que isso: os anos 70 são pródigos na criação de estereótipos que se contrapõem e se radicalizam em suas novas propostas, com artistas já consagrados em bandas que se voltam quase que totalmente para a reflexão e as letras e músicas mais individualizadas e pessoais de suas carreiras solo. 



Logo acima: MC5 e Stooges, bandas seminais do rock pesado e direto do final dos 60/início dos 70

É assim com Neil Young, Lou Reed, Paul Simon, James Taylor, Carole King e os ex-Beatles em carreira solo, junto com um monte mais de gente. É a época em que novos grupos simbolizam os excessos, a grandiloquência, a vontade de tocar mais alto e enriquecer mais do que todo mundo: a tríade lendária do rock pesado Led Zeppelin/Deep Purple/Black Sabbath, Queen e Humble Pie, Eagles e Aerosmith. É a época dos opostos gritantes: as bandas de rock progressivo que se aperfeiçoam e se cristalizam, elevando a complexidade ao auge com longas suítes, solos e peças instrumentais: Genesis, Yes, King Crimson, e obviamente, o Pink Floyd. E as bandas de glam e rock pauleira direto e básico, que estamos abordando aqui: Kiss, Slade, UFO, Sweet, Alice Cooper e tantas outras, cada vez mais distorcidas, cada vez mais agressivas. 

Nesse contexto, Kiss e Alice Cooper surgem com um lance mais teatral, egresso das temáticas exploradas pela vertente do Grand Guignol - movimento artístico francês oriundo da região de Pigalle, Paris, em 1897, que fez grande sucesso com encenação de peças sobre contos de horror, com muita maquiagem e sangue artificial, os autênticos precursores do cinema 'slasher'. Gene Simmons, do Kiss, solta fogo e sangue pela sua boca linguaruda, dá "machadadas" com seu contrabaixo dos infernos, e Cooper se enrola numa cobra, sacrifica animais no palco e é guilhotinado no final do show, só para se ter alguns exemplos do absurdo da coisa. Isso acabará os aproximando futuramente da turma do heavy metal com temáticas satânicas.

Alice Cooper: mestre do rock  de terror 'grand guignol'

Toda essa pretensa teatralidade e uso de recursos narrativos insólitos durante os concertos e gravações desses artistas expressa bem um certo espírito da época, de querer chocar e quebrar barreiras, como forma de responder a uma angústia natural de situações tensas e 'no future' que aquela geração sem rumo vivenciava, psicologicamente. O tesouro prometido do sonho libertário de antes não estava mais lá, o declínio da sociedade de consumo emergia através de um sentimento geral de crise dos preços e estafa das instituições, e persistia o holocausto de mais uma guerra que consumia corações, mentes e noticiários mundiais, apesar de regionalizada (o conflito do Vietnam), sugando dinheiro do império ianque e mostrando que os podres poderes eram dominantes. Só para lembrar, a década de 1970 foi o apogeu das ditaduras militares em todo o nosso continente sul-americano.

Não demora muito, e a partir de 1976, toda essa neurose reinante vai desaguar no ódio punk - primeiro, dos garotos americanos dos Ramones, e dos britânicos dos Sex Pistols, Clash e Damned. E depois, dos garotos ao redor de todo o mundo. Estava enfim deflagrado o movimento das roupas de couro, rasgadas, e de tachinhas para uma nova geração, e para mais uma vez abalar os alicerces e desdizer tudo aquilo que foi dito antes.

Os Sex Pistols deram pontapé ao raivoso movimento punk rock dos anos 70

Acima de tudo, como cronista e observador (carimbador?) maluco de toda essa epopeia, estava o nosso Raul Seixas, aqui no Brasil, e o grande 'spaceman' visionário David Bowie, o 'Ziggy Stardust', lá fora, na Inglaterra e globo terrestre. Raulzito e David  foram, talvez, dois dos mais potentes arautos pop do que representaram os anos 70, na caixola de muitos dos sobreviventes daqueles tempos. Nas letras e vidas de ambos, simbologia e sínteses pungentes do que foi respirar, sofrer e sonhar em uma das mais loucas décadas do século XX.

Raul Seixas


David Bowie


E em tempo...

O título dessa matéria foi retirado de um cultuado filme porto alegrense de 1981, rodado com câmera super-8 em esquema de vanguarda pelos cineastas Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, que narra a trajetória e as desventuras de um grupo de jovens na década de 1970, ou seja, pega na veia e bem próximo ali dos fatos todo o bode que rolava, dando para se ter uma boa ideia de como pensava e vivia aquela geração que tinha muito com o que sonhar, bem como se frustrar... E afinal, que geração que não é assim, não é mesmo? Tá completo no Vimeo: https://vimeo.com/321057751


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